Sunday, March 30, 2014

História da semana:



Boa noite gostaria que a publicação fosse por anonimato. Sou filho duma mãe da terceira idade, que respeito e a protejo.
Fui formado como Docente N3 no IFP de Quelimane em 2007. Em 2008 contratado no Distrito de Chinde na Localidade de Matilde, numa das escolas localizadas naquelas pequenas ilhas da foz do rio Zambeze. No ano seguinte ascendi ao cargo de Direcção da mesma escola que é sede da Zona de Influência Pedagógica.
Nesse ano, senti-me na necessidade de me casar, fui a minha zona de origem e feito o matrimónio levei a minha esposa ao serviço.
O episódio começa quando ela concebe, achamos conveniente que ela fosse viver em Nicoadala, na minha residência oficial onde vivo, visto que as deslocações onde eu trabalhava são feitas em canoas, e temendo a situação de última hora e estando na fase de avançada de gestação, combinamos que ela viveria na casa compartilhando todas relações sociais com a minha mãe.
Assim que ela teve bebé, fui lhe pedir que voltássemos ao meu serviço, ela disse que ali em casa estava bem, que não queria voltar ao meu serviço e que também queria voltar a estudar. Votei a ideia dela positivamente, e ela entrou na escola e de lá, conheceu um amigo, por sinal professor dela.
Mesmo distante, não lhe faltou minha assistência. Em 2011 quando eu viajava da cidade de Quelimane á Chinde foi no mês de Abril chovia torrencialmente naquela semana e a estrada que liga Mopeia- Luabo –Chinde, se encontrava intransitável. Tive que passar da província de Sofala nesse caso no distrito de Marromeu para Chinde, na altura que cheguei a Marromeu era tarde e quando procurava um lugar para passar a noite, deparei-me com malfeitores, que arrancaram-me os bens que levava e um valor monetária que se destinava a Ajuda Directa as Escolas vulgo ADE.
Quando chego a Chinde fiquei detido e poucas vezes ela veio me visitar. A nossa relação ganhou outro rumo, ela saiu de casa enquanto eu aguardava o julgamento, foi viver em casa dos pais dela, alegando que não se entendia com a sogra. Passado algum tempo ela ficou grávida do tal amigo professor dela, e actualmente eles já vivem juntos e eu voltei a trabalhar. A minha ex esposa deixou a minha filha com os pais dela, porque o esposo rejeita viverem com ela. Quando vou pedir vê-la, os meus ex sogros proíbem-me de ver a menina que actualmente tem 4 anos, alegando que a menina ainda é pequena. Eu tenho sentimento dum pai e quero que a minha filha esteja do meu lado recebendo a minha educação familiar.
Peço aos amigos deste nobre programa, que me dêem orientações de como posso tirar minha filha da casa dos avos.

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O PREÇO QUE OS MOÇAMBICANOS PAGAM PARA MANTER A FRELIMO NO PODER (

Por Alfredo Manhiça
Conta-se que quando o Cardeal Richelieu (que era também primeiro-ministro de Luís XIII) morreu, em Dezembro de 1642, circulou por Paris o seguinte epitáfio:

Aqui Jaz um famoso Cardeal
Que fez muito mal e muito bem
Todo o bem que fez, fê-lo mal
E todo o mal que fez, fê-lo bem

O que os habitantes de Paris pensavam, quatro séculos atrás, do primeiro-ministro de Luís XIII é, provavelmente, o mesmo que os moçambicanos pensam, hoje, do digníssimo esposo da Dra. Maria da Luz Dai Guebuza. Como no caso de Armando Guebuza e do seu partido, também a política irresponsável de Richelieu era destinada a ter repercussões desastrosas para a França, mesmo nos anos sucessivos à sua morte. A este propósito gostaria de fazer uma breve consideração sobre o «cancro social» causado pelo Governo da Frelimo com a criação da instituição dos«líderes comunitários». Segundo o «Correio da manhã», edição N° 4247, do dia 20 de Janeiro de 2014, cerca de 138,3 milhões de meticais do Orçamento do Estado de 2014 será utilizado para pagar os subsídios mensais de cerca de 25.863«líderes comunitários».


