Publié dans Savana (Maputo), 3 avril 2015, n° 1108, pp. 14-15, republié en portugais sur le blog LAMenParle, 17 avril 2015,
<http://lamenparle.hypotheses.org/231>
Aceitar a história
e democratizar todas as regiões de Moçambique
e democratizar todas as regiões de Moçambique
A recente renúncia do Presidente
Armando Guebuza abre possibilidades de uma nova ronda negocial entre a Renamo e
o Governo, mas não resolve em si os problemas decorrentes da invenção de um
novo tipo de nação para Moçambique. Esses problemas vêm de muito longe. Com
efeito, a tradição política da Frelimo é a de uma nação homogênea - tradição
feita de uma mistura entre uma herança franco-jacobina vinda da Revolução de
1789 que influenciou profundamente os movimentos de emancipação do terceiro mundo,
a cultura política nacional portuguesa e o dito “marxismo-leninismo”. Se não é
mais possível sustentar o tríptico “Um só povo, uma só nação, um só partido”,
pode-se dizer que pelo menos o díptico “Um só povo, uma só nação” perdura nos mitos
políticos. Ora, isso em nada corresponde nem à história moçambicana desde o
final do século XIX, nem à sociedade produzida por essa história.
Um
espaço chamado “Moçambique”
Como se sabe, o espaço
“Moçambique” é o fruto de rivalidades interimperialistas resolvidas com a
fixação das fronteiras em 1891, que delimitaram um território sem relação
alguma com as aéreas das nações pré-coloniais africanas. Isto ainda se vê bem hoje:
a grande maioria das comunidades que os recenseamentos chamam de “grupos linguísticos”
continua do outro lado das fronteiras. É por isso que o Portugal colonial
defendia o slogan “Moçambique só é Moçambique porque é Portugal”: tinha que
negar as identidades africanas, tinha que considerar os africanos como uma
massa indistinta de indivíduos sem nenhuma organização social (além de
“selvagem”) para justificar a sua própria presença, não revelando sua
verdadeira face de invasor de nações estrangeiras. Obviamente, o problema agravou-se
no final do século XIX.
Durante a primeira idade
colonial – mercantil e escravocrata – e antes da grande viragem para a segunda
idade colonial – capitalismo colonial –, Portugal não precisava de uma ocupação
efetiva do território. Moçambique não era um novo Brasil, apesar dos dizeres de
alguns sonhadores em Lisboa. Caravanas portuguesas (com portugueses muitas
vezes de cor negra ou mestiça) podiam avançar muito no interior, prazos da
coroa podiam representar oficialmente esta coroa enquanto que permaneciam quase
independentes: o importante era a presença de feitorias e fortalezas na costa
ou em alguns rios. A capitania-geral de Moçambique que, até 1753, era uma
colônia do vice-reinado português de Goa, fazia parte da esfera econômica,
social e cultural do Índico, onde as influências portuguesa, indiana, árabe,
suaíle e bantú misturavam-se, com a capital sediada na Ilha de Moçambique e o
centro de gravidade na Zambézia (uma Zambézia histórica mais costeira, porém
mais extensa do que a atual).
O
mundo social da primeira idade colonial
Neste período, originaram-se
camadas sociais demograficamente reduzidas, mas historicamente muito
importantes, que podem ser chamadas de crioulas – isto no sentido das
ciências sociais, visto que, em Moçambique, poucas pessoas, ao contrário de
Cabo Verde, se autodesignam “crioulas”. Formou-se uma crioulidade complexa:
luso-bantú, luso-indiana, luso-árabe, afro-indiana, luso-suaíle, “portugueses
da terra”, etc. Essas formações estiveram
na origem do mito do “não racismo” colonial português e a dita “mistura ímpar”: na
realidade, tratava-se de elites coloniais reduzidíssimas numa relação de forças
instável entre Portugal, os sultanatos suaíles da costa e os reinados africanos
do interior. Visto que, Portugal, na altura, dominava realmente um território
(as “terras firmes”), que talvez não fosse superior a 10% da área atual de Moçambique,
pode-se dizer que, proporcionalmente a esse pequeno território, a mestiçagem
era mais importante do que veio a ser depois, no século XX colonial – século de
“branqueamento” da colônia em sua dimensão fenotípica e cultural – mercê de uma
tentativa de imigração massiva de colonos europeus.
