Exclusivo: activistas angolanos escrevem da prisão
Em Luanda, há precisamente um ano, 13 jovens angolanos reuniam-se, como era hábito, para discutir política. Era sábado e estavam numa das salas de aula ligadas à residência de Alberto Neto, líder do extinto Partido Democrático Angolano e o terceiro candidato mais votado nas eleições de 1992.
Nesse dia, tinham na agenda um dos capítulos do livro/brochuraFerramentas para Destruir o Ditador e Evitar Nova Ditadura –Filosofia Política da Libertação para Angola, do académico Domingos da Cruz, criada a partir de discussões da obra de Gene Sharp, Da Ditadura à Democracia. Nem uma hora tinha passado desde o início do debate quando cerca de uma dezena de homens armados entraram na sala, dando-lhes ordens para deitarem a cabeça nas carteiras e levantarem as mãos (houve quem filmasse a operação e colocasse o vídeo na Internet).
Na sala estavam os activistas Sedrick de Carvalho, Fernando Tomás "Nicola Radical", Luaty Beirão, Afonso Matias "Mbanza Hamza", Hitler Jessy Tshikonde "Samussuku", José Gomes Hata, Benedito Jeremias "Dito Dali", Nelson Dibango, Arante Kivuvu, Nito Alves, Nuno Álvaro Dala, Inocêncio António de Brito "Drux" e Albano Evaristo Bingo Bingo.
Sem mandado de captura, os polícias anunciaram que os jovens tinham sido presos em "flagrante delito". Domingos da Cruz e o tenente Osvaldo Caholo seriam detidos nos dias seguintes. Rosa Conde e Laurinda Gouveia, as únicas mulheres, aguardaram julgamento em liberdade, mas acabariam por ser condenadas também a 28 de Março: os 17 tiveram penas de entre dois anos e três meses e oitos anos e meio de cadeia pelos crimes de "actos preparatórios de rebelião e associação de malfeitores".
Há um ano detidos, os activistas foram, desde então, transferidos várias vezes de prisão em prisão – chegaram a aguardar julgamento em domiciliária. A maioria está agora no Hospital Prisão de São Paulo, em Luanda. Publicamos alguns testemunhos do que tem sido este ano, enviados em exclusivo ao PÚBLICO. Entre textos mais poéticos e outros mais duros, o sentimento presente é que não se arrependem de lutar.
O depoimento é curto, mas nele Nelson Dibango, 33 anos, confessa que a prisão e injustiça, aliadas ao emaranhado jurídico, o ajudaram a ter um maior "sentimento de conexão". Num testemunho muito pessoal, diz: "Estou atento porque durante anos tornaram-me em ovelha capaz de conviver com os lobos e saber o seu uivo. Batem em mim e retribuo com um sorriso não fingido. Partem-me a cabeça e terei provas para mostrar no dia do vosso julgamento. Até agora o meu maior crime foi tirar a venda dos olhos do povo, pedindo justiça e justeza na governação. Os ferros e nomes feios foram sempre as respostas vindas do cadeirão máximo."
Clarifica que em nenhum momento pediu ou desejou "morte ao tirano", mas apenas que "seja devolvida a dignidade" ao povo angolano. "Não pararei de clamar até que a lei funcione para uns e para outros como uma só. Os meus clamores só pararão quando os intelectuais deixarem de ser reféns dos políticos só porque estes detêm o poder económico. Mesmo que isso me custe a morte, cadeias, porrada. Sou pela fé e creio que, quando menos se esperar, a mudança acontecerá e então se cumprirá o que alguém previu como profecia: a causa justa dos povos triunfará."
Nuno Álvaro Dala, professor universitário de Pedagogia, que esteve em greve de fome durante um mês, escreveu duas páginas onde diz que “estar preso e acusado de actos preparatórios de rebelião e atentado contra o Presidente é uma dura experiência que demonstra o estado de conflito e ruptura”. Ruptura “entre os angolanos como povo e o regime ditatorial de José Eduardo dos Santos”. Defende: “Em democracia não há presos políticos, logo a presente situação reflecte o carácter autoritário, cleptocrático de um regime perverso cuja agenda consiste em satisfazer os interesses, desejos e caprichos pessoais do ditador e seus asseclas.”
“(…) A presente experiência evidencia o profundo desinteresse e falta de compromisso do regime em respeitar os direitos, liberdade e garantias dos cidadãos, o que justifica que os angolanos exerçam o direito natural de resistir à tirania e à opressão e recuperar e devolver Angola aos angolanos”.