Os régulos vão também beneficiar de novo fardamento, calçado, insígnias e símbolos nacionais usados pelos mesmos, segundo o Decreto–Lei 15/2000, de 20 de Junho. Que maldade há nisso? Pretendia-se, por acaso, que eles trabalhassem sem nenhuma remuneração pelo trabalho que fazem? Não! «O trabalhador merece o seu salário» (Lc 10, 7)! Mas, passemos á análise: Como os mais antigos se recordarão facilmente, depois da assinatura dos Acordos de Lusaka, em Setembro de 1974, a Frelimo aboliu a instituição dos régulos, substituindo-a pela instituição dos secretários de aldeia e de bairro, coadjuvados pelos «grupos dinamizadores». A acusação oficial apresentada para a supressão dos régulos foi aquela de terem colaborado com a administração colonial portuguesa na sua «odiosa» obra de colonização do nosso país. Foram também perseguidos e encarcerados pesava sobre eles a incriminação de continuar a colaborar secretamente com o imperialismo nos atos de sabotagem das conquistas da independência. Estas acusações propagandísticas escondiam uma grande verdade: o regulado era uma instituição política a nível local, com uma própria economia de subsistência, próprios recursos, própria organização social e próprias regras de conduta que potencialmente entrava em colisão com as pretensões totalitárias do regime da Frelimo que não intendia deixar-se condicionar por nenhuma outra força política. A instituição dos régulos – como os partidos políticos constituídos depois do 25 de Abril de 1974 – foram, sistematicamente, eliminados para dar espaço a um livre assalto à propriedade privada e coletiva, e às liberdades políticas individuais e coletivas dos cidadãos. De facto, sem a instituição dos régulos, a quem se recorria quando os direitos consuetudinários eram lesados, as populações rurais ficaram completamente expostas a todo o tipo de abusos perpetrados pelos«revolucionários». Para contrastar o poder odioso dos secretários de aldeia e de bairro (os quais nunca foram legitimados pelas populações), durante o longo período da primeira guerra civil, muitos ex-régulos aderiram ao movimento de resistência de Afonso Dhakama que se apresentava como defensor da autoridade tradicional, do direito da propriedade e da liberdade religiosa. Reconhecendo a influência que os destronados régulos continuavam a exercer sobre as populações locais, já a partir da década Oitenta, a Frelimo começou a procurar meios para subtraí-los da influência da Renamo e colocá-los sob o controlo direito do partido no Governo. No quadro do programa de descentralização da administração pública, com a Lei 3/94, o Governo - sem destituir a instituição dos secretários de aldeia e de bairro - formalizou o seu reconhecimento da instituição dos régulos que, juntamente com a instituição dos secretários de aldeia e de bairro, passaram a ser chamados com um nome genérico de «líderes comunitários».