É muito importante perceber
que essas elites crioulas – coloniais, mas não capitalistas –, incapazes de se tornarem
uma camada social dominante no século XX, foram completamente marginalizadas
quando da viragem para o capitalismo colonial. Essa viragem teve consequências
bastante diferentes em Moçambique e em Angola. Com efeito, na colônia do
Atlântico, Luanda continuou como capital, o que permitiu que as antigas elites
crioulas mantivessem certas posições sociais relevantes, apesar da pressão cada
vez mais feroz dos colonos brancos. Essas elites vieram a ter um grande papel
na gênese do MPLA. No caso da colônia do Índico, a viragem socioeconômica teve
um violento aspecto geopolítico quando, em 1898, Portugal achou por bem
transferir a capital para uma aldeiazita no extremo sul do país, Lourenço Marques,
que tinha a grande vantagem de possuir um porto natural fantástico, a Delagoa
Bay, o que permitia, com o caminho de ferro construído em 1895, transformar
Moçambique numa economia de serviços dependente do capitalismo
anglo-sul-africano em desenvolvimento rápido no Transvaal.
As elites de antiga
crioulidade do norte do território começaram, pois, um declínio que não cessou
de se aprofundar durante todo o período português contemporâneo com o
agravamento dos desequilíbrios no desenvolvimento econômico das regiões do
país. Moçambique se tornou só a “costa” do hinterland britânico, como ilustra
bem a orientação dos caminhos de ferro, que vão (ainda hoje) só da costa para o
interior, sem nenhuma linha norte-sul.
Essas antigas elites nutriam,
pois, um descontentamento de expressão política diferente do que se poderia
pensar: na realidade, muitas delas tinham saudade da época colonial anterior
– o que foi típico no caso da Zambézia, que se considerava como o coração
do antigo Moçambique – e que advogavam pelo fim da colonização, não sob a
forma de uma independência africana, mas ao contrário, de uma assimilação
completa a Portugal – o que chamei em textos anteriores de um “anticolonialismo
integracionista” (um pouco como o de Aimé Césaire para as Antilhas francesas),
oposto ao “anticolonialismo separatista”. Mas o descontentamento não se limitou
somente às elites crioulas porque os desequilíbrios econômicos provocados pela
exploração desigual dos portugueses afetavam muito a população africana. Até os
colonos brancos de Quelimane ou da Beira não gostavam nada dos de Lourenço
Marques e nutriam uma tendência autonomista mais de tipo “brasilianista” do que
“rodesiana”. Não é por acaso que descendentes dessas elites crioulas acabaram
por apoiar a Renamo contra a Frelimo, vista como a representante desta “viragem
para o Sul” decidida por Portugal. Aqui, o confronto é muito mais histórico-regional
do que étnico.
A
nova crioulidade e a sua nação
Lourenço Marques viu surgir,
aos poucos, uma nova elite africana reduzidíssima porque não havia espaço
social para isso no âmbito da “colonização de pequenos brancos”. Tratava-se de,
uma microelite africana de “nova crioulidade”, bem diferente da antiga
crioulidade de Luanda, uma nova crioulidade moldada nas características do
colonialismo português tardio, muito burocrático, com hipertrofia do sector
terciário, sem quase nenhum empreendedor africano e quase sem nenhuma ligação
com as antigas elites do centro e do norte. Também, praticamente não havia uma
classe operária africana – o trabalho forçado semestral dos indígenas
dificultando muito a gênese de tal classe. Ao contrário do MPLA angolano, a
direção política da Frelimo surgiu como produto de uma nova crioulidade.
