Esbirros de circunstância (9)
Serviço público
A grande diferença entre país em desenvolvimento e país desenvolvido é o respeito que o aparelho de estado tem pelo público. Em todos os países em desenvolvimento por onde passei o denominador comum é a falta de respeito pela pessoa. Na Alemanha, Suíça ou Portugal não tenho medo de agentes policiais. Até procuro-os quando preciso de alguma informação sobre algum lugar qualquer ou mesmo sobre o transporte a pegar. E sou invariavelmente bem tratado. Em Moz, Senegal ou Zimbabwe a história é completamente diferente. Mesma coisa em repartições. Um enfoque no serviço público, tenho em mim, tornaria supérflua muita coisa sem sentido que se faz por aí, principalmente o famoso combate contra a corrupção. Há, na verdade, um certo sentido, em que a corrupção manifesta um problema grave de qualidade de serviço público. Logo após à eleição de Nyusi, em 2015, escrevi o texto que reproduzo agora com o título “Falta um Ministério” no qual tentava chamar atenção para este grande desafio. O primeiro mandato passou e ele, no uso das suas competências como alto magistrado, ignorou completamente o assunto.
“Eu não me vou juntar ao coro de vozes que dizem que Nyusi, por causa da sua relativa inexperiência, não tem estofo suficiente para levar o barco moçambicano a bom porto. Essa pode ser a minha opinião, mas este não é o momento para eu a emitir. Deixo isso para os outros e faço votos que ele tenha sucesso. Ok, agora que tenho a vossa atenção: estas frases de abertura são um exemplo duma figura retórica que tem o nome de “paralipsis”. É o truque de dizer o que não deve dizer dizendo que não o vai fazer. Algo assim. É uma das competências chave da profissão política, bom, na verdade, de toda a profissão que depende do discurso em público. Esta figura retórica tem raízes teológicas, por exemplo, naquilo que se chama de teologia negativa, isto é a doutrina que tenta definir Deus na base daquilo que ele (ou ela) não é.
É uma coisa fascinante com implicações filosóficas e estéticas. Por exemplo, Aristóteles baseou-se um bocado nisso para dizer que o verdadeiro objectivo dum sábio não é de alcançar a felicidade, mas sim evitar a infelicidade. Foi o mesmo tipo de raciocínio que o grande escultor Miguel Ângelo (Michelangelo) usou em resposta ao Papa. No último ano do século XV, Michelangelo regressou a Florença – quando este Estado voltou à calma depois dos anos conturbados de fanatismo religioso com aquelas fogueiras das vaidades instigadas pelo monge dominicano, Girolamo Savonarola – e pouco tempo depois recebeu uma “consultoria” para concluir a estátua de David que tinha sido encomendada 40 anos atrás para simbolizar a liberdade florentina. O resultado desse trabalho foi tão esplêndido que o Papa perguntou a Michelangelo como é que ele tinha conseguido produzir essa obra-prima mãe de todas as obras-primas. A resposta dele foi simples: “Facílimo. Retirei tudo o que não era David”. Na verdade, as implicações não são só filosóficas e estéticas. São também políticas.
O “saber negativo”, isto é, o que não fazer, é em muitos casos muito mais importante do que o saber positivo, isto é, o que fazer. Muitas vezes o que conta para o sucesso duma empreitada é saber afastar obstáculos. Só isso. Identificar e afastar obstáculos. Penso que este é um princípio que sempre fez falta ao nosso país. Somos exímios em criar problemas e em tentar resolvê-los criando mais problemas ainda. As soluções moçambicanas só animam quando são anunciadas. Depois são uma grande dor de cabeça. Passaporte biométrico, boa coisa. Mas anda lá tratar, aí só quem, como eu, tem cunhas para se safar. Energia eléctrica para todo o povo moçambicano do Rovuma ao Maputo, tipo “Cabora Bassa é nossa”, tudo bem. Mas depois, cortes, apagões, oscilações de corrente quando a TV está a mostrar a liga dos campeões. Aí só ajuda um gerador, não é? Pois, mas depois barulho, abastecimento de combustível, etc. “Trust fund” para introduzir o multipartidarismo que vai acabar com a guerra, claro. De repente, homens armados, fraude, paridade, banhos de multidões, autonomia, toma posse (ou phombe?), etc. Ou por outra, nós sabemos o que fazer, só não sabemos o que não fazer. E governo atrás de governo tem revelado esta enfermidade tipicamente pérola índica vindo à berlinda com mais ideias sobre o que fazer. Urgentemente, até.
