Sunday, September 20, 2015

A Líbia e seu ex-líder máximo, Muamar Gadafi.

Sorry lá, pessoal!
Tenho visto muitos „posts“ recentemente, e um pouco por todo o lado, a falar sobre a Líbia e seu ex-líder máximo, Muamar Gadafi. Invariavelmente, os “posts” destacam o paraíso que esse país foi antes da rebelião apoiada e incitada pelo Ocidente e contrastam isso com o caos que esse país virou com a morte de Gadafi. Há uma boa dose de verdade nesse contraste. Na Líbia de Gadafi o bem-estar material estava assegurado para todos. A receita dos recursos naturais era distribuída generosamente ao povo em forma de saúde, educação, alimentação, habitação e conforto material de todo o tipo. Vivi alguns meses na Líbia em 1984 e falo do que vi com os meus próprios olhos. Ainda sobrava dinheiro para ajudar várias causas pelo mundo fora, incluindo a ajuda que ele nos anos entre a criação da União Africana e a sua morte prestava a vários países africanos. Em Bamako, por exemplo, ele construiu uma citadela governamental impressionante. É também verdade que o caos que a Líbia hoje é não tem nenhuma comparação com esse passado. São factos estes e contra factos não há argumentos.
Mas não é contra factos que eu quero argumentar. Quero argumentar contra as ilações que são tiradas destes factos. Elas resumem-se a duas, essencialmente. Primeiro, argumenta-se a partir destes factos que foi errado pôr fim ao governo de Gadafi porque com isso comprometeu-se esse bem-estar material e deu-se espaço para o caos. Segundo, isto é o que acontece quando o Ocidente se intromete e instrumentaliza concidadãos incautos em nome da democracia quando na verdade age por interesse económico estratégico. Eu percebo que muitos de nós nos sintamos atraídos por este tipo de argumentos, especialmente em Moçambique onde ganhamos um quadro analítico que nos permite racionalizar o nosso repúdio à Renamo. Não obstante, não considero estes argumentos plausíveis, muito menos úteis.
O problema começa com os termos de comparação. Estamos a comparar um regime consolidado (o regime de Gadafi) com um momento (o caos actual na Líbia) que ainda vai produzir (ou não) aquilo que devia ser comparado com o regime de Gadafi, nomeadamente a democracia. Isto é, o que vemos hoje na Líbia não é (ainda) a democracia, mas o preço que os líbios estão a ter de pagar por ela (se vier). O principal responsável por essa situação não é o Ocidente que incitou os rebeldes, nem são necessariamente os próprios rebeldes que tudo fazem para mostrarem que (tal como os nossos pais da democracia na Pérola do Índico) são tudo menos democratas. O principal responsável pelo caos na Líbia é o próprio Gadafi da mesma maneira que o principal responsável pelo pesadelo que a Renamo virou no nosso país é o autoritarismo da nossa primeira república que interpretou a independência como mandato para obrigar as pessoas a serem felizes nos termos dos “libertadores da pátria”. Gadafi era um déspota que usou ao longo de toda a sua carreira política um discurso demagogo para impor aos líbios a sua própria versão do que é a boa vida. Foi implacável e cruel com todo aquele que discordasse dele e fez do seu próprio povo refém dos seus caprichos. Ele teve a morte que a sua vida promoveu. Nesse aspecto não foi muito diferente da nossa primeira república que também, em nome da emancipação total do povo moçambicano, erigiu um sistema político autoritário que não tolerava a divergência de opinião.
Pessoalmente, penso que a Renamo não passou de um instrumento de desestabilização do projecto socialista da Frelimo. A democracia pela qual o seu líder reclama ter lutado foi, quanto a mim, a ficção que os mediadores na resolução do conflito encontraram para ajudar sobretudo a Renamo a traduzir o seu banditismo num programa político que viabilizasse o processo negocial. As dificuldades do movimento em fazer essa transição reflectem parte disso, incluindo todas as contradições do seu discurso pseudo-político. Por exemplo, o título “pai da democracia” é incongruente quando todo o seu discurso e acção é enformado pela convicção segundo a qual não haveria democracia no país. Pai de quê então? A não ser que seja grego, cujo povo é tido pelos manuais de ciência política como inventor da democracia… Nada disto invalida um ponto inconveniente para todo o simpatizante da Frelimo. A resolução do problema criado pela guerra da Renamo viabilizou a abertura do sistema político e colocou travões muito importantes ao ímpeto autoritário e despótico da Frelimo gloriosa. É lícito conjeturar que se não tivesse sido por causa desse autoritarismo revolucionário a desestabilização do país não teria criado o tipo de deformação política que criou com a Renamo. O mesmo argumento vale para a Líbia de Gadafi. É muito mais fácil culpar o “Ocidente” do que fazer um exame de introspeção para saber o que nós próprios fizemos mal.
