DAVID E. HOFFMAN
A CIA nunca tinha ganho um desafio nas ruas de Moscovo, onde recrutar espiões era demasiado perigoso. Adolf Tolkatchov estava desiludido com o comunismo e é a sua história agora contada em livro a dar o retrato dos anos mais tensos da Guerra Fria.
Era o agente mais valioso e bem sucedido que os Estados Unidos tinham infiltrado na União Soviética em duas décadas. Os seus documentos e desenhos permitiram revelar segredos da investigação sobre radares e armamento soviético. Fez sair placas de circuitos e desenhos técnicos do seu laboratório militar. As suas acções de espionagem permitiram aos Estados Unidos dominar os céus e confirmaram a vulnerabilidade das defesas aéreas soviéticas — mostrando que os mísseis de cruzeiro americanos e bombardeiros estratégicos conseguiam voar sem ser detectados pelo radar.
No final do Outono e início do Inverno de 1982, a CIA perdeu o contacto com ele. Faltou a cinco reuniões. A vigilância do KGB nas ruas era esmagadora. Nem mesmo os agentes clandestinos do gabinete da CIA em Moscovo a conseguiam furar.
Na noite de 7 de Dezembro, data prevista para um encontro, o futuro da operação foi posto nas mãos de Bill Plunkert. Depois de uma experiência como aviador da Marinha, Plunkert juntou-se à CIA e recebeu treino para agente de operações clandestinas. Era um homem dos seus 30 anos, com 1,89m, quando chegou à representação de Moscovo no Verão. O seu objectivo era passar despercebido ao KGB e estabelecer contacto.
Nessa noite, por volta da hora do jantar, Plunkert e o chefe do escritório da CIA, com as respectivas mulheres, saíram da embaixada americana para o parque de estacionamento, que estava sob vigilância permanente de milicianos fardados que prestavam contas ao KGB. Meteram-se no carro, com o chefe a conduzir. Plunkert sentou-se ao seu lado. As mulheres atrás, segurando um grande bolo de aniversário.
A espionagem é a arte da ilusão. Naquela noite, Plunkert era o ilusionista. Debaixo das roupas civis usava uma segunda camada, típica de um homem russo. O bolo de anos era falso, com uma cobertura que parecia de bolo mas que na verdade escondia um dispositivo criado pelos feiticeiros das operações da CIA, chamado jack-in-the-box [o nome de um restaurante americano de fast food]. A CIA sabia que as equipas de vigilância do KGB seguiam sempre um carro atrás e raramente se colocavam ao seu lado. Era possível um carro da CIA escapar-se numa esquina ou outra, ficando momentaneamente fora de vista. Nesse curto intervalo, o agente da CIA poderia sair do carro e desaparecer. Simultaneamente, o jack-in-the-box erguia-se da caixa, confundindo-se com a cabeça do agente que acabara de sair.
O dispositivo nunca tinha sido usado em Moscovo, mas à medida que as semanas passavam a CIA estava cada vez mais desesperada. Plunkert tirou as suas roupas civis americanas. Com uma máscara que lhe tapava toda a cara e óculos de sol, estava agora disfarçado de um velho russo. O KGB seguia-os à distância. Eram sete da tarde e a noite já tinha caído há muito.
O carro virou numa esquina. Plunkert abriu a porta e saltou para fora. Nesse preciso momento, uma das mulheres colocou o bolo no assento da frente. O topo abriu-se e dele saltou uma cabeça e um torso. O carro acelerou.
Lá fora, Plunkert deu quatro passos no passeio. Ao quinto, o carro do KGB virou a esquina. As luzes iluminaram um velhote russo no passeio. O KGB ignorou-o e acelerou no encalço do carro. O jack-in-the-box tinha resultado.
Adolf Tolkatchov em 1984 CORTESIA DA FAMÍLIA DE ADOLF TOLKATCHOV (NA PÁGINA À ESQ.) / THE WASHINGTON POST
Nos primeiros anos da Guerra Fria entre os Estados Unidos e a União Soviética, a Central Intelligence Agency escondia um segredo desconfortável sobre si própria. A CIA nunca tinha ganho um desafio nas ruas de Moscovo. Recrutar espiões lá era demasiado perigoso para qualquer cidadão soviético ou oficial que se candidatasse. O próprio processo de recrutamento, desde o primeiro momento em que um possível espião era identificado e abordado, estava cheio de riscos de ser descoberto pelo KGB, e se fosse apanhado a espiar, um agente enfrentaria seguramente uma pena de morte. Uns quantos agentes que se voluntariaram ou foram recrutados pela CIA fora da União Soviética faziam os seus relatos em segurança quando chegavam a casa. Mas na maioria a CIA não conseguia ter agentes a espiar no coração das trevas.
E foi então que apareceu a operação de espionagem que virou o jogo. O agente era Adolf Tolkatchov, engenheiro e especialista em radares aéreos, que trabalhava bem por dentro do establishment militar soviético. Ao longo de seis anos, Tolkatchov encontrou-se com responsáveis da CIA 21 vezes nas ruas de Moscovo, uma cidade pejada de vigilantes do KGB.
