Estou a pensar nisto:
A perda do senso comum
Este fim de semana vi um filme muito interessante: Hannah Arendt. Não sei se foi exibido noutras partes do mundo. É uma biografia desta filósofa de origem judia que gira em torno de artigos que ela publicou no jornal The New Yorker e um livro que ela escreveu a propósito d...o julgamento de Adolf Eichmann, antigo membro das SS raptado pela Mossad na Argentina e julgado e condenado à morte em Israel em 1961. Arendt assistiu ao julgamento como enviada especial do jornal nova iorquino e publicou, na sequência dessas reportagens, o livro com o título “Eichmann em Jerusalem – um relatório sobre a banalidade do mal” (minha tradução) que criou um grande mal estar no seio da comunidade judia dentro e fora de Israel, e fez com que muitos dos seus amigos lhe virassem as costas.
São principalmente duas as coisas que lhe criaram problemas. A primeira foi a própria ideia da banalidade do mal. Arendt escreve que Eichmann não era necessariamente um anti-semita, mas sim um funcionário que cumpria ordens. Muitos reagiram mal a esta constatação, considerando-a de pouco respeitosa dos milhões de vítimas desse indivíduo e de banalização do próprio holocausto. Contudo, a posição de Arendt, que ela defendeu até ao fim da sua vida nos meados da década de oitenta, foi de que embora ela reconhecesse a gravidade dos crimes cometidos por Eichmann, ela queria também dar destaque a um nível talvez mais abstracto da coisa que consistia no processo de normalização que era necessário para que homens perdessem sensibilidade em relação ao mal que infligiam a outros. A segunda coisa foi a sua acusação segundo a qual os concelhos de judeus teriam colaborado com os Nazis na deportação e extermínio de judeus, uma acusação grave que entrou em colisão com o discurso de victimização que caracteriza (com toda a legitimidade) a relação dos judeus com o Nazismo.
Fiquei altamente impressionado com esta mulher. Não é que não tivesse lido nada dela. Já há muitos anos tinha lido as suas coisas sobre o totalitarismo e, acima de tudo, sobre a condição humana. Do seu texto sobre o totalitarismo retive a justa crítica a Fanon e sua glorificação da violência. Ontem reli partes de “a condição humana” – que tinha lido mais para perceber a distinção entre vida activa e vida contemplativa – e fiquei fascinado com o que ela escreve sobre o que ela própria chama de “perda do senso comum”. O filme não fala disto, mas parece-me ser a explicação do seu posicionamento irredutível perante as críticas que lhe foram feitas na sequência do caso Eichmann. Sucintamente, Arendt considera que a perda do senso comum ocorre quando os nossos sentidos já não podem ser a única via através da qual ganhamos as impressões que são necessárias ao conhecimento do mundo. Ela diz que a produção do conhecimento passa para o interior de nós mesmos de tal maneira que o que podemos saber sobre o mundo não se pode confirmar pelos sentidos, mas sim pela razão. Produzir conhecimento é para ela construir o próprio objecto do conhecimento (por acaso, há algumas semanas que vinha tentado articular esta ideia todo satisfeito por pensar que estivesse a descobrir algo novo; Arendt veio provar mais uma vez que a originalidade é privilégio de quem lê pouco...). Não estou inteiramente convencido pelo recurso que ela faz a Descartes para fundamentar a sua posição, mas isso é de pouca relevância aqui.
Porque estou a partilhar estas ideias aqui? É porque vejo paralelos muito interessantes com o meu próprio País. A forma como se aborda o País na esfera pública parece-me viciada pelo senso comum acima do qual Hannah Arendt, esta mulher valente, tentou elevar-se, mesmo sob pena do ostracismo. O conforto da opinião da maioria que se confirma pela emoção (indignação) parece ser a rota considerada mais segura para o conhecimento. A razão, que consiste numa constante reflexão sobre a fiabilidade dos nossos sentidos como via segura de produção de conhecimento válido, é motivo de desconfiança e suspeita, a não ser, claro, que ela confirme um palpite ideológico que não nos obrigue a sairmos da nossa zona de conforto. E zona de conforto no nosso País é aquela que nos permite sem esforço intelectual nenhum identificar os bons e os maus – qualquer que seja o nosso posicionamento político. Não surpreende, pois, que este ambiente intelectual seja extremamente hostil a quem trespassa a zona do conforto. Com isto não quero dizer que só quem abana com a paliçada que protege a essa zona é que tem razão. É bem possível que Hannah Arendt se tenha enganado na sua avaliação de Eichmann e do papel da comunidade no seu próprio extermínio. Mas isso não é o mais importante. Ficou o mérito de convocar as pessoas para uma reflexão mais profunda, mais fria e, por isso, mais útil à descoberta do que realmente faz uma comunidade. É interessante recordar que ela insistiu muito com a ideia de que Eichmann cometeu crimes contra a humanidade, não apenas contra os judeus. Extraordinária mulher esta!