É neste sentido que a ideia segundo a qual a morte de Gadafi teria levado o caos à Líbia não faz muito sentido. A opressão e a repressão têm estes resultados imprevisíveis. Em quase todo o lado onde um país foi gerido por um déspota quando ele sai o resultado é quase sempre este. Quando nós aparecemos aí a dizer que teria sido melhor deixar o déspota no poleiro estamos, efectivamente, a dizer aquilo que ele próprio dizia: sem mim será o caos total. Pior ainda, estamos a dar legitimidade a um sistema político que a longo prazo é insustentável e vai gerar necessariamente as razões do seu próprio desmoronamento. A opção na Líbia – ou noutro país qualquer onde reina o autoritarismo – não é entre o autoritarismo e o caos. É entre o caos latente do autoritarismo e a democracia, esta última entendida não simplesmente como processo técnico (eleições, competição política, etc.), mas sim entendida como criação de condições dentro das quais a articulação e expressão da diferença encontra espaço, as liberdades estão protegidas e a prerrogativa de criticar quem governa não constitui nem crime, nem falta de patriotismo.
Quanto ao segundo argumento, nomeadamente o argumento da conspiração ocidental, vale um pedaço de sabedoria popular, a saber, a ideia de que são membros da família que abrem a porta ao feiticeiro. E no caso da Líbia quem abriu as portas ao feiticeiro ocidental não foram os rebeldes, mas sim aquele que pela sua megalomania, intransigência e autoritarismo criou círculos eleitorais para a articulação do tipo de discursos articulados pelos rebeldes naquele país. Mais uma vez, a situação não é muito diferente da nossa, sobretudo em relação ao momento inicial – primeira república. Há, por exemplo, mesmo agora um discurso que procura reduzir a postura da Renamo ao serviço de interesses externos com alguma semelhança ao que se supõe ter acontecido na Líbia. Não concordo com esta leitura. Embora não coloque de lado a possibilidade de haver um e outro interesse privado a investir na possibilidade dum governo da Renamo, o mais provável e plausível para mim é que a Renamo esteja a agir por conta própria. A incoerência das suas posições constitui para mim uma prova clara da ausência de alguém nos bastidores. Tudo indica que deixada a sua sorte a Renamo não é capaz de se articular com coerência. De resto, a Frelimo de hoje é a melhor guardiã dos interesses económicos do grande capital internacional que poderia haver em Moçambique. Quando muito, a Renamo corre o risco de evoluir para uma situação de grupo mafioso a viver das rendas de protecção extorquidas às companhias internacionais e nacionais.
Embora eu não acredite numa conspiração ocidental para o caso de Moçambique, tenho em mim que aqueles que representam os interesses ocidentais em Moçambique (sobretudo nas chancelarias) têm reservas em relação ao governo da Frelimo, reservas essas que são, em parte, fruto de uma leitura simplista do processo político moçambicano. Um dos problemas do auxílio ao desenvolvimento – que é um grande factor na nossa relação com o resto do mundo – é de conferir a gente perplexa e com fraca capacidade analítica o poder de tomar decisões de peso para um país terceiro na base de esquemas analíticos problemáticos e mal-digeridos porque à partida são mais caricaturas do político em África do que realmente instrumentos analíticos úteis. São pessoas que, inclusivamente, não têm noção dos verdadeiros interesses dos seus próprios países, orientam-se na figura mítica do “contribuinte” para racionalizar atitudes que são no fundo emocionais. É por causa da postura desse tipo de gente que nunca teve a coragem de ser firme no seu discurso para com a Renamo – dizendo-lhe claramente que a violência contra o estado, discursiva ou prática, constitui motivo suficiente para o corte de relações, pois os valores que eles próprios tentam introduzir nos nossos países com a sua versão da democracia são incompatíveis com isso – é por causa dessa postura, dizia, que alguns de nós ficamos com a impressão de que haja um conluio. Não creio que haja. É mais o nível medíocre de algumas pessoas que mandam para os nossos países.
Por isso peço imensas desculpas por não estar de acordo com a canonização de Gadafi. O mundo está melhor sem ele. A Líbia vai estar melhor sem ele, não importa quando.
  • Comments
  • Amilcar Das Neves Alberto Acho que a ideia e trazer o lado bom de Gadaafi.
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  • Celso Timana Porque os posts de Elisio Macamo são muito longos? Me é sempre difícil lê-los até ao fim.
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  • J Jone Viagem Prezado,

    As vezes temos que repensar no conceito de democracia e o quê ela pode representar para cada povo.