Relata também este ano como uma experiência de várias realidades: “De um estado inenarrável de sofrimento físico (doenças diversas) e psicoemocional (à data de detenção fui separado da minha filha, então com três semanas de vida, e da minha família)” a um “estado de tremendo desenvolvimento da minha estrutura de valores e princípios, assim como de um acrescido sentido de responsabilidade em ser coerente e consequente com a causa pela qual me bato há anos.”
A verdade é que “nunca estive tão determinado e seguro da minha luta como agora”, afirma. “Ao mesmo tempo compreendo que o melhor caminho para Angola consiste na construção e implementação de um pacto de nação funcional no qual o sentido de Estado e o perdão sejam elementos fundamentais. A transição do período eduardiano para o período de renascimento de Angola deve ocorrer sob o princípio da participação inclusiva, isto é, todas as sensibilidades devem contribuir para que a salvação de Angola seja uma realidade”. Para isso “é necessário que todas as representações da sociedade tenham voz e acção no esforço de transformar Angola num Estado-nação com instituições fortes: um Estado verdadeiramente democrático de direito e de bem-estar social.”
Luaty Beirão, rapper, o primeiro a entrar em greve de fome chamando a atenção internacional para o caso ainda em finais de 2015, refere-se a estes 12 meses como um “ano tão estranho”. Descreve: “Num repente vi-me compulsivamente privado do meu tesouro, Luena [a filha], da minha mulher, da minha família, da minha rotina, dos amigos, dos palcos e cingido a limites murados percorríveis com três passos. Como se tivesse sido raptado por aliens e transportado para alguma dimensão paralela. (…) Claro que tive a vida muito facilitada pelo amor incondicional dos meus e pela solidariedade dos demais, servindo-me de estímulo e tranquilizante, reforçando as minhas convicções.”
Conta as condições da sua detenção de há um ano em que foi “propositadamente colocado, com seis companheiros, na cadeia mais distante do centro, com as práticas de revista mais humilhantes para os visitantes, incluindo a obrigação de se porem nuas, para revista, senhoras de idade avançada. Deduzo, e pode ser que esteja equivocado, que tudo era feito para desencorajar os nossos familiares e amigos de nos visitarem – mas, estoicamente, eles nunca desarmaram.”
Recorre à lei, explica que ela “estipula limites tanto ao confinamento à solitária como aos prazos de prisão preventiva renováveis mediante fundamentada solicitação do Ministério Público”. Mas, “como é apanágio de gente arrogante que nos desgoverna há 40 anos, nenhum destes prazos foi observado: 21 dias passaram a 90 e 90 a 180 dias, só porque sim.”
Houve “um diversificado bouquet de protestos” e em Dezembro “o regime decidiu dar um pouco de folga à corda e tornar-nos os primeiros beneficiários de uma lei aprovada às pressas, concedendo-nos a ‘generosidade’ de uma medida de coacção mais ligeira: a prisão domiciliária.” E enfim, os activistas puderam passar o Natal com a família. “Nada paga o poder reencontrar-me, ainda que com prazo de validade, com a maior riqueza que possuo nesta vida, a minha Luena. Parecia magoada pela inavisada, súbita e prolongada ausência e pôs-se a berrar como se estivesse diante de um fantasma vindo do além. Partiu-me o coração e tive de empenhar-me numa reconciliação que, felizmente, não levou muito tempo.”
Depois veio o julgamento, que foram “levando da única forma que ele devia ser encarado: uma charada judicial mal-amanhada e incapaz de disfarçar a sua natureza política ou, por outras palavras, uma autêntica palhaçada”. Pelo tribunal compareceram “descalços, com inscrições nas camisolas, com roupa branca ou com estampagens do próprio rosto maquilhado de palhaços”. E o tribunal “considerou suficientemente provado que teríamos cometido o crime, pelo qual não fomos julgados, de associação de malfeitores, o que justificaria as penas que acabaram por nos ser aplicadas.”
Convicto, Luaty Beirão diz: “É claro que pensando no sofrimento pelo qual as nossas famílias e aqueles que nos amam têm de suportar (….) é uma tragédia. Mas se nos focarmos naqueles que são os nossos objectivos maiores, os nossos sonhos para este país, é um pequeno sacrifício que conseguimos com a nossa dignidade intacta. Sinto-me mais livre dentro do meu cárcere sabendo que vim aqui parar por assumir as minhas convicções, do que a maior parte dos meus conterrâneos presos e escravizados pelo medo de pensar e de verbalizar as suas ideias”.