O ambiente intelectual que se cultiva em Moçambique é, até certo ponto, de banalização da actividade intelectual por excesso de participação (como no meu caso), por ausência de intervenção (como no caso de muitos colegas que se não pronunciam) e por excessiva confiança no senso comum, naquilo que toda a gente sabe, naquilo que só não vê quem não quer ver, enfim, no desconforto que causa uma reflexão que não seja imediatamente gratificada com a identificação clara dos bons e dos maus. Mas foi quase sempre assim. No período imediatamente a seguir à independência, e com a forte influência dum Marxismo muitas vezes mal digerido, o mundo era de fácil apreensão. Havia os bons e havia os maus. Prontos. Saímos disso para um mundo, em princípio, mais plural, só que os maus hábitos da mente conseguiram mesmo assim impôr-se, sobretudo por causa do uso inflacionário de palavras que pensam por nós: democracia, justiça, corrupção, transparência, integridade, paz e não sei que mais. O que conta não é o entendimento que se tem destas noções – e seu uso coerente e consistente – mas sim simplesmente o seu uso, brandi-las como armas de arremesso contra todos aqueles que não encaixam nos contentores sufocantes do senso comum.
O que me preocupa mesmo não é a simples banalização da actividade intelectual. Preocupa-me mais a intolerância que acompanha a defesa e protecção da zona de conforto. O tipo de linguagem que se usa para descrever adversários políticos ou pessoas que não partilham as nossas opiniões, a adjectivação que se privilegia, mesmo a pouca importância que se atribui ao argumento, sua reprodução fiel e sua refutação justa, tudo isto me mete medo. Mete-me medo porque é o tipo de ambiente que contribui para a banalização do mal. Ontem o “inimigo do povo” podia ser punido, chicoteado ou mesmo morto por fuzilamento. Ontem, em nome da luta pela democracia, podia-se queimar autocarros, mutilar pessoas e matar indiscriminadamente. Hoje aplaude-se a morte de agentes da lei e da ordem em nome do combate à arrogância do governo. Amanhã aqueles que não defenderam o povo quando este era pilhado pelos maldosos hão-de ver. Não sei porquê, mas tenho mais medo dos nossos “democratas”, da nossa imprensa “independente” e da nossa “sociedade civil” do que daqueles que nos governam mal hoje. Há pessoas que acordam com a intenção de ir provocar ou insultar alguém na crença genuina na ideia de que isso constitui contribuição para o debate de ideias. E ficam felizes da vida quando são secundadas. Se ao menos essa gente lesse, e entendesse, Hannah Arendt.See more
A perda do senso comum
Este fim de semana vi um filme muito interessante: Hannah Arendt. Não sei se foi exibido noutras partes do mundo. É uma biografia desta filósofa de origem judia que gira em torno de artigos que ela publicou no jornal The New Yorker e um livro que ela escreveu a propósito d...o julgamento de Adolf Eichmann, antigo membro das SS raptado pela Mossad na Argentina e julgado e condenado à morte em Israel em 1961. Arendt assistiu ao julgamento como enviada especial do jornal nova iorquino e publicou, na sequência dessas reportagens, o livro com o título “Eichmann em Jerusalem – um relatório sobre a banalidade do mal” (minha tradução) que criou um grande mal estar no seio da comunidade judia dentro e fora de Israel, e fez com que muitos dos seus amigos lhe virassem as costas.
São principalmente duas as coisas que lhe criaram problemas. A primeira foi a própria ideia da banalidade do mal. Arendt escreve que Eichmann não era necessariamente um anti-semita, mas sim um funcionário que cumpria ordens. Muitos reagiram mal a esta constatação, considerando-a de pouco respeitosa dos milhões de vítimas desse indivíduo e de banalização do próprio holocausto. Contudo, a posição de Arendt, que ela defendeu até ao fim da sua vida nos meados da década de oitenta, foi de que embora ela reconhecesse a gravidade dos crimes cometidos por Eichmann, ela queria também dar destaque a um nível talvez mais abstracto da coisa que consistia no processo de normalização que era necessário para que homens perdessem sensibilidade em relação ao mal que infligiam a outros. A segunda coisa foi a sua acusação segundo a qual os concelhos de judeus teriam colaborado com os Nazis na deportação e extermínio de judeus, uma acusação grave que entrou em colisão com o discurso de victimização que caracteriza (com toda a legitimidade) a relação dos judeus com o Nazismo.