    Temos que repensar nos melhores caminhos para alcançar a dita democracia , avaliar os custos e as consequências e avaliar a sua rentabilidade. 

    Continuo a acreditar que não havia necessidade de se destruir toda uma nação, um povo, cultura e hipotecar o futuro de várias gerações em nome de uma democracia que mal é percebida.

    Kadafi enquanto dirigente do povo líbio tinha os seus defeito, mas também tinha as suas qualidades, tal como todos os outros líderes de todas as nações .
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  • Martins Calima Ainda não li todo texto mas só parei (parei mesmo ) a parte que diz o principal responsável não o ocidente, aqui p dizer as vezes queremos mostrar uma outra forma de encarar certos problemas e de analisar mas dessa vez falhas completamente querendo responsabilizar os Líbios inocentes que abraçaram uma causa pela qual hoje se arrependem. 

    Não vale a pena querer fazer perceber o contrário tudo que tá acontecer hoje na Líbia é resultado sim dos objectivos económicos do ocidente e mais nada .
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  • Mas nem por isso as outras nações são totalmente devastadas para se poder melhorar o desempenho dos seus dirigentes.
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  • Clelio Clelio Deve ser por causa dos temas abordados, posts do tipo "Eu e familia em bilene" sao sempre curtinhos Celso Timana!!!
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  • Alcídes André de Amaral Mas se o bem-estar material, `e por nos visto como "acima de tudo". Pior ainda quando temos que vive e se quer que vive "distribuindo o bem-estar" a todos por ai. E todos isso como argumento e justificativa do argumento. Mas isso pode ser normal no "cidadao comum" melhor, so para tentar me fazer entender, no "pacato cidadao". Mas torna "sintoma de degradacao" nacional - e intelectual - quando temos analistas e intelectuais que nos enchem com estes argumentos comodos e simplista. Este `e que sao os grandes perigos e perigosos aqui na perola... `E que aquela gente dita da "pacata cidadania" esta sempre enfrente da TV e com jornais na mao consumindo estes argumentos simples e, vamos dizer, "estomacais". O mundo esta bem melhor sem Gadafi - estou copiando a sua designacao, eu habituei a escrever "Khadafi". Assim como Mocambique esta melhor sem Samora melhor, sem "Samorismo". Mas parece ser sempre aquilo: os problemas que se enfrenta no presente activam a nostalogia de um passado qualquer. E direpente, aquele passado torna-se melhor que este presente. Mesmo que aquele fosse "triste passado"!
  • Alcídes André de Amaral Caro J Jone Viagem parece que a questao nao esta necessariamente no Khadafi mas no sistema politico que adoptou - bem, se partirmos da ideia que este sistema tirou da sua cabeca e implantou, entao o problema esta Gadafi.
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  • Mario Joao Gomes I agree...
  • Mendes Mutenda É um sorry lá mesmo. Desculpa aceite
  • Egidio Vaz Agora percebi completamente a contradição da chamada "industria do desenvolvimento". E concordo. Ora, estou preocupado com a sua última frase. Não importa quando é que o povo libio estará melhor que hoje. Bem, aqui, talvez diga que a minha preocupaçãos eja de, em vez de os libios e nós proprios nos focarmos em consertar os problbemas, estejamos neste momento atarefados a reconstituir um novo Ghadafi. É o risco recorrente em Africa, em situaçoes revolucionárias, tais como a Libia em si, Egipto e já agora Burkina. Aqui sim, está a falhar algo de concreto, apesar de ser corolário lógico do regime que se pretende corrigir.
  • Eliha Bukeni Sorry la Professor "A Libia vai estar melhor sem Gadafi, nao importa quando". E verdade que se diz a esperanca e a ultima coisa a morrer, porem nao acredito que aqueles milhares que arriscam as vidas naqueles botes a atravessar o mar a busca da esperanca, nao se importem de quando o futuro sera melhor que era de Gadafi. Se tomarnos o exemplo do Iraque e bem capaz que o quando seja determinado pelo esgotamento das reservas de petroleo que pagam a guerra, sendo que, sabendo-se de antemao que o potencial das reservas Libias e enorme, entao o quando so pode ser projectado para 3 a 4 geracoes!
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  • Mendes Mutenda Ainda que os problemas acabassem. No plano futuro onde Líbia estará "melhor " terá outros problemas.
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