domingo, 26 de junho de 2016

A cidade é um grande livro aberto




– afirma o Dr. César Cumbe, co-autor do livro “Ler, Escrever, Agir na Cidade: Escritas Urbanas” recentemente lançado na capital do país e que já tem tradução francesa
“As ruas de Maputo são todas elas museus abertos das marcas que consumimos aqui.
Se fores a ver o que é que as pessoas escrevem nos muros, nas barracas, nas viaturas, ficas a saber o que é que realmente está a acontecer, qual é o temperamento das pessoas, o que é que lhes vai na alma”. Estas são as palavras do Dr. César Cumbe, docente da Universidade Pedagógica, quando lhe pedimos para nos falar muito sucintamente do livro “Ler, Escrever, Agir na Cidade: Escritas Urbanas”, de que ele é co-autor e que foi recentemente lançado na capital do país e já com tradução francesa.
Em entrevista que concedeu ao domingo sobre a sua obra, César Cumbe afirma que a escrita urbana aparece como “acto de comunicar sem mostrar a cara, sem sequer assinar o texto. Há muita coisa delicada que acaba exposta no espaço público. Tu circulas na cidade de Maputo e olhas com atenção algumas escritas nos “chapas” para te aperceberes disso. Com base nessas escritas, podes saber quais são as novelas que estão a correr, podes saber quais são os grupos musicais ou as músicas de actualidade, americanas e/ou nacionais em voga. Podes saber as músicas que estão “a bater”, como se diz aqui. Mas também podes saber quais são as línguas que circulam, que são faladas aqui na cidade de Maputo. Essa questão de visibilidade é muito forte”, explica Cumbe.
O entrevistado define as escritas urbanas como aquelas que são visíveis, legíveis e que são públicas. “Elas permitem ao cidadão anónimo tornar-se visível e audível”.
“A cidade está repleta de dizeres e proibições”, afirma. Em cada esquina encontramos placas e plaquetas do tipo "proibido pisar a relva", "proibido estacionar”, “proibido fazer xixi".
E conclui: “a rua, na verdade, molda a estrutura, aquilo que é a nossa vivência, aquilo que muitas vezes é difícil abordar directamente no espaço público, conseguimos falar disso na rua sem derramar sangue”.
Acompanhe a entrevista com o académico em discurso directo:
Dr. César Cumbe, lançaste, em co-autoria, com outras duas investigadoras, nomeadamente, Béatrice Fraenkel e Francesca Cozzolino, o livro "Escritas Urbanas". Pode-nos falar da essência do mesmo?
No essencial, o livro traz ao público uma parte dos resultados das nossas pesquisas sobre esta problemática da escrita, mas também queremos trazer ao público uma espécie de debate e sensibilização para tomarmos um pouco de atenção e consciência sobre esta questão da escrita, porque muitas vezes, quando falamos da escrita, há uma tendência de reduzi-la ao seu lado formal, escolar e a prática mostra que ela, entanto que maneira de agir, entanto que acto, está muito mais além daquilo que temos como percepção prévia. Na verdade, o acto de escrita tende a ser mais visível nas nossas cidades, que ao fim ao cabo, estas escritas urbanas, não só se apresentam como textos em si, que podem ser lidos nas diferentes perspectivas, como também albergam uma infinidade de textos.
Que escritas são estas?
Temos o exemplo dos profissionais da escrita, que seriam por exemplo os publicitários, pessoal de designer, mas também os profissionais que elaboram placas, toponímia das cidades, enfim, uma série de textos que partilham o mesmo espaço, mas com diferentes motivações, diferentes maneiras de construção. Depois temos o próprio cidadão comum que acaba tendo este gesto gráfico de usar do espaço público. Há este paradoxo de a cidade ser ao mesmo tempo um espaço controlado e um espaço livre. É ao mesmo tempo um espaço disponível em que cada um pode fazer o uso de maneira oficial ou oficiosa, mas com o objectivo de ser lido ou na medida do possível, ser ouvido.
O que são escritas urbanas?
Por escritas urbanas nos referimos às escritas expostas que são visíveis, legíveis e que são públicas. Elas permitem ao cidadão anónimo tornar-se visível e audível e, quem sabe, se calhar, com um pouco e chance, ser ouvido. Portanto, essa é que é a definição muito geral. A escrita é definida como um acto público. A partir do momento que alguém escreve é porque há esta vontade, esta motivação de ser lido e se possível ser ouvido. Então, as ruas, para além daquelas rotinas que conhecemos, são um lugar de manifestação. Os sociólogos definiam a rua como um laboratório social. Esta questão da rua como um laboratório social, para a África contemporânea tem mais um elemento. Muita gente ainda vê a África como aquela de tradição oral, mas a África contemporânea já conquistou o império da letra e esta letra é vista a vários níveis. Quando aqui dizemos cidadão comum, estamos a referir-nos ao pedreiro, carpinteiro, mas também ao médico tradicional e até ao automobilista que pega na sua viatura e escreve lá as mensagens.