Como foi dito anteriormente, no ano em curso, vão sair cerca de 138,3 milhões de meticais, dos cofres do Estado, para pagar os subsídios mensais de cerca de 25.863 «líderes comunitários».Remunerar o trabalho prestado é um dos princípios de justiça social. Todavia, se é justo que o trabalhador tenha o seu salário, é também justo que tal salário venha do bolço de quem se beneficia dos serviços prestados, e não do bolço dos terceiros. Portanto, se o serviço prestado pelos régulos e secretários de aldeia e de bairro é a favor do partido Frelimo, deveria também ser o partido beneficiário a suportar os custos, e não todos os contribuintes. A incoerência não está só no facto de ser a totalidade dos contribuintes moçambicanos a suportar as despesas dos serviços prestados a um só partido, mas está sobretudo no facto de o serviço, em si, prestado pelos «líderes comunitários» ser prejudicial para os interesses daqueles pelos quais são remunerados. Por outras palavras, é como se o agricultor tivesse que remunerar o dono dos bois que lhe destruíram a machamba, pelo facto destes (os bois) lhe terem causado prejuízos. De facto, a instituição dos secretários de aldeia e de bairro - criada no contexto do partido único – sempre funcionou como um instrumento de controlo político dos habitantes das aldeias e dos bairros da periferia. Depois da introdução do multipartidarismo, eles passaram a ocupa-se das campanhas de intimidação e orientação do voto dos habitantes das suas aldeias e bairros. Além de orientar o voto dos eleitores da própria circunscrição, os secretários assumiram também a liderança das brigadas de difamação dos partidos da oposição, demolição ou carbonização das suas sedes, ou destruição das hastes das suas bandeiras. Quanto aos régulos, o reconhecimento a eles atribuído pela Lei 3/94 não corresponde a uma devolução do seu poder nas matérias das suas competências, trata-se de uma sua incorporação, a título de funcionários, no aparelho do Estado que, por sua vez, é controlado pela Frelimo. Tendo faltado a devolução de um poder real e concreto, é plausível pensar que os régulos são pagos, não porque prestam um serviço específico às suas comunidades, mas para subtraí-los da influência da oposição e confiar-lhes a função de denigrir e difamar a oposição, junto das populações a eles confiadas. Enquanto nas capitais provinciais e outros centros urbanos – graças ao crescimento do índice de alfabetização e a exposição ao efeito positivo dos meios de comunicação independentes – os cidadãos são cada vez mais autónomos na formação da opinião política individual ou colectiva, e torna-se cada vez mais difícil, da parte do partido no governo, violar os seus direitos políticos, nas regiões rurais, os aldeões estão à mercê dos «líderes comunitários» que determinam como eles se devem comportar politicamente. O baixo nível de escolaridade e a falta de acesso aos meios de comunicação de massa diversificados faz com que os «líderes comunitários» sejam os únicos formadores da opinião pública. A mídia permite as pessoas olhar para além dos limites estreitos de sua aldeia natal. A Rádio e o Jornal (quando não estão ao serviço do regime) demonstram que as coisas são diferentes em outros lugares, ajudam as pessoas a fazer raciocínios comparativos, e a comparação provoca neles um sentimento de insatisfação com a sua situação local e começam a fazer-se perguntas existenciais. Para garantir-se os subsídios a eles atribuídos pelo partido no poder, durante as campanhas eleitorais, os «líderes comunitários» ameaçam os eleitores das suas circunscrições dizendo que «não obstante o voto seja secreto, o Governo tem modos para saber quem votou e para quem votou». Acrescentam, ainda, dizendo que «quem votasse pela oposição deve, depois, pedir a oposição para dar-lhe o lugar onde estar e para lhe indicar a escola onde mandar os seus filhos porque o espaço que nós temos e as escolas que temos são da Frelimo». Este é o modo como os régulos e os secretários de aldeia e de bairro, instruídos ou tolerados pelo Governo da Frelimo, sempre trataram os nossos compatriotas das regiões rurais. De facto, o fenómeno do voto em bloco é uma constante nas circunscrições rurais, come por exemplo em Manjacaze, onde os 100% dos eleitores votam pelo mesmo candidato. O fenómeno da queda vertiginosa da popularidade do partido Frelimo e da pessoa do seu presidente fez com que nas suas presidências abertas dos últimos anos do seu segundo mandato, e nas «primeiras-damas abertas», quer o chefe de Estado, como a primeira-dama, privilegiassem as regiões rurais e o contacto direito com os«líderes comunitários». No seu projeto oculto (mas severamente criticado) de fazer passar um dos seus delfins (entre Vaquina, Pacheco e Nyusi), para depois esconder-se atrás da quinta e continuar a comandar, Guebuza conta com a ajuda dos «líderes comunitários» para fazer vencer o seu pupilo.