Em outras palavras, a viragem
para a segunda idade colonial – a do capitalismo colonial – impôs ao
espaço “Moçambique” uma fractura econômica, social e cultural maior. Costumo
dizer que não se pode perceber nada da guerra civil de 1977-1992 a menos que se
recue, no mínimo, até a viragem de 1898 que “estruturou” os desequilíbrios
coloniais. Com efeito e como se sabe, a Frelimo não mudou em nada os
desequilíbrios oriundos do período colonial. Começou por confirmar Lourenço
Marques como capital em vez de escolher uma cidade no centro geográfico do país,
o que não foi somente uma medida pragmática e de gestão, mas uma escolha
estratégica e de longo alcance, tanto econômica quanto ideologicamente: a nação
devia ser imaginada a partir da cidade de tipo europeu mais moderna que os
dirigentes da Frelimo tinham conhecido antes da partida para o exílio. A
capital era o protótipo da nação. O vocabulário político popular moçambicano de
hoje, aliás, percebeu muito bem isso: no Centro ou Norte, quando se encontra um
responsável vindo da capital, muitas vezes fala-se dele como “o camarada que
vem da nação”.
Depois, a Frelimo manteve tal
e qual as províncias definidas pelos portugueses como territórios sem nenhuma
relação com a realidade das populações e das etnicidades locais. Permaneceu o
conceito segundo o qual uma região ou uma província é uma mera circunscrição
territorial do Estado central e não a emanação espacial de uma população e de uma
sociedade local. É uma visão paternalista-autoritária, do topo para o baixo, e
não um conceito democrático de baixo para cima. Assim, tal como as fronteiras,
os limites das províncias cortam ao meio comunidades inteiras. Obviamente, não
é possível nem desejável ter territórios etnicamente homogêneos – a
história das migrações não permite isso –, mas é possível levar em conta
as realidades socioculturais na definição dos escalões territoriais do Estado. No
entanto, no conceito da Frelimo, essas realidades populares não eram
relevantes, não se tratavam de relações sociais originais no seio das
populações, mas de “regionalismo”, “obscurantismo”, “tribalismo”. Não se
reconhecia que os povos de Moçambique tinham organizações próprias:
apresentava-se a população como uma massa humana sem estruturação; era o tempo
do “é preciso organizar o povo”, isto é, fazê-lo aderir em massa à Frelimo, partido-nação
e, em larga medida, à própria nação. Tudo se enquadrava num paradigma de
modernização autoritária que alguns acreditaram sinceramente ser um “rumo ao
socialismo”. Como hoje é largamente reconhecido, foi essa modernização
autoritária que criou as condições de alargamento da base social da rebelião da
Renamo. Os povos de Moçambique, as nações africanas de Moçambique, não
conseguiam entrar no molde uniformizador e homogêneo da nação pós-colonial imposta
pela Frelimo. A própria estrutura do aparelho do Estado foi concebida para uma
nação abstrata, homogênea ou que se tornaria homogênea a qualquer custo.
No entanto, o dito
“marxismo-leninismo” foi abandonado em 1989 pela elite enriquecida da Frelimo
que já não precisava dele para legitimar o seu poder. O princípio do partido
único foi afastado em 1990 e ainda mais enfaticamente em Outubro de 1992 quando
do Acordo Geral de Paz em Roma. Contudo, a ideologia da nação não só una, mas
unitarista e homogênea, não foi abandonada. O Estado central, na capital,
longe, lá no extremo-sul, continuou a pensar que era o produtor de uma nação
pós-colonial contra as realidades bem viventes – embora tenham evoluído
muito – das nações pré-coloniais. É que a produção rápida de uma nação
moderna continua a ser necessária à legitimação do papel da elite num território
que não foi desenhado por mil anos de história, mas pela intervenção de potências
estrangeiras ignorantes das realidades locais.
Imbuída dessa visão de uma nação
de definição espacial colonial e antagônica à pluralidade de nações (pré-coloniais)
no seio de um dado território, a Frelimo atacou sempre a oposição por “colocar em
perigo a unidade nacional”. Em outras palavras, a Frelimo não atacava a
oposição por ser contra o seu programa – o que seria muito natural –,
mas pelo simples facto de ser oposição. Como a Frelimo é a nação, quem não faz
parte da Frelimo não faz parte da nação, ou pelo menos causa um risco à nação.
É a própria legitimidade da existência de qualquer oposição que é posta em
causa. É a antípoda da posição do governo de esquerda do presidente Evo Morales
na Bolívia, onde a nova Constituição proclamou o “Estado Plurinacional da
Bolívia”, embora permanecendo como Estado unitário (mas não homogêneo).
Diversidade
estrutural
A realidade sociocultural de
Moçambique abrange uma larga heterogeneidade étnica, social, cultural,
religiosa, regional, fruto da história e tudo isso numa permanente trajetória
de transformação (não há “identidades fixas”). Numa situação deste tipo, é
sempre muito difícil poder haver uma representação política única que expresse uma
situação plural. Foi preciso séculos de absolutismo monárquico e depois de
jacobinismo republicano para conseguir isso (e nem totalmente) em meu país, a
França – mas trata-se de um país no centro do capitalismo, onde o Estado
teve possibilidades muito maiores de promover o progresso generalizado (embora
desigual) para a população, o que permitiu a identificação dos cidadãos com
este Estado-nação. Tal processo é muito mais difícil na periferia do
capitalismo. No caso de Moçambique, a identificação perene dos habitantes com o
Estado – identificação esta que, com o decorrer do tempo, poderá se transformar
numa identidade nacional complexa (a de uma nação de nações) – requer que a diversidade seja levada em conta
estruturalmente e politicamente.
A forte cultura política da
Frelimo não permitiu isso pelas razões já apontadas e também por um de seus
corolários: the winner takes all, o
vencedor leva tudo. Uma vez que a Frelimo tem oficialmente a maioria – não
farei referência aqui à questão da fraude eleitoral –, o que, na interpretação
desta corrente política, significa que ela é sinônimo da expressão da nação que
deve ser una, é natural para a Frelimo que ela domine a totalidade do país,
incluindo as zonas que votaram sempre para um partido da oposição. Esta
dominação política, conjugada a importantes desigualdades econômicas e sociais,
faz com que populações acabem por sentir o poder da Frelimo como sendo estrangeiro
– o “partido do Sul”, embora isso só seja parcialmente verdadeiro –,
como estranho à sua maneira de ser e estar, como um novo colonizador praticando
um “endocolonialismo” (conceito do politólogo angolano Nelson Pestana). Não é
interessante aqui saber se, “objectivamente”, isso é “verdade” ou não: o
importante é constatar que isso é sentido, vivido. Pois, uma situação de fortes
desigualdades econômicas e sociais, num espaço que historicamente não é
nacional, onde a população de largas regiões do país vota sempre a favor de
partidos de oposição, permanecendo eternamente “gerida” pelo partido contra o
qual votou, tal situação é explosiva. Logo, só há uma alternativa: negar ou
aceitar a história; negar ou aceitar a diversidade regional; esmagar ou
democratizar.
Autarquia
e democracia
Depois das eleições de 15 de outubro
de 2014 cuja legitimidade não foi reconhecida pela Renamo, o partido presidido
por Afonso Dhlakama propôs a criação de uma “República das Regiões do Centro e
Norte de Moçambique”. Não tinha a comunidade internacional reconhecido a
República do Sudão do Sul? No entanto, a Renamo mudou rapidamente sua proposta
para “regiões autônomas” nas províncias onde obteve maioria, apesar da alegada
fraude. Como era de se esperar, isso criou acesa polêmica por quebrar a sagrada
“unidade nacional”. Neste debate, tentou intervir o meu colega Gilles Cistac, querendo
mostrar que não se tratava propriamente de uma autonomia podendo engendrar separatismo,
mas de uma autarquia. É bom aqui
lembrar que autarquia não é sinónimo
de poder local, mesmo se, na maioria das vezes, este foi o caso por se tratar,
por exemplo, de municípios. Uma autarquia (“autárkeia” em grego) é uma situação
onde a gente comanda a si mesma, é um poder autossuficiente. Uma autarquia é
sempre autárquica em relação a outro nível de poder: por exemplo, um município
eleito é autárquico em relação ao governo do distrito (representante local do
poder central). O próprio governo de Moçambique é uma autarquia em relação a
poderes continentais ou internacionais (na economia, fala-se de autarcia no caso de uma região cuja
economia vive sem trocas com o exterior).
Pois, ao contrário do que
escreveu o meu colega André Thomashausen em artigos recentes, não é heresia
pensar que uma região, ainda que vasta, possa ser uma autarquia, mesmo se na
história recente de Moçambique este conceito só foi utilizado em situações de
poder local – ainda assim, a Frelimo tentou enfraquecer o conceito,
nomeando governos de distrito rivais de municipalidades vencidas pela oposição,
duplicando localmente funções governamentais.
Uma coisa é certa: isto entra
em choque com a tradição política da Frelimo porque põe em causa a regra do “the winner takes all” (o vencedor leva tudo) e contesta a homogeneidade da
nação. Mas as tradições políticas não são feitas para serem modificadas um dia,
mais cedo ou mais tarde? Uma coisa é menos certa, a de saber se a proposta da
Renamo é constitucional ou não. O professor André Thomashausen pensa que não é
constitucional, mas, ao que me parece, na base de uma confusão entre autarquia
e poder local. No entanto, não sou um constitucionalista e não tenho a resposta
ao problema por ele levantado. De todo modo, penso que na prática não existe
uma dificuldade constitucional: com efeito, na medida em que a bancada
parlamentar da Frelimo tem maioria absoluta no Parlamento, a proposta da
Renamo, mesmo se fosse constitucional, precisaria de um entendimento entre os
dois partidos. E se houver um entendimento entre os dois partidos, como ambos
têm mais do que dois terços dos assentos parlamentares, seria possível proceder
uma revisão constitucional, se necessário. Pois, a questão constitucional não
“chumba” a proposta da Renamo.
Unidade
ou unicidade nacional?
Há quem pense que a proposta
da Renamo representa um grande perigo para Moçambique como país e como Estado. Ao
contrário, pode-se argumentar que ela é uma chance para este país e para este
Estado porque assim seria possível contestar dogmas políticos que nunca
permitiram a expressão pacífica da diversidade estrutural neste espaço de
definição colonial chamado Moçambique, além de viabilizar a desconstrução de um
modelo de aparelho de Estado inteiramente pensado para transmitir a ordem do
topo para o baixo.
Mas como podem ver, já não
estou aqui a falar somente das “regiões autônomas da Renamo”, mas das regiões do
país inteiro! Com efeito, se for levada em consideração a possibilidade de atribuir
poder regional ao partido que detém a maioria em determinada região e isso significar
maior democratização, então por que falar somente das regiões de maioria
renamista e não de todas as regiões? Não seria a proposta da Renamo aplicável a
todas as regiões do país? Paradoxalmente, isto seria mais facilmente admissível
pelos apoiadores da Frelimo: como já disse, estes têm uma forte tradição
política de unicidade e o que é muito chocante para eles é a hipótese de haver
doravante dois tipos diferentes de administração no país. Se a proposta da Renamo
for estendida para todas as províncias, encontrar-se-á de novo a situação de um
modelo administrativo comum para todo o país. De novo, haverá só uma lei para
todo o país, porém uma lei de aplicação regionalizada.
Regionalização
versus federalização
Bem, falei aqui em
regionalização e não federalização. As regiões autárquicas – isto é,
regiões com poder próprio – propostas pela Renamo não seriam como as
províncias do Canadá ou os estados do Brasil, que têm capacidade legislativa, o
que significa que, nesses países, há dois níveis de legislação. As regiões
autárquicas propostas em Moçambique não pressupõem poderes legislativos, devendo-se
aplicar a mesma legislação no país inteiro. Todavia, tais regiões teriam poder econômico
e regulamentar regional, enquanto que fiscalmente a autonomia seria parcial.
Além disso, a federalização
apontaria um problema considerável: federar o quê? Federar as províncias
criadas pelos portugueses sem respeito algum pelas realidades socioculturais
dos povos dessas aéreas? Antes de federar e federalizar, todas as regiões
deveriam ser reformuladas para que tivessem um real significado para as nações
pré-coloniais nelas inseridas. A “autarquização” das províncias não proíbe
pensar numa redefinição dos limites regionais no futuro, mas permite começar
com as regiões tais como elas estão.
Em sua proposta, com certeza
no intuito de facilitar as coisas, a Renamo quase que copiou a estrutura do
poder autárquico municipal, expandindo-o à escala das regiões. Assim, seria mais
fácil aplicar o modelo porque ele já existe. No entanto, uma região não é um
município. Já se vê problemas de concorrência de poderes quando o governo
central duplica o poder local, nomeando um governo do distrito que possui competências
inclusive na aérea urbana da municipalidade. À escala regional, seria um
pesadelo permanente e com um custo financeiro importante: na prática, para
muitos assuntos, haveria dupla administração, politicamente rivais quando for o
caso de dois partidos diferentes... Paradoxalmente, a proposta da Renamo permanece
fiel a um dogma da Frelimo, que é a presença direta do poder central em
qualquer parte do país. Assim, numa situação de autarquia regional, o governo
central teria que manter o seu próprio governo regional em paralelo.
Democratização
territorial
Mas se a dinâmica for de uma
democratização territorial, rompendo-se com o dogma da homogeneidade política
do país, por que é que um governador eleito não poderia representar o poder
central, incluindo no caso de ser ele membro de um partido de oposição? Mesmo
eleito, mesmo da oposição, um governador terá que obedecer às leis do país e às
regulamentações nacionais; mesmo eleito, ele será o escalão regional do Estado
central, ao mesmo tempo em que expressão regional das sociedades locais; ele
terá que prestar juramento a Constituição. Ele terá uma autonomia de gestão e
planificação considerável, mas dentro de uma legislação unificada à escala do
país. Obviamente, como disse, para que isso funcione bem, supõe-se um contexto
de democratização, onde o Estado não é a coisa de um só partido e onde o
aparelho de Estado é despartidarizado. A lógica última seria proibir que um
Presidente da República fosse ao mesmo tempo presidente de um partido – visto
que isso significa a partidarização máxima no topo do Estado... Bem, sei que
não é essa a situação atual em Moçambique, mas isto não invalida a ideia de
governadores 1°) eleitos e 2°) dirigindo a totalidade da administração regional
(que ficará assim unida, sem dois ramos paralelos). O Estado central ficaria com
intendentes regionais, sendo eles inspetores da legalidade, um pouco como os
prefeitos em França, cujo poder não interfere nas atribuições importantes dos presidentes
das Assembleias dos “departamentos” (distritos) e das regiões. O Estado central
ficaria também com as estruturas soberanas (forças armadas e de segurança,
polícias das fronteiras, alfândega, etc.).
Esses governadores poderiam
ser eleitos, quer em sufrágio direto, quer de forma mais simples, pelas
próprias assembleias regionais. O poder das assembleias regionais deveria ser
fortemente acrescido, com poder de nomear os administradores de distritos e
chefes de posto, enquanto o “gradualismo” ainda não permitir a municipalização
de todo o território. Como propõe a Renamo, as regiões deveriam ficar com uma
parte das receitas dos impostos, etc. Isto tudo desenha uma situação de regiões
fortes num Estado unitário descentralizado. Estamos longe da secessão, mas
também longe dos mitos políticos que governaram Moçambique durante os quarenta
primeiros anos da sua independência.
Os dias estão contados: a
Renamo sente que tem que responder, sob pena de tudo perder como quase
aconteceu no período do seu enfraquecimento maior em 2008-2012, aos desejos da
sua base social, que já não aguenta mesmo ser 100% “gerida” pela Frelimo
quando, em regiões inteiras, a população vota sempre contra ela, num país cuja
“nacionalização” (no sentido literal) ainda é fraca. Assim sendo, aceitar a
heterogeneidade do país em termos estruturais e políticos parece uma viragem cultural
desejável. Isto é: aceitar a história para não haver nem vencidos nem vencedores,
apenas os povos de Moçambique.
30 de Março de
2015, Michel Cahen, historiador
Centro de Pesquisa
“As Áfricas no mundo”
CNRS-Instituto de Estudos
Políticos de Bordéus (França)
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