Estas mensagens têm grande significado…
À primeira vista, as mensagens são banais, marginais, quer dizer, não fazem nenhum sentido. Mas quando a gente analisa com algum cuidado, quando a gente as vê com alguma sensibilidade ecológica, de não definir que este é marginal, não tem interesse, tu vês que pode ter um suporte marginal, mas a escrita em si não é marginal. O cidadão comum encontra um espaço, que não é necessariamente para escrita, pega nele para poder se expressar. Então, essa expressão, neste suporte que não está destinado para a escrita, faz muito sentido. Há ali muitos ensinamentos. Há ali muita coisa. Achamos que ninguém se pode enganar daquilo que está a sentir. Nós podemo-nos enganar com a interpretação, mas ninguém se engana naquilo que sente. Nós podemo-nos enganar na interpretação, podemos não perceber quais são as suas motivações, mas o que ele sente está lá.
SENTIMENTOS DOS CIDADÃOS EXPOSTOS NA RUA
O cidadão comum comunica os seus sentimentos por escrito na rua?
A escrita urbana aparece como acto de comunicar sem mostrar a cara, sem sequer assinar o texto. Há muita coisa delicada que acaba exposta no espaço público. A rua é este elemento chave, é um lugar vivo. Esta metáfora de laboratório social é muito forte. O pesquisador, sobretudo o pesquisador moçambicano, não me parece ainda estar muito atendo a estas práticas na rua que se calhar poderiam ajudar a muitos esclarecimentos.
 O moçambicano escreve na rua, expressa os seus sentimentos na rua, ele não é assim muito calado, como se diz?!
Essa frase famosa de que o moçambicano é muito calado não me parece corresponder à realidade, pois a escrita diz o contrário. Há coisas paradoxais: diz-se que o moçambicano não escreve, o africano não escreve, em particular os jovens, mas ao mesmo tempo temos esta massa de escrita, esta densidade de escrita, com tendência de aumentar na rua. É claro que temos este desafio para o pesquisador de que estas escritas na rua são frágeis e efémeras: hoje está lá, amanhã, já não está. Está outra coisa. Portanto, se não há um acompanhamento de tentar perceber o que é que lá está, acabamos não acompanhando nada, ficamos perdidos.
Como é que surgiu a ideia do livro?
A nossa hipótese de trabalho à partida, é de considerar a escrita como um elemento motor para compreender as dinâmicas em curso. Portanto, sejam elas económicas, sejam elas políticas, sociais porque se estiver hoje a ver as ruas de Maputo são todas elas museus abertos das marcas que consumimos aqui. Se fores a ver o que é que as pessoas escrevem no muro, nas viaturas, ficas a saber o que é que realmente está a acontecer, qual é o temperamento das pessoas, o que é que vai bem. Mas se fores num circuito oficial, ninguém vai ousar dizer-te nada. Mas a escrita tem este poder de permitir à pessoa dizer aquilo que lhe vai na alma sem mostrar a cara. Acho que este é um dado muito forte.
Este é um livro das escritas da cidade de Maputo?
Não só considera a cidade de Maputo, a sua história, mas também outros espaços urbanos. Na cidade de Maputo, nós nem sempre tivemos esta paisagem que existe actualmente, porque a taxa de analfabetismo era outra. As pessoas não sabiam ler e nem escrever. E também as vivências: o que tinham não é o que se tem hoje. Reparando nos arquivos dos fotógrafos, vemos que, afinal naquela altura, a escrita, como uma possibilidade de expressão, já estava lá. Isso dá para ver, por exemplo, nos arquivos do Centro de Documentação e Formação Fotográfica (CFF), nas fotografias dos fundos, em que há lá, as manifestações dos estudantes da Universidade de Lourenço Marques tinham escritas aparentemente marginais. Criaram panfletos onde escreviam todas aquelas denúncias que estão estampadas com mensagens que lhes vinham da alma. Escreviam e não assinavam, mas a mensagem estava lá. Então, é um pouco por isto que surgiu a iniciativa de trabalharmos sobre a escrita urbana.