José Gomes Hata, licenciado em Relações Internacionais, professor do 1.º ciclo, também confessa que seria capaz de repetir “todas as vezes que fossem necessárias” a experiência da prisão se esse for "o preço a pagar pela democracia.” Congratula-se com o facto de existirem “angolanos dispostos a unir esforços em prol de valores nobres para a construção do Estado de direito e democrático, distante do nepotismo, clientelismo e presidencialismo informal”. E acrescenta que “o momento exige atitude concreta da nossa parte (jovens). Após a tomada de consciência, acções enérgicas exigem-se. Não esperamos nada de ninguém senão de nós mesmos.”
Hata acredita que falta pouco para o fim do regime ditatorial “e a sua atitude concorda com isto mesmo, semelhante a um gato encurralado que aparenta ser leão”.
Nito Alves, estudante, e um dos primeiros a ir para a prisão ainda antes de o julgamento terminar, pelo crime de injúria aos magistrados, diz que a cadeia de Calomboloca foi o momento mais difícil por que passou, sofrendo ele e a família várias humilhações. Diz-se “sereno, calmo, tranquilo”. Afirma que tem a consciência de que a sua liberdade depende da vontade do Presidente da República. “Não acredito no poder judicial do meu país.”
E continua: “Sei que me encontro preso e sinto tanta saudade da liberdade e dos meus familiares, mas tenho de ter comigo mesmo a minha moralidade sem nunca esquecer as minhas convicções políticas, revolucionárias, cívicas." Tece duras críticas à “cobardia moral” do parlamento angolano que “legitima o ditador” e aos “intelectuais académicos angolanos que vendem os seus cérebros ao partido no poder”.
Benedito Jeremias (Dito), funcionário público, licenciado em Administração Pública e Ciência Política, escreveu a carta mais extensa – seis folhas. Lembra que a sua prisão foi motivada por questões políticas e que os jovens estavam reunidos para debater as “técnicas de luta não violenta nos escritos da obra do norte-americano Gene Sharp”, um exercício que é legal segundo a Constituição. “O único crime cometido até agora é pelo facto de expressar um pensamento diferente contra o sistema opressor que há muito se instalou no meu país.” E contesta: “O crime pelo qual fomos indiciados não se provou junto daquele vergonhoso tribunal. A representante do Ministério Público pediu ao senhor juiz Januário Domingos que fossemos absolvidos [de actos preparatórios de atentado contra o Presidente] por entender não haver provas suficientes para o efeito. Mas pede ao juiz para sermos condenados com as penas que vão de dois anos e três meses a oito anos e meio de prisão efectiva por formarmos uma associação de malfeitores!”
A condenação tem como objectivo justificar e legitimar “as acções arbitrárias que o regime tem levado a cabo constantemente”, afirma. “Faz parte da natureza deste regime criar factos, cenários para desviar a atenção do povo dos assuntos mais importantes (…) O regime destruiu os princípios fundadores da separação de poderes, (...) converteu os magistrados judiciais em lacaios, serve-se da tradicional polícia, da lei, do exército e dos tribunais para combater e oprimir todos os defensores de direitos humanos em Angola”.
Diz estar calmo e com energia para continuar a lutar para conquistar a sua liberdade e a dos angolanos. “A vantagem da cadeia é que ela te dá tempo suficiente para reflectir e redesenhar tácticas de luta contra o verdadeiro opressor”. E conclui: “Não há nenhuma borracha que apagará a tinta da liberdade, a tinta da nossa história. A história do povo angolano também é marcada pela luta contra a dominação, exploração, a defesa do solo e pela dignidade de todo o angolano. Neste contexto, não será diferente com o regime eduardista, vamos continuar a lutar para a democratização do Estado angolano.”
Inocêncio de Brito, estudante na Faculdade de Economia na Universidade Católica de Angola, em Luanda, diz sentir-se “cada vez mais consciente” dos seus direitos e “da necessidade urgente de se ter uma Angola melhor, sem miséria, sem corrupção, sem repressão, livre de todos os males que ainda a enfermam”.
Confessa que a “nível pessoal e familiar muitos projectos ficaram relegados com a prisão e tortura psicológicas” e que isso o afectou a si e à família. “Sinto-me livre de consciência pelo facto de não ter cometido nenhum crime.”
Por outro lado, considera que a sua prisão contribui “para que se mude o estado de coisas que se vive em Angola”. E conclui: “Não tem sido fácil enfrentar esta situação calamitosa. Mas a solidariedade nacional e internacional têm-me fortificado bastante, assim como têm contribuído para o crescimento interior, reafirmando a ideia de que quando lutamos por uma causa justa nunca estaremos sós”. Com Ana Dias Cordeiro