A história de Tolkatchov é detalhada nas 944 páginas de telegramas da CIA que eram confidenciais e que foram desclassificadas sem restrições para o livro The Billion Dollar Spy. A CIA não leu o livro antes da publicação. Os documentos e entrevistas com os participantes oferecem um retrato detalhado de como a espionagem foi conduzida em Moscovo durante alguns dos anos mais tensos da Guerra Fria.
Tolkatchov movia-se pelo desejo de vingança. A mãe da sua mulher foi executada e o pai enviado para campos de trabalho durante os anos de grande terror de Estaline, na década de 1930. Também dizia estar desiludido com o comunismo e afirmava-se “um dissidente”. Queria retaliar contra o sistema soviético e fê-lo entregando os seus segredos militares aos EUA. Os oficiais da CIA responsáveis pelo seu caso comentaram que ele parecia determinado em causar o máximo de danos possíveis à União Soviética, apesar dos riscos. O castigo pela traição era a execução. Tolkatchov não queria morrer nas mãos do KGB. Pediu e recebeu da CIA um comprimido suicida para tomar no caso de ser apanhado.
A Força Aérea estima que a espionagem de Tolkatchov poupou aos Estados Unidos dois mil milhões de dólares em investigação e desenvolvimento de armas. Tolkatchov desviava a maioria dos documentos do seu escritório durante a hora do almoço, escondidos no sobretudo, e fotografava-os com uma Pentax 35mm, agarrada a uma cadeira no seu apartamento. Em troca, Tolkatchov exigia dinheiro da CIA, sobretudo como sinal de respeito. Não havia muito que comprar na Moscovo daquela altura. Também queria álbuns de música ocidental — Beatles, Led Zeppelin, Uriah Heep e outros — para o seu filho adolescente.
Tolkatchov tornou-se um dos agentes mais produtivos da Guerra Fria. Mas pouco se sabe da operação — um período de maturação da CIA, quando conseguiu o que se pensava ser inatingível: encontrar-se pessoalmente com um espião debaixo do nariz do KGB.
O escritório da CIA em Moscovo era uma sala do tamanho de uma garagem, enfiada na embaixada americana. Os oficiais apinhavam-se em pequenas secretárias, analisando mapas pendurados na parede, picados com pioneses vermelhos para assinalar locais perigosos do KGB, e planeavam cada jogada meticulosamente.
David Rolph, que estava na sua primeira missão da CIA no estrangeiro, assumiu o “caso Tolkatchov” em 1980. Ao final da tarde de 14 de Outubro, saiu do escritório e foi para casa. Uma hora depois, voltou à embaixada com a mulher, vestidos como se fossem para uma festa. O miliciano russo que fazia a guarda reparou que entraram no edifício. Rolph e a mulher percorreram os estreitos corredores até chegar a um dos apartamentos e abriram uma porta que já estava entreaberta. O apartamento pertencia ao vice-chefe de tecnologia da representação da CIA de Moscovo, que ajudava os agentes com equipamentos e disfarces, desde sofisticados aparelhos de transmissão rádio a registos falsos.
O vice-oficial dirigiu-se em silêncio para Rolph. Os dois homens tinham aproximadamente a mesma altura e constituição física. Num silêncio absoluto, Rolph começou a transformar-se ficando cada vez mais parecido com o anfitrião, naquilo que se chama transferência de identidade. Ele tinha um cabelo comprido e despenteado. Rolph colocou uma peruca comprida e despenteada. Ele tinha uma barba farta. Rolph pôs uma barba farta. Ajudou Rolph a ajustar o disfarce, depois deu-lhe um aparelho de transmissão rádio, antena e auricular para monitorizar as transmissões do KGB na rua.
Da porta, Rolph ouviu uma voz. Era o chefe da tecnologia que tinha acabado de chegar e falava alto de propósito, assumindo que estavam a ser escutados por aparelhos do KGB. “Ei, vamos sair e ver a nova loja de máquinas?”, pergunta o chefe. O verdadeiro vice-chefe respondeu bem alto: “Óptimo! Vamos.”
Mas o verdadeiro vice-chefe não saiu do apartamento. O homem que saiu e que se parecia com ele era Rolph. O verdadeiro vice-chefe puxou uma cadeira e preparou-se para uma longa espera. A mulher de Rolph, com o seu vestido de noite, sentou-se também e ali ficou nas seis horas seguintes. Não diziam uma palavra, porque o KGB poderia estar a ouvir.
O objectivo da transferência de identidade era deixar o perímetro da embaixada sem ser identificado. O KGB geralmente ignorava os técnicos quando saíam do complexo para ir buscar comida, flores ou peças de carros numa velha carrinha Volkswagen bege e verde. A carrinha saiu ao anoitecer. O chefe estava ao volante e Rolph no lugar do passageiro. As janelas da carrinha estavam sujas. Os milicianos limitaram-se a encolher os ombros.