"Este livro realça a cultura gráfica da cidade, a cidade de hoje e a cidade de ontem, a cidade da escrita caracterizada". Estou a citar o que está lá escrito…
A ideia do livro tem uma história muito longa, porque, à partida, quando acabei a minha formação de Doutoramento, tive como desafio, na Universidade Pedagógica, dar uma cadeira de Análise do Discurso e a primeira constatação que me desafiava já há muito tempo era saber o que o nosso estudante lê. Coloquei-me o desafio sobre como é que posso abordar questões teóricas ao mesmo tempo fazendo os estudantes trabalharem, pegando naquilo que está disponível. Será que essa constatação de que o nosso estudante não lê é válida só para livros? É valida para os jornais? É válida para muita coisa? Mas, ao mesmo tempo, dei-me conta de que a questão do discurso, do texto, existe ao ar livre, só que não de maneira documentada. Eu já vinha observando isso, e decidi lançar-me esse desafio de pôr os próprios estudantes a observarem os textos e aplicarem as ferramentas teóricas que oferecia na sala de aulas. Era motivador. Foram fazendo os trabalhos de maneira muito divertida.
Quando é que isso começou?
Isso começou em 2009, depois da minha tese. Eu já tinha um calhamaço de dossiers de trabalho de estudantes, para além do próprio meu trabalho. Portanto, já tinha olho nisso. Ia documentando. Então decidi dar um outro rumo a este trabalho do campo dos estudantes. Como tenho uma parceria científica com as duas co-autoras do livro, Béatrice Fraenkel e Francesca Cozzolino, pertencemos ao mesmo centro de pesquisa, que é Centro de Antropologia de Escrita na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris. Na verdade, já somos uma equipa de pesquisa há muitos anos. No âmbito desta parceria científica, eu achei interessante valorizar esse trabalho dos estudantes para dar outro rumo ao mesmo. Os meus estudantes fizeram a análise de discurso dessas escritas, numa perspectiva de análise de discurso tanto formal, assim como informal. Mas, ao mesmo tempo, eu estava consciente das outras dimensões, como a dimensão estética, a dimensão de arte, pois a escrita não é só esse olhar académico. Então, a partir desse trabalho dos estudantes e do meu próprio trabalho, tive essa iniciativa de trocar impressões com as minhas duas colegas. Eu disse a elas: “olha, nós em Maputo, por mais incrível que pareça, apesar de ser África tradicional há um manancial de escritas. Então, eu penso que seria interessante no âmbito das nossas pesquisas, tentarmos trazer um olhar colectivo em torno desta escrita”. Assim desenhamos o projecto. O desenho do projecto consistiu em apreciar o trabalho que os meus estudantes que aqui já tinham feito. Eles fizeram muitos dossiers que estão arquivados sobre essas escritas. Chegamos à uma conclusão de que havia um manancial muito importante quer em termos de volume, quer em termos de amostra significativa daquilo que os estudantes colheram, para além dos próprios meus trabalhos.
Assim, achamos que seria útil cruzar esta perspectiva com a perspectiva de análise desses trabalhos feita pelos estudantes franceses em design. Estes usariam mais a questão da tipografia e da grafia e não necessariamente a análise discursiva ou linguística, porque não conhecem até as línguas em que os textos estão escritos. Então os estudantes franceses pegaram na escrita, pequenos textos, quer dos “chapas”, quer das barracas, e fizeram essa análise gráfica. Mas antes de procedermos com essa análise gráfica organizamos um colóquio aqui no Maputo, sobre o significado da escrita no espaço público. Esse foi o nosso tema: “o que significa escrever no espaço público?”.
SEMINÁRIO SOBRE
A ESCRITA PÚBLICA EM MAPUTO
Quais foram os resultados do encontro?
Para organizar esse seminário, essa jornada de estudos, participaram diferentes pesquisadores. No seminário discutimos muito sobre o que significa escrever no espaço público, escrever para quê, afinal de contas não há nenhuma escrita sem finalidade. Portanto, todo o mundo escreve com algum objectivo. O que pode acontecer é ignorarmos os objectivos dessa finalidade. Posso, por exemplo, simplesmente ignorar a escrita e achar que é marginal, não tem sentido. Depois desse seminário, nós lançamos este projecto. Tivemos o patrocínio de algumas agências que financiam pesquisas como é o caso de Instituto Francês ao nível da África Austral que patrocinou essa jornada de estudo, porque isso implicou mobilidade das minhas colegas de Paris para Maputo e vice-versa. Passamos à fase seguinte que foi juntar a análise dos estudantes de cá, enquadrando, naturalmente, com o do respectivo professor e a análise dos estudantes franceses, com a perspectiva de design. Juntamos essas duas análises e tivemos os resultados que serviram para fazer uma exposição aqui. Essa exposição foi realizada entre Setembro a Outubro de 2014 e espelhava o ambiente gráfico da cidade de Maputo.
