Interesse nacional justifica prática, que também funciona em sentido inverso: há firmas que empregam espiões para lhes facilitar as missões.
Um antigo dirigente dos serviços secretos admitiu nesta quinta-feira em tribunal que estas organizações não se coíbem de passar informações classificadas a empresas portuguesas com negócios no estrangeiro, desde que considerem a sua actividade estratégica para o país. Mais: essa actividade pode nem ser considerada estratégica e a firma ser convidada, mesmo assim, a embarcar numa espécie de parceria público-privada com as secretas, num relacionamento de que tanto uns como outros esperam retirar frutos.
“É a lógica do win-win: se percebem que têm vantagens nisso as empresas acolhem o agente secreto. E as firmas podem, por seu turno, ser úteis a actividades que os serviços de inteligência queiram desenvolver”, descreveu Heitor Romana, antigo conselheiro da embaixada portuguesa na Rússia - designação que ocultava a sua verdadeira missão de oficial de ligação entre os espiões de Lisboa e os de Moscovo. Heitor Romana trabalhou directamente com dois dos arguidos do chamado processo das secretas, Silva Carvalho e João Luís, sobre os quais recaem acusações de violação do segredo de Estado, abuso de poder e corrupção.
Foi em 2010 e por ordem de Silva Carvalho, que dirigia na altura o Serviço de Informações Estratégicas de Defesa (SIED), que Heitor Romana ajudou as secretas a recolher informações sobre dois empresários russos alegadamente próximos de Vladimir Putin. Fê-lo via motor de busca Google, uma vez que se encontrava de férias em Lisboa, sem acesso a contactos privilegiados. O grupo Ongoing avaliava na altura a possibilidade de entrar com eles no negócio de exploração de um porto grego, e segundo o Ministério Público o arguido mais não fez do que colocar ao serviço dos interesses deste privado os recursos dos serviços secretos. Objectivo: ser contratado pela Ongoing com um salário muito superior ao que auferia no SIED, o que de facto veio a acontecer.
Hoje professor universitário de geoestratégia e membro do conselho consultivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Heitor Romana disse aos juízes, no depoimento que prestou na qualidade de testemunha, que há casos em que as secretas colocam agentes em empresas para que estes possam desenvolver as suas missões a coberto de uma qualquer actividade profissional. Umas vezes fazem-no com conhecimento das firmas, outras não. “Não sei se é prática em Portugal”, ressalvou. A vantagem das empresas passa por receberem informações confidenciais sem as quais não conseguiriam fechar alguns negócios, especialmente “nos mercados mais difíceis”. Se a empresa é considerada estratégica pelas secretas, pode beneficiar dessa ajuda, que é assim justificada com o interesse nacional. Mas pode haver situações nas quais são os espiões a necessitar do auxílio do mundo dos negócios. Sem citar casos concretos, o antigo diplomata deu como exemplo a necessidade de os serviços recolherem informações num país com focos de terrorismo onde, porém, não têm escritório. “Pode pôr-se alguém a trabalhar numa empresa de andaimes” portuguesa, descreveu. “É uma boa cobertura”.
“Vejo com muita perplexidade que se entreguem relatórios internos dos serviços a uma entidade privada. Mas vejo como razoável que esses dados possam ser transmitidos por outros meios – através de papéis não timbrados, por telefone ou oralmente. Este trade-off é uma prática comum”, assinalou.
Quanto ao relatório que ajudou a fazer sobre os russos, e que disse ignorar a que se destinava, Heitor Romana mostrou dúvidas sobre a sua utilidade: “Tecnicamente não estava bem feito. Faltava-lhe pimenta. Não continha uma informação fundamental: o perfil empresarial dos indivíduos”.
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