Os barões do roubo
Do livro engraçado de Tony Perrotteti com o título “Napoleon’s Privates” copiei (e complementei-as com leituras do Wikipedia) as seguintes histórias verídicas sobre grandes magnatas americanos. A prosperidade americana vem em grande parte desses homens. Todos eles fizeram a sua fortuna no século XIX.
Cornelius Vanderbilt, filho de imigrantes holandeses pobres em Nova Iorque, começou a trabalhar numa empresa de ferryboat aos 11 anos. Começou o seu próprio negócio com uma pequena embarcação que foi crescendo à medida que ele usava tácticas de concorrência desleal, incluíndo a emissão ilegal de acções com a conivência das autoridades a quem ele subornava. Legou 1 milhão de dólares à agora famosa Universidade Vanderbilt, em Nashville.
Jay Gould, também de origem pobre, fez o primeiro golpe como empregado numa empresa. Ouviu os seus patrões a falarem de planos para comprarem terrenos que estavam a ser vendidos a preço baixo, foi pedir um empréstimo, comprou os terrenos e depois revendeu-os com lucro (foi subsequentemente expulso por falta de lealdade). Construiu um império em torno de caminhos de ferro na base de subornos. Ele viajava com malas de dinheiro para, segundo ele próprio, subornar políticos. Gabava-se de poder comprar metade da classe operária para matar a outra metade.
Jim Fisk, começou como ajudante de caxeiro-viajante do seu próprio pai. Fez a sua fortuna com contrabando de algodão durante a guerra civil e, juntamente com Jay Gould, provocou a primeira queda da bolsa de valores de Nova Iorque. Os dois ganharam 13 milhões de dólares desse “negócio”. Escaparam incólumes porque trabalhavam em estreita colaboração com políticos, tinham as autoridades legislativas de Nova Iorque na sua folha de “vencimentos” e eram exímios no suborno de juízes.
John Rockefeller, também de origem pobre (trrabalhava como camponês e recebia 37 centavos por dia...). A sua fortuna tem origem na “poupança” de 800 dólares dum salário anual de 180 dólares na empresa onde ele trabalhava como contabilista... Cresceu no negócio do petróleo onde graças a subornos a políticos conseguiu fazer inúmeras aquisições. Fez um donativo de mais de meio milhão de dólares à Universidade com o seu nome.
Collis Huntigdon, outro magnata da área ferroviária, também de origem modesta (era vendedor informal...), burlou o governo americano em mais de 36 milhões de dólares com uma empresa fictícia de construção. Gastava em média cerca de 400 mil dólares por ano com subornos à política e justificava isso com o princípio segundo o qual não haveria nada de errado em subornar políticos para fazer o que era certo.
Andrew Carnegie, também origem modesta, fez a sua fortuna com especulações financeiras e práticas comerciais duvidosas. Para garantir vencimentos baixos aos seus trabalhadores (indústria têxtil) pagava subornos à Guarda Nacional para reprimir greves. Foi um grande benefactor na área da popularização do conhecimento científico (fundou várias bibliotecas gratuitas). A sua fundação hoje financia grandes projectos de fomento da ciência (também) em África.
Pierpont Morgan, o único do grupo que não tem origem humilde, subornou o exército para não combater na guerra civil, açambarcou um navio com café do Brasil em Londres, reteve-o durante meses para criar procura e mais tarde lucrou de forma estrondosa. Comprou rifles defeituosos por cerca de 3 dólares que vendeu ao exército da União por 22 dólares. Muitos soldados perderam os dedos tentando disparar os rifles. Subornou os tribunais para declararem o negócio limpo... A família de bancos Morgan Chase tem a sua origem neste indivíduo.
Tenho estado a ler as revelações – e ontem vi o documentário – sobre a Isabel dos Santos. É terrível o que esta gente fez e ainda bem que as coisas estão a ser expostas para que países em desenvolvimento aprendam. O meu entendimento de ciências sociais, contudo, impede-me de me juntar ao côro de vozes que, como sempre, procura na ganância individual a razão da ausência de desenvolvimento nos nossos países. Não sei se um dia vou chegar a entender este tipo de abordagem.
Isabel dos Santos e família podem não ser flor que se cheire, mas duvido que haja algum aprendizado a reter da sua diabolização. O que ela fez, e pode fazer, é o que certas estruturas tornaram possível. Essas estruturas são locais (e partidárias), mas também são internacionais no sentido em que existe um sistema financeiro, económico e político maior do que Angola que viabilizou certas práticas. E nisso, mesmo que as pessoas não queiram ouvir, a história é pertinente.
Muito se resolveria nos nossos países se fosse possível manipular a história para que tivesse sido diferente...
Muito se resolveria nos nossos países se fosse possível manipular a história para que tivesse sido diferente...
Vi também a entrevista que ela concedeu à RTP. Estava muito nervosa e embora nem sempre tenha dito a verdade não me pareceu estar a mentir. Esta diferença é importante. Tem muito a ver com o contexto estrutural. Ao que parece, ela e o pai agiam (também) na base duma motivação ética sublimada com a ideia do serviço público. Dentro dessa lógica, o que estava certo não é o que necessariamente era legal (ou mesmo idóneo), mas sim o que confortava a sua convicção de que faziam o bem pelo país. Não foram eles que inventaram isso. No caso de Moçambique sempre disse a mesma coisa. A ideia de que todos os outros que não são nós próprios são traidores da causa nacional está profundamente enraizada no nosso imaginário político. É ela que explica, em Moz., que a Frelimo (e pessoas a ela ligadas) se envolvam em esquemas obscuros sem ficarem com consciência pesada. Não é possível entender as dívidas ocultas sem este detalhe e isso sem necessariamente partir do princípio de que roubar foi a principal motivação. Não foi assim, como também não me parece ter sido no caso da Isabel dos Santos.
Na verdade, não foi nem Angola, nem Moçambique que inventaram isso. Conforme as mini-biografias acima apresentadas mostram, o mundo em que vivemos foi construído (e continua a ser construído) pelos que subvertem a moral e não são apanhados. O bem que sobra para os outros é sempre residual. A maior tragédia pós-colonial não é necessariamente a existência de “gatunos”. É a dificuldade de “proteger” os nossos “gatunos” ao mesmo tempo que construímos sistemas políticos resilientes. Aqui recupero uma ideia genial de Nassim Nicholas Taleb sobre a anti-fragilidade. Ele define esta condição em oposição ao que é frágil (quebra facilmente) e ao que é robusto (não quebra) para destacar aquilo que se fortalece a partir de golpes. Não faço nenhuma ideia de como se constrói um sistema político anti-frágil. Só sei que o moralismo não entra na equação e que abordagens analíticas com base nele fragilizam-nos mais do que nos tornam robustos.
Vejo com muita apreensão analítica a forma como o assunto Isabel dos Santos está a ser tratado em Angola. A indignação tem toda a sua razão de ser, mas duvido que ela sirva para fazer de Angola aquilo que as falcatruas do clã dos Santos não logrou. Quando muito, vai servir para limpar a consciência daquele que por conivência, conforto, medo ou oportunismo nada fez ao mesmo tempo que cria condições para que outros “gatunos” apareçam...
Repito: se você precisa do conceito de corrupção para entender seja o que for em África, você está longe de perceber seja o que for.