Uma das constatações muito fortes a partir desta exposição e dos resultados da análise dos franceses, é de que eles ficaram muito impressionados com a cultura gráfica que temos aqui na cidade de Maputo. Eles disseram, afinal Maputo é uma cidade letrada por excelência com uma cultura gráfica impressionante. O que é paradoxal se considerarmos as nossas queixas em relação a este assunto. Achamos que para documentar esses resultados todos valia a pena lançarmos essa aventura de livro que agora se efectivou.
Então, assim decidiram fazer o livro…
Sim… foi quando decidimos trazer as escritas urbanas, que na verdade o enfoque é a cidade de Maputo, mas como na nossa equipa temos pesquisadores que cada um trabalha na cidade onde vive e lecciona achamos que seria benéfico para o leitor moçambicano ou outro leitor que tiver acesso ao nosso trabalho perceber qual é a dinâmica das escritas em Maputo, mas também das outras cidades. Neste livro temos Maputo, Pretoria e a cidade de Pau, em França.Aqui vê-se qual é a dinâmica das escritas urbanas, quais são os pontos convergentes e divergentes. Acho que é uma maneira de mostrar que é uma dinâmica que vale a pena abraçar, não é apenas uma pequena curiosidade da cidade de Maputo. Escreve-se numa problemática mais global e na verdade é um movimento que nós pretendemos desenvolver ao nível das outras cidades. Portanto, quanto mais pesquisadores houver nesta linha, melhor ficamos a conhecer um pouco daquilo que é específico a cada cidade. Eu costumo dizer que podemos percorrer toda a cidade superficialmente mas para penetrar a cidade é preciso passar pelas escritas.
Porquê tanto trabalho sobre as escritas?
Por duas coisas: primeiro, porque são escritas que estão concentradas essencialmente nas zonas urbanas. Portanto, a cidade pela definição é um lugar de intercepção, de convergência e de concentração. Se for a ver em termos de densidade, quer demográfica, quer de circulação de pessoas, tens mais gente nas cidades. É lá onde tens mais concentração das escritas. Daí esta designação de “Escritas Urbanas”.
Para nós, o espaço urbano, não é necessariamente naquela dicotomia que os geógrafos costumam definir, de que temos o centro e temos a periferia. Nós quando analisamos a distribuição sócio-espacial das escritas urbanas ou dessas escritas que temos ao nível da cidade de Maputo, vemos que essa caracterização não funciona. Repare que a maior parte das escritas que andam por aqui, muitos dos seus autores vivem na periferia. Muitas dessas escritas encontram-se na periferia. Não é necessariamente porque estás no centro ou na periferia que não vais encontrar essas escritas. Esse é um dado.
Outro dado é que a partir do momento em que se utilizam suportes, como viaturas, tu para leres não precisas de ir ao encontro da escrita, é a escrita que vem ao teu encontro. Aqui temos um dado muito interessante, é que Maputo, ao nível nacional, é a cidade com grande parque automóvel. E vemos que as pessoas usam as viaturas para escrever. Significa que em termos de volume de textos, nós temos mais textos a circular ao nível da cidade de Maputo do que noutras cidades. Então, esta mobilidade em si, coloca esse desafio de dividir a cidade geograficamente, porque o carro está aqui na cidade de Maputo, está na Matola, está em Magoanine. Assim, desconstrói-se o espaço rígido do geógrafo.
CIDADE DE ONTEM
CIDADE DE HOJE   
Quando no livro falam sobre “a cidade de hoje e a cidade de ontem” a quê é que se referem exactamente? 
Cidade de ontem, cidade de hoje. Cidade de ontem, sobretudo, quando estivermos a ver aquelas escritas que são dos anos 50, 60, 70, antes da independência. Nós podemos ver que a natureza das escritas que temos hoje é totalmente diferente. Isso é pela dimensão temporal. No passado, como é que eram as escritas? Vais ver reivindicações, slogans revolucionários, essa era a escrita de ontem. A escrita de hoje é a escrita contemporânea, aquela escrita que é contada pelo cidadão comum.