Um mal muito bem feito

As razões pelas quais considero esta perversidade «bem-feita» são duas: em primeiro lugar porque ela já criou raízes na nossa história de Moçambique independente e na nossa visão de administração pública. Passou a ser vista como se fosse normal, a tal ponto que, se alguém quisesse pô-la em discussão ariscaria de ser considerado anormal. Por mais estranho que possa parecer, é lícito - pelo menos a nível do livre exercício da faculdade de pensamento – interrogar-se qual seria o futuro dos secretários de aldeia e de bairro, se os pleitos eleitorais de Outubro, deste ano, dessem a vitória a um partido que não seja a Frelimo. O futuro Governo continuaria a pagar os subsídios aos «líderes comunitários» que, desde a primeira hora, estiveram sempre ao serviço dos interesses da Frelimo? Esta pergunta seria absurda se eles tivessem sido constituídos para servir, de facto, as comunidades locais. Como a mudança do Governo não implica a mudança da comunidade, os «líderes comunitários» continuariam a exercer as suas funções, juntos das comunidades locais, independentemente da cor do Governo de turno. Mas a pergunta tem a sua razão de ser precisamente porque esta instituição, embora camuflado de serviço prestado às comunidades locais, as sua obras são contrárias aos interesses das comunidades locais. Em segundo lugar, a instituição dos «líderes comunitários» é um mal porque procrastina, mais uma vez, a inadiável e urgente incumbência, confiada a cada um de nós, de construir a Nação moçambicana, livre de divisões fundadas na cor, no sexo, na origem étnica, na condição social ou na tendência política. Pela natureza em si das coisas, os interesses de cada indivíduo ou grupo social são melhor tutelados pela ação dos próprios interessados e não pelos terceiros. Há uns 200 anos atrás, na sua obra, Filosofia da História, Georg W. F. Hegel, disse que «a nota característica do Negro é a ausência de uma consciência capaz de realizar qualquer existência objectiva e substancial». Teorias como esta foram utilizadas apologeticamente pelas potências europeias, nos anos sucessivos, para ocupar e colonizar os povos africanos. Hoje, o partido Frelimo, sobretudo durante os períodos das eleições, trata as populações rurais como se estas fossem incapazes de uma escolha autónoma do seu destino político e por isso precisassem que o Governo institua e pague os «líderes comunitários» para ditar-lhes a quem votar. Só um governo tirânico pode pretender de identificar-se com o povo e julgar de saber melhor o que é bom para o povo do que o próprio povo. Contrariamente, os governos democráticos individuam o bem comum através da confrontação dos interesses dos governados dotados de uma autonomia nas suas opções políticas, com os interesses dos governantes, como vêm indicados no seu programa de governo. Ora bem, da mesma maneira como os interesses dos governados nem sempre coincidem com os dos governantes, assim, nem sempre os interesses do governo central coincide com o interesse da comunidade local. As categorias do pensamento e as opções políticas dos membros dum governo central são ditadas pelos objetivos e interesses complexivos do Estado que, em certas circunstâncias, podem não considerar os interesses locais. Em contrapartida, um governo local pensa, em primeiro lugar, nos interesses locais. O único modo para melhor curar os interesses nacionais, sem lesar os interesses locais, é ter os dois poderes separados pelo princípio de subsidiariedade. Quando o poder local serve só como um amplificador dos interesses do poder central (como acontece com os «líderes comunitários»),viola-se gravemente os direitos políticos dos cidadãos, enquanto estes últimos são tratados como coisas e não como pessoas capazes de pensar e de querer. De facto, em quase todas as situações em que surge um conflito de interesses entre as multinacionais e as comunidades locais no uso e aproveitamento de terra, por exemplo, no meio estão sempre os «líderes comunitários» que, em nome da comunidade – proibida de pensar e de manifestar a própria opinião -, negociam com o Governo e as multinacionais os acordos de alocação das terras. Tratando-se de uma negociação entre o «patrão» (o Governo) e o seu «cliente» (os líderes comunitários), tal negociação é viciada pelo defeito de assimetria. Não existe uma dialética entre o interesse da comunidade local e o interesses das multinacionais e do governo nacional. Existe só a vontade predominante do entendimento, muitas vezes ilícito, entre o representante do Governo e as multinacionais. Aos «líderes comunitários» cabe a simples missão de «inventar»o melhor modo para comunicar às suas populações a ordem de abando dos territórios em causa, para dar lugar a um megaprojeto de interesse multinacional. Em caso de necessidade, os «líderes comunitários» devem também identificar (e entregar nas mãos da polícia) os líderes dos possíveis revoltosos que mostrarem resistência na implementação das ordens dadas.

A persistente utilização dos régulos e dos secretários de aldeia e de bairro para politizar as populações rurais distancia-nos sempre mais do grande sonho de construir uma Nação onde todos os cidadãos se sintam com direitos e deveres iguais. Embora a linha oficial do partido no poder tenha sempre sido aquela de exaltar o conceito de«unidade nacional», exemplos como estes mostram claramente que todos os esforços, até aqui empreendidos, visam mais dividir do que unir: dividir entre os bons e os maus, entre os revolucionários e os reacionários, entre os servidores da pátria e os servidores dos interesses do imperialismo, entre os moçambicanos e os bandidos armados, entre os que participam do poder político-económico e os excluídos, entre os da oposição (como se estes não fossem moçambicanos) e os da Frelimo (como se o ser moçambicano e o ser da Frelimo fosse a mesma coisa), entre os moçambicanos genuínos e os não genuínos. Com esta sua preocupação obsessiva de politizar as populações rurais, a Frelimo autocondena-se. Procurando apresentar-se como única força política capaz de administrar o bem comum dos moçambicanos, é percebido pelos opositores como uma organização de incapazes que procura coroar a sua incapacidade como única alternativa. A tática de dividere et impera foi utilizada nos dois momentos cruciais da história de Moçambique: na fase da descolonização, a «elite»proveniente de Nachingwea utilizou esta mesma tática para eliminar politicamente e fisicamente muitos dos seus companheiros de luta e muitos outros políticos emergentes, para depois, subjugar o resto dos moçambicanos à tirania de uma minoria. Quando depois de 10 anos de experiência democrática parecia que os moçambicanos estavam a lançar os alicerces do Estado de direito, fundado sobre os princípios democráticos, veio o Senhor Armando Guebuza e reintroduziu o Estado fundado nas relações clientelares e na marginalização dos não clientes. Do ponto de vista jurídico, os Estados podem ser fundados com uma folha de papel e uma cante: basta obter o reconhecimento dos outros Estados soberanos e das organizações internacionais. Mas para ser aquilo que Jürgen Habermas chama de «um livre contrato social entre as populações que se reconhecem numa mesma Constituição», é preciso fazer com que as politicas adotadas incluam efetivamente a todos e a cada um na Magna Charta.