Confesso que pensei neste assunto também, em parte, numa derradeira tentativa de fazer tocar o meu telefone. Na verdade, falta um Ministério no novo governo. Como gostaria de ocupar essa pasta – enquanto aguardo pacientemente pelo insucesso da nova Governadora de Gaza – posso até sugerir um nome: Ministério da Simplificação. E só para demonstrar quão prático este ministério é, num ápice e naquele espírito de evitar o despesismo, ele tornaria desnecessários pelo menos dois ministérios (Interior, Administração Estatal e Função Pública, muito muito este último que tem sido, sob várias denominações, um dos mais patéticos da nossa história governativa). A ideia do novo ministério seria de facilitar as coisas, isto é identificar tudo aquilo que nos impede de irmos para a frente.
Por exemplo, a ida para Sofala daquela senhora cuja função era marcar tolerâncias de ponto teria sido uma das primeiras medidas do novo Ministério. Recomendar a saída da senhora e depois fazer uma lista dos feriados nacionais e tolerâncias de ponto e anunciá-los duma vez por todas. Outra medida: proibir a polícia de trânsito em Maputo de mandar parar os automobilistas para perguntar por documentos. Só permitir que faça isso em caso de suspeita bem fundamentada. Isto seria para evitar a violação constante dum princípio sagrado da nossa ordem constitucional que consiste na presunção de inocência. O engraçado é que ali em frente ao Hospital José Macamo (!) em Maputo a polícia levanta o posto de controlo às 22 horas. Eu se fosse bandido só roubava carro a partir dessa hora. Suspeito até que é o que o bandido faz, pois ele não é parvo e tem muita sensibilidade para a via negativa. Age na ausência de obstáculos.
Só que há um pequeno problema filosófico com este tipo de ministério. É um paradoxo, ou melhor dito, um oxímero. Para ele poder simplificar teria que ficar complexo ele próprio, incluindo o risco (para os meus futuros colegas ministeriais) de abocanhar as funções dos outros ministérios nesse espírito dementemente inclusivo que seria necessário ao seu sucesso. Reconheço que não tenho solução para esse problema. Só tenho consciência de que se alguém me pedisse para definir as prioridades do novo governo eu diria que elas consistem numa coisa só: simplificar. Qualquer solução, não importa que vantagens possa trazer, se implicar processos de implementação mais complicados do que o problema que quer resolver, é mandar queimar como teria dito Thomas Hobbes num outro contexto. Por isso, eu até talvez não seja a pessoa mais indicada para ocupar um posto de tanta responsabilidade (também faz sentido ficar de fora para poder criticar). A pessoa mais habilitada para esta nobre missão tem que ser uma pessoa, lá vamos nós, competente.
Estou a pensar em cobrador de “chapa”. Esta profissão celebra todos os dias, e milhares de vezes, a missa da simplicidade. Ali o objectivo é amortizar o crédito que comprou a carrinha. Não é transporte de passageiros, nem é conforto, muito menos direitos humanos ou segurança. Nada disso. É evitar polícia de trânsito ou reduzir ao mínimo o tempo gasto a “falar como homem”. É só ensardinhar o povo que assim, unido, melhor contribuirá para o combate ao despesismo ou seja qual for a nova palavra de ordem.
Há muita coisa que os dirigentes podem aprender dos dirigidos. A simplicidade é uma delas. Aprender as virtudes da simplicidade para fazer da simplificação o novo princípio de governação.”
Há muita coisa que os dirigentes podem aprender dos dirigidos. A simplicidade é uma delas. Aprender as virtudes da simplicidade para fazer da simplificação o novo princípio de governação.”
No fundo, o desafio político que o serviço público apresenta consiste no reforço dos nossos direitos como cidadãos. O truque político reside aqui mesmo. Pode ser uma solução “mágica” para o problema da corrupção. É só perguntar de que maneira podemos abordar o problema reforçando os direitos das pessoas como cidadãs?
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