Agora, por exemplo, olha para a multiplicidade de temas colocados: são infinitos. Seria pretensioso pretender esgotar citando a totalidade de temas que temos lá. Mas, por exemplo, tu circulas na cidade de Maputo, olhando com a atenção algumas escritas nos “chapas”. Com base nelas, pode saber quais são as novelas que estão a correr na cidade de Maputo, podes saber quais são os grupos musicais ou as músicas de actualidade, americanas, nacionais. Podes saber as músicas que estão “a bater”, como se diz aqui. Mas também podes saber quais são as línguas que circulam, que são faladas aqui na cidade de Maputo. Essa questão de visibilidade é muito forte. Daí que ao nível das escritas, há essas três características chaves que os historiadores das escritas, os antropólogos das escritas tendem a sublinhar.
Depois temos a questão de temperamento e de gravidade. Temos muitos temas, por exemplo, a temática de inveja é algo muito recorrente, quer dizer, é muito exposta. Mensagens do tipo: “Juntos contra a inveja”, “Se tens inveja não trabalha”, “porquê tanto ódio?”, isso são as preocupações do dia-a-dia do cidadão, através da escrita. Isso vem ao espaço público.
A rua, na verdade, molda a estrutura, aquilo que é a nossa vivência, aquilo que muitas vezes é difícil abordar assim directo no espaço público, conseguimos falar disso na rua sem derramar sangue.
Mas há também na rua algumas mensagens que provocam reacções negativas. Estou a recordar-me duma que apareceu há uns anos colocada na Baixa da cidade de Maputo por uma cervejeira: “Esta preta é boa” aquilo foi tido como uma mensagem de teor racista, houve barulho à volta do outdoor onde isso estava escrito. Depois apareceu outra assim: “Esta preta passou de boa para melhor” com uma ilustração de uma garrafa no feminino, o que provocou a ira das organizações femininas. Podes comentar?
Aí estamos a falar da questão d publicidade que explora muito a ambiguidade mas também a criatividade, mas também pode chocar as pessoas. Aí temos que ver a questão de interpretação, de percepção de cada um. Eu não tenho a certeza de que essa publicidade seja uma ofensa para todo o mundo. Por exemplo, os destinatários visados nessa publicidade, não acredito que se sintam ofendidos. Eu penso que justamente está aí o mérito das escritas urbanas. É de trazer esse tipo de debates. Isto está exposto ao público. Permite-nos interagir. Permite até ver quais são as nossas sensibilidades. Por isso, eu não acredito que o autor desta publicidade tinha como intenção ofender, mas foi percebido assim! Não tenho a certeza de que os amadores dessa cerveja se sintam ofendidos. Isto para dizer que a questão da sensibilidade, de nos sentirmos ofendidos, isso é o nosso dia-a-dia. O facto de a escrita estar no espaço público permite-nos isso. Deveria permitir-nos dialogarmos, melhor conhecermos qual é o limite das nossas sensibilidades. Aqui estamos a falar duma publicidade profissional, mas temos também muita publicidade não profissional que tem este nível de criatividade. Estou a pensar, por exemplo, na questão da saia curta. Junto a vendedor de crédito encontrei uma escrita assim: “Não há vale, mesmo que venha de saia curta”. Há uma outra que estava estampada num carro: “Não há boleia, mesmo para as que vem de mini-saia”
Se alguém escreve isto, é porque é algo que acontece. Essas escritas acabam sendo contadores, narradores não de histórias imaginárias mas daquilo que acontece normalmente. Eu penso que esse viver juntos no espaço público lança um desafio para diferentes actores, porque nós somos os autores do livro, mas isto junta actores que são determinantes para nos ajudar melhor a dialogar, trocar impressões sobre como é que podemos melhor gerir este espaço público que é definido como cidade. Mas, se for a ver, é muito mais do que isso, porque há escritas que são proibidas ou autorizadas.
….Há escritas proibidas ou autorizadas. É a isso que se referem no livro quando falam de mensagens formais e informais?
Essa questão de formal e informal é um debate muito polémico. É como quem diz comércio formal e informal. Escritas formais ou mensagens formais são aquelas que são autorizadas. Estou a pensar, por exemplo, na questão da publicidade. O município autoriza. Temos também as mensagens das placas, dos nomes das ruas. Mas também temos essas mensagens que aparecem nas paredes, nos muros, nas viaturas. Aí é um outro nível. Muitas vezes temos aí mensagens muito delicadas, cujo teor, às vezes, é meio polémico! Até temos ali outras vezes coisas obscenas. Essas é que seriam escritas ou mensagens informais. Em outras palavras, há estudiosos que fazem distinção entre escritas das autoridades e escritas do povo.