Como o Kenya que não poderá nunca realizar o sonho de construir a Nação keniota enquanto os Kikuiu continuar a tratar os Kalinjin e os Luo como gente de segunda classe, e os rwandeses não poderão construir a Nação rwandesa enquanto o presidente Paul Kagame continuar a financiar grupos paramilitares para massacrar os Hutu na região de Kivu (RDC), e a enviar brigadas de morte para assassinar os Hutu refugiados nos outros países do continente, também Moçambique não poderá nunca realizar o apregoado sonho de unidade nacional e «AUTO ESTIMA», enquanto o Governo continuar a pagar pessoas para denigrir, difamar, discriminar e excluir dos serviços e das oportunidades públicas aqueles que não são membros do partido no poder. A relação que se criou entre o partido no poder e os «líderes comunitários» é perigosa. Transformou aqueles homens (os líderes comunitários) em monstros que renunciaram a faculdade de pensar e de querer, para melhor executar a vontade de seus «patrões», e exigem também das populações postas sobre a sua jurisdição a renúncia da faculdade de pensar e de querer para melhor executarem as suas vontades. Se a posição dos seus «patrões» estivesse ameaçada, os «líderes comunitários», também iam sentir-se ameaçados e por isso estariam dispostos a sair em defesa, não da causa, mas dos seus «patrões». Os inimigos dos seus empregadores tornar-se-iam, automaticamente, inimigos seus. Conhecendo a composição social das populações rurais de Moçambique, um Governo comprometido com a edificação da unidade nacional, a primeira coisa que teria procurado evitar, a todo o custo, era a política da partidarização. De facto, enquanto as populações urbanas – graças ao uso da mesma língua (o Português), o consumo das mesmas telenovelas, o controlo colectivo dos preços de transporte e dos produtos da primeira necessidade, e a dependência colectiva dos serviços públicos – conseguem mitigar as tensões sociais, nas regiões rurais, a partidarização aumenta as tensões entre as população que já estão divididas pela língua, identidade étnica e tribal, crenças, subculturas, meios de sobrevivência, etc. Esta é razão pela qual a violência de matriz étnica em Rwanda, no Burundi e no Quénia, assim como aquela de matriz religiosa na Nigéria, no Mali e na República Centro-africana, tiveram ( e continuam a ter) a sua intensidade nas regiões rurais. Não aconteça que a ação dos «líderes comunitários» nos conduza a um outro conflito que teria como atores as populações rurais. De facto, Por causa da facilidade com a qual se deixaram instrumentalizar pelo partido no poder, e por causa da facilidade com que eles usam o poder a eles atribuído para construir as próprias redes clientelares, os«líderes comunitários» são, muitas vezes, odiados por uns e «amados» por outros, entres os habitantes das suas aldeias. Os clientes do «líder comunitário» são os primeiros (se não forem os únicos) a beneficiar da pouca assistência social da parte do Governo. Aos indesejados (os que são conotados com a oposição), não só é negada a assistência social, como também são dificultadas as autorizações para qualquer tipo de iniciativa económica e negados os serviços de carácter público-administrativo. É tempo de despertar, antes que seja muito tarde. Julgo que seja dever de cada cidadão «iluminado»alertar as populações das regiões rurais sobre a situação dos seus «líderes»vendidos e comprados por um preço de bananas. O dever de defender os direitos políticos das populações vulneráveis contra a instrumentalização de políticos sem escrúpulos, é confiado, pelo dever moral da consciência, a cada um dos cidadãos. De resto, Moçambique não é só Maputo, Beira, Nampula