Na sede da CIA está este quadro de Adolf Tolkatchov, da autoria de Kathy Krantz Fieramosca KATHY KRANTZ FIERAMOSCA / THE WASHINGTON POST
Uma vez na rua, a carrinha seguiu lentamente por um caminho irregular. Ao sair disfarçado da embaixada, o objectivo de Rolph era escapar ao KGB, mas nas horas que se seguiram preparou uma nova abordagem, procurando despistar os agentes. A sua missão era “tornar-se escuro” e iludir totalmente o sistema de vigilância. Mas ficar “escuro” exigia um longo e desgastante teste de nervos, antes de conseguir olhar Tolkatchov nos olhos.
Numa corrida contra a vigilância, o agente tinha de ser tão ágil como um bailarino, tão distractor como um mágico e tão atento como um controlador de tráfego aéreo.
A carrinha parou numa loja de flores, a sua primeira paragem de rotina, para ver se os carros de controlo do KGB ou as equipas a pé se descuidavam ou tropeçavam. Rolph ficou sentado e quieto, por detrás da janela suja da carrinha e não viu nada.
Depois de mais uma hora e meia de condução, Rolph iniciou mentalmente uma contagem decrescente. A regra era avançar para a fase seguinte apenas se tivesse pelo menos 95% de certezas de que estava “escuro”. A razão era simples: no carro estava protegido. A pé ou sozinho tornava-se muito mais vulnerável. Rolph pesou aquilo que vira nas ruas escuras. Estava seguro. Olhou para o chefe de tecnologia, que lhe fez um ok com o polegar para cima. A carrinha ainda estava em andamento quando Rolph tirou o disfarce e o colocou num saco. Agarrou no saco de compras que tinha sido preparado para Tolkatchov e vestiu um casaco de lã. A carrinha parou por instantes. Saltou para fora e desapareceu rapidamente.
A passos largos, numa avenida ampla, foi directo a um grupo de pessoas que esperavam por um daqueles eléctricos que rondam as principais artérias de Moscovo. Olhou para os passageiros do eléctrico, tomando atentamente nota daqueles que entravam ao mesmo tempo que ele. Então dirigiu-se abruptamente para a porta e saiu na paragem seguinte, vendo quem saíra juntamente com ele. Ninguém.
A pé, deu início à última etapa. Estava fisicamente bem preparado e tinha a cabeça limpa, mas as voltas para despistar a vigilância são extenuantes. O tempo naquele Outono estava húmido e pesado. Sentia a boca seca, mas não havia sítio nenhum onde pudesse parar em segurança. O rádio estava silencioso. Entrou num pequeno teatro. Esta era a sua segunda paragem de disfarce. Olhou para o cartaz da programação e para os avisos pendurados na parede. O objectivo era obrigar os homens do KGB a fazerem alguma coisa de improviso, a escorregarem, para que ele os detivesse antes que chamassem reforços. Rolph saiu do teatro com bilhetes para um espectáculo que não fazia qualquer tenção de ver. Foi até uma loja de antiguidades, longe das suas rotinas habituais. Nada. Depois entrou num edifício de apartamentos próximo e começou a subir as escadas. Isto iria certamente desencadear uma emboscada do KGB; eles não poderiam permitir que ele desaparecesse de vista num prédio com vários andares. Na verdade, não tinha onde ir e não conhecia absolutamente ninguém que vivesse ali. Estava apenas a provocar o KGB. Num dos lances de escada, sentou-se e esperou. Não apareceu ninguém a correr.
Virou-se. Há três horas e meia que não se via rasto do KGB. Ainda assim, para ter a certeza, caminhou até um pequeno parque com bancos alinhados. Olhou para o relógio. Estava a 12 minutos do local de encontro.
Era hora de ir. Estava 100% seguro. Levantou-se do banco. De repente, foi sobressaltado por um barulho no auricular, depois outro e ainda um terceiro. Era claramente das equipas de vigilância do KGB. Ficou especado, rígido, tenso. Os barulhos eram por vezes usados como sinais entre agentes da KGB. Mas também poderia ser de um operador desastrado que tinha carregado no seu botão por acaso.
Rolph repetia várias vezes as palavras “quando estás escuro, estás escuro”. Na sua cabeça, significava que quando se está “escuro” pode-se fazer qualquer coisa porque ninguém está a ver.
Nada. Nenhum sinal que alguém estivesse no parque. Rolph deixou cair os ombros e respirou fundo.
Quando estás escuro, estás escuro.
O encontro com o espião correu muito bem. Tolkatchov passou-lhe 25 rolos de fotografias com cópias de documentos ultra-secretos. Voltou para a carrinha, colocou novamente a cabeleira e a barba e regressou à embaixada. Os guardas não olharam para ele duas vezes. O portão abriu-se. Um pouco depois, os milicianos anotaram que David Rolph e a mulher tinham deixado a festa na embaixada e voltado para casa.
Adaptado de The Billion Dollar Spy: A True Story of Cold War Espionage and Betrayal, de David E. Hoffman (Doubleday)
Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post
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