As escritas do povo são aquelas escritas, cujo autor não é pessoa colectiva, uma autoridade. Isso é que seriam as mensagens informais porque a pessoa escreve sem autorização.  Afirmam peremptoriamente no livro que a escrita informal continua marginalizada…
A escrita informal é marginalizada, sim. Eu tenho notado que os estudiosos moçambicanos prestam mais atenção à questão, por exemplo, das escritas literárias formais. Há muitos estudos realizados em volta disso. Mas se for a ver a questão da escrita informal, apesar da massificação, apesar da apropriação da escrita, não tenho conhecimento de muitos trabalhos ou de trabalhos feitos nessa matéria. Significa que é algo que é visto como marginal. O que não é verdade, porque analisando o conteúdo dessas escritas, vemos que têm muito conteúdo. Têm muito ensinamento. Temos, por exemplo, provérbios, máximas. Se formos a tentar perceber o que é que isso significa, vamos verificar que há uma tentativa de educar, denunciar algo errado. Quer dizer, a pessoa não tendo nenhum outro meio, acaba recorrendo à escrita para ver se alguma coisa muda. Em alguns casos a escrita urbana é o ultimo recurso.
O PIOR ANALFABETISMO
Chegaram a trabalhar sobre estas temáticas que estão expostas nas escritas urbanas na cidade de Maputo?
Em termos de temáticas, é mais fácil interrogar que temáticas não figuram do que tentar descrever aquelas que estão expostas. A temática política está lá, a mulher está lá, a família está lá, praticamente tudo está lá! Quer dizer, não há nenhuma área, não há nenhum tema que não é abordado nessas escritas. Essas escritas convidam, lançam um desafio a diferentes especialistas para poderem dialogar e tentar explorar o potencial que elas representam. O historiador tem o seu lugar, o antropólogo tem o seu lugar, o professor tem o seu lugar, Quer dizer todo o mundo ao seu nível, tem ali o seu lugar. As escritas urbanas são uma área descrita como interdisciplinar.
No vosso livro, há uma passagem que diz assim: “a hipótese do nosso objecto de pesquisa consiste em considerar que as escritas podem ser analisadas como elemento motor de dinâmicas urbanas que são materializadas através do acto de escrever”. Pode explicar isto?
Só através da escrita podemos ter o pulsar da cidade quer ao nível económico, quer ao nível político. Se forem a ver a nossa cidade, quer os muros, quer as barracas, estão pintados. A barraca é pintada para publicitar a Colgate, 2M, a Coca-Cola. Isto é a espécie do poder económico ao serviço do poder popular. Ai temos o pulsar da dinâmica. Depois, a abundância dessas marcas em si inscreve-nos numa sociedade de consumo. Isso é um indicador. Só pela escrita dá para ver isso. Dinâmica social: o que é que as pessoas escrevem­? Escrevem aquilo que vivem no dia-a-dia, aquilo que vivem no seu país, aquilo que as preocupa, apoquenta, mas também o seu sentido de humor, o seu jeito de estar na vida. Nós conseguimos ver isso. Depois, são escritas que mudam de tempos em tempos. Há aquele ditado que diz que “as palavras voam e as escritas ficam”. Na dinâmica das escritas urbanas esse ditado não é verdadeiro, não tem aplicação, porque os suportes utilizados são frágeis. Tem algumas escritas que duram algum tempo, mas de repente desaparecem algumas letras numa palavra e depois aquilo apaga-se. Aparece outra preocupação e a pessoa vai escrever outra mensagem no mesmo lugar.
Cidadãos anónimos
regem o ritmo da cidade
Então, estas escritas são algo efémero?!
A escrita, na verdade, não podem ser dissociadas dos habitantes, da vida do citadino, do próprio pulsar das cidades. Então, as letras estampadas transpiram os sentimentos, as aspirações, as angústias, às vezes o medo em relação àquilo que acontece na sociedade. Por exemplo, nos bairros sub-urbanos, nós encontramos algumas escritas que são engraçadas porque fazem rir, mas ao mesmo tempo apontam o problema de violência urbana, da segurança urbana. Por exemplo, tu tens uma rua que alguém entendeu dar o nome de “Avenida Passa a Correr”. Este nome é também um alerta de que aqui há problemas muito sérios. Então, esses cidadãos anónimos, através do seu gesto gráfico, acabam pontuando o ritmo da cidade. Nós podemos ver a cidade a diferentes níveis. Através das escritas, acompanhamos exactamente o que é que está a acontecer na nossa economia, quer através dos desfiles das diferentes marcas em outdoors, que se vão substituindo, disputando o espaço, quer através da escrita do cidadão comum que vai pontuando aquilo que acontece. Mas também temos de maneira discreta assuntos que falam daquilo que é preocupação da actualidade. Por exemplo, na Praia da Costa do Sol, vi um barco onde estava escrito “Paz e Bem”. Estou a pensar numa viatura que vi e que tinha a seguinte escrita: “Poder não se arranca”. A pessoa escreveu, está lá e é uma mensagem. Isto não tem nada de marginal. A intenção não é ofender, antes pelo contrário, é uma maneira de estarmos num convívio salutar, partilharmos ideias, no fundo, com boas intenções.