Fiquei altamente impressionado com esta mulher. Não é que não tivesse lido nada dela. Já há muitos anos tinha lido as suas coisas sobre o totalitarismo e, acima de tudo, sobre a condição humana. Do seu texto sobre o totalitarismo retive a justa crítica a Fanon e sua glorificação da violência. Ontem reli partes de “a condição humana” – que tinha lido mais para perceber a distinção entre vida activa e vida contemplativa – e fiquei fascinado com o que ela escreve sobre o que ela própria chama de “perda do senso comum”. O filme não fala disto, mas parece-me ser a explicação do seu posicionamento irredutível perante as críticas que lhe foram feitas na sequência do caso Eichmann. Sucintamente, Arendt considera que a perda do senso comum ocorre quando os nossos sentidos já não podem ser a única via através da qual ganhamos as impressões que são necessárias ao conhecimento do mundo. Ela diz que a produção do conhecimento passa para o interior de nós mesmos de tal maneira que o que podemos saber sobre o mundo não se pode confirmar pelos sentidos, mas sim pela razão. Produzir conhecimento é para ela construir o próprio objecto do conhecimento (por acaso, há algumas semanas que vinha tentado articular esta ideia todo satisfeito por pensar que estivesse a descobrir algo novo; Arendt veio provar mais uma vez que a originalidade é privilégio de quem lê pouco...). Não estou inteiramente convencido pelo recurso que ela faz a Descartes para fundamentar a sua posição, mas isso é de pouca relevância aqui.
Porque estou a partilhar estas ideias aqui? É porque vejo paralelos muito interessantes com o meu próprio País. A forma como se aborda o País na esfera pública parece-me viciada pelo senso comum acima do qual Hannah Arendt, esta mulher valente, tentou elevar-se, mesmo sob pena do ostracismo. O conforto da opinião da maioria que se confirma pela emoção (indignação) parece ser a rota considerada mais segura para o conhecimento. A razão, que consiste numa constante reflexão sobre a fiabilidade dos nossos sentidos como via segura de produção de conhecimento válido, é motivo de desconfiança e suspeita, a não ser, claro, que ela confirme um palpite ideológico que não nos obrigue a sairmos da nossa zona de conforto. E zona de conforto no nosso País é aquela que nos permite sem esforço intelectual nenhum identificar os bons e os maus – qualquer que seja o nosso posicionamento político. Não surpreende, pois, que este ambiente intelectual seja extremamente hostil a quem trespassa a zona do conforto. Com isto não quero dizer que só quem abana com a paliçada que protege a essa zona é que tem razão. É bem possível que Hannah Arendt se tenha enganado na sua avaliação de Eichmann e do papel da comunidade no seu próprio extermínio. Mas isso não é o mais importante. Ficou o mérito de convocar as pessoas para uma reflexão mais profunda, mais fria e, por isso, mais útil à descoberta do que realmente faz uma comunidade. É interessante recordar que ela insistiu muito com a ideia de que Eichmann cometeu crimes contra a humanidade, não apenas contra os judeus. Extraordinária mulher esta!
O ambiente intelectual que se cultiva em Moçambique é, até certo ponto, de banalização da actividade intelectual por excesso de participação (como no meu caso), por ausência de intervenção (como no caso de muitos colegas que se não pronunciam) e por excessiva confiança no senso comum, naquilo que toda a gente sabe, naquilo que só não vê quem não quer ver, enfim, no desconforto que causa uma reflexão que não seja imediatamente gratificada com a identificação clara dos bons e dos maus. Mas foi quase sempre assim. No período imediatamente a seguir à independência, e com a forte influência dum Marxismo muitas vezes mal digerido, o mundo era de fácil apreensão. Havia os bons e havia os maus. Prontos. Saímos disso para um mundo, em princípio, mais plural, só que os maus hábitos da mente conseguiram mesmo assim impôr-se, sobretudo por causa do uso inflacionário de palavras que pensam por nós: democracia, justiça, corrupção, transparência, integridade, paz e não sei que mais. O que conta não é o entendimento que se tem destas noções – e seu uso coerente e consistente – mas sim simplesmente o seu uso, brandi-las como armas de arremesso contra todos aqueles que não encaixam nos contentores sufocantes do senso comum.
O que me preocupa mesmo não é a simples banalização da actividade intelectual. Preocupa-me mais a intolerância que acompanha a defesa e protecção da zona de conforto. O tipo de linguagem que se usa para descrever adversários políticos ou pessoas que não partilham as nossas opiniões, a adjectivação que se privilegia, mesmo a pouca importância que se atribui ao argumento, sua reprodução fiel e sua refutação justa, tudo isto me mete medo. Mete-me medo porque é o tipo de ambiente que contribui para a banalização do mal. Ontem o “inimigo do povo” podia ser punido, chicoteado ou mesmo morto por fuzilamento. Ontem, em nome da luta pela democracia, podia-se queimar autocarros, mutilar pessoas e matar indiscriminadamente. Hoje aplaude-se a morte de agentes da lei e da ordem em nome do combate à arrogância do governo. Amanhã aqueles que não defenderam o povo quando este era pilhado pelos maldosos hão-de ver. Não sei porquê, mas tenho mais medo dos nossos “democratas”, da nossa imprensa “independente” e da nossa “sociedade civil” do que daqueles que nos governam mal hoje. Há pessoas que acordam com a intenção de ir provocar ou insultar alguém na crença genuina na ideia de que isso constitui contribuição para o debate de ideias. E ficam felizes da vida quando são secundadas. Se ao menos essa gente lesse, e entendesse, Hannah Arendt.See more
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