Mas também se diz que de boas intenções, está o inferno cheio. Vi isso estampado numa viatura..
Estas escritas têm que ser vistas com alguma sensibilidade ecológica. Temos muitas lições a tirar. Eu acho que os pedagogos, historiadores, têm que sair dos laboratórios, dos seus gabinetes e virem à rua, ver o que aqui se passa. Isso viria, se calhar, reduzir a especulação e até ajudar-nos a estruturarmos melhor os nossos estudantes que estamos a formar e que muitas vezes, quando estão na rua, nem estão à altura de ler o que se escreve no seu próprio meio em que vivem. Eu acho que esse é o pior analfabetismo. Nós temos uma responsabilidade. Eu acho que mais do que uma pesquisa, um centro de interesse, há um dever cívico patriótico de perceber um pouco desta dinâmica.
 O livro tem uma parte que diz: "dizer e proibir por escrito nas ruas de Maputo”, a quê é que se refere?
Dizer por escrito isso significa que as escritas, como diz um filosofo, acho que é Jacques Derrida, a letra encarna a voz, mas quando falamos da escrita, estamos a falar de voz, estamos a falar de fala, mas uma fala silenciosa. Então, daí o emprego da palavra "dizer". "Proibir", porque se formos a ver a nossa cidade está repleta de dizeres e proibições nas suas diferentes versões. Estou a pensar em proibições muitos simples como: "proibido pisar a relva", "proibido fazer xixi". Depois, com algum sentido de humor, poderá ter versões com o verbo "mijar". Eu aqui no livro não falei, mas ao invés de dizer proibido fazer xixi, nós temos: "mije no muro, eu vou mijar na tua boca"! Temos ainda o famoso “proibido estacionar”.
Portanto, a guerra de espaço na cidade de Maputo, expressa-se por letra e diferentes signos. È normal eu querer estacionar e não fazê-lo porque tem ali uma pedra ou uma lata que é sinal de que não posso fazê-lo. E agora temos o município que tranca os carros com aqueles triângulos amarelos. Está também a proibir. Então, temos dois ritmos: temos dizeres que expressam alguns assuntos, mas também temos proibições. E quem proíbe, às vezes é o cidadão comum, outras vezes são as próprias autoridades.
“O único nariz
que não tem ranho é de estátua”
Quem é César Cumbe?
César Cumbe é professor pesquisador. Formou-se em Ciências da Linguagem, em França, ao nível de Doutoramento. Em termos de áreas de pesquisa interessa-se muito pelas diferentes formas de expressão popular, incluindo a escrita popular, informal, a arte popular, sobretudo, tudo o que acontece na rua. Na verdade, o meu programa de pesquisa é tentar perceber, analisar, o que é que as pessoas escrevem quando ninguém manda escrever, o que é que as pessoas dizem quando ninguém manda dizer, porque é aí onde temos a autenticidade, a chance de estudar as práticas linguísticas, as práticas sociais no seu sentido ordinário. Isto em termos de área de pesquisa.
Em termos profissionais, sou um docente de língua francesa. Ao nível da universidade, intervenho ao nível do Mestrado, Doutoramento e Licenciatura, fazendo, a cada nível de intervenção, a leccionação, a pesquisa e a supervisão.
Fora disso, sou um cidadão comum simples. Eu apaixono-me muito pela sabedoria popular. Eu acho que o nível académico, que tenho, permite-me melhor aprender daqueles que nunca estiveram na universidade. Daí que, na verdade, as minhas modestas escritas, aquilo que vou socializando, quer em comunicações, quer em artigos, é no sentido de trazer de volta o mérito desta sabedoria popular que para mim tem que ser respeitada, valorizada. Quer dizer, a academia não se pode isolar desta fonte, porque são as nossas raízes. Nós temos essa chance de ter feito a academia, mas também a responsabilidade de sistematizar esses conhecimentos, esses saberes locais, indígenos, que a não serem sistematizados, serão reduzidos numa caixinha de obscurantismo, de especulação, de tudo aquilo que não se valoriza. Eu também tenho um pouco esta curiosidade. Esta parte de cidadão comum e académico que tenta resgatar aquilo que está esquecido ou pouco se conhece na aldeia.
Em relação à culinária, quais são os teus gostos?
Gosto muito daquilo que são os nossos pratos locais: verduras, como uma boa matapa, mas também uma boa cacana. Um bom caril de amendoim, uma boa mboa ou hortaliça se quisermos. Mas também sou um doente de tudo o que é marisco. Eu posso comer peixe de 1 a 30 de cada mês sem nunca me cansar ou enjoar.
Quais são as tuas leituras?
Tenho uma leitura muito marginal. Interessa-me muito os ensaios, quer na Sociologia, na Antropologia ou na História. Gosto muito da área de literatura também. Gosto muito de ficar surpreendido com coisas que não conheço. A sensação de me sentir perdido, por exemplo. O mesmo que acontece numa cidade. Eu não gosto de visitas muito guiadas, como se vai para aqui, como se vai para ali. Detesto isso. Então, na leitura gosto muito de surpresas. Para além da minha área, eu leio facilmente a área de Geografia. Para dizer a verdade, eu estou formado em Linguística, mas a linguística não me satisfaz. Gosto também de contos, porque para mim eles são o corta-mato mais simpático para percebermos quem somos. Os contos que me serviram no berço quando pequenino, agora que estou crescidinho, tomo conta de que afinal de infantil nada tem. Se formos a ver os contos de diferentes culturas, em particular, em área africana, há muita coisa que se calhar graças a eles acabo tendo uma sensibilidade um pouco maior em relação às raízes africanas
Quais são os teus hobbies?  
Música…  
Cantando ou apenas ouvindo?
As duas coisas. Gosto muito da música acústica. Nos tempos livres, gosto de dedilhar a minha guitarra. Não entendo nada de guitarra. E gosto muito de música africana, aquilo a que chamam de música étnica, porque na música acaba havendo alguma complementaridade entre a música e a voz. Há uma combinação muito forte, e nesse aspecto, se calhar, partilhar o lamento que eu tenho de alguns africanos apostarem na música electrónica. Para mim, acho que estamos a perder muita coisa. Temos os mais velhos que estão indo embora sem deixar legado. Sou muito fã de música, em particular da música africana e latina. Música latina, porque ela bebeu muito da música africana.
O que gosta na vida?
O que gosto na vida é rir e ter um bom humor. Entre rir e chorar, eu prefiro rir.
O que detesta na vida?
Hipocrisia, cinismo e intolerância.
O que gosta nas pessoas?
O seu jeito de ser natural. Eu gosto muito do lado água e sal da pessoa. Eu gosto muito do lado natural das pessoas, sem que seja necessariamente aquilo que eu gostaria que fossem. Pessoa é como é, isso para mim é fundamental. O que aprecio muito nas pessoas é a simplicidade e a humildade. Para mim, estas são as qualidades chaves que todos devíamos explorar.
O que detesta nas pessoas?
Arrogância e ostentação. Acho pena que alguém se sinta feliz com a ostentação, e não acredito que os ostentadores se sintam felizes. Se fores a ver o quadro psicológico dessas pessoas, acho que é preocupante. Tu estás a exibir aquilo que não tens! Tens que partir a cabeça para ver como é que consegues sustentar essa ilusão. É um sofrimento, é um sufoco. A pessoa não desfruta da vida, porque como diz um ditado, acho que é changana, o único nariz que não tem ranho é de estátua. Significa que não há ninguém que não tenha defeito.
Dados biográficos
César CUMBE nasceu em Maciene, província de Gaza a 27 de Maio de 1967. É  docente na Faculdade de Ciências da Linguagem, Comunicação e Artes, FCLCA da Universidade Pedagógica e investigador do Centro de Estudos Moçambicanos e de Etnociência, CEMEC. Concluiu o nível de Doutoramento em Ciências de Linguagem em 2008 na Universidade René Descartes Paris 5 Sorbonne, França. Fez em 2000 o Mestrado Ciências de Linguagem – Universidade de Franche Comté Besançon, França. Concluiu, em 1997, a Licenciatura em Ciências de Linguagem - Universidade Paul Valéry Montpellier III, França. Fala português, francês, espanhol, changana, ronga e chope.
Texto de Alfredo Dacala
alfredo.dacala@snoticicas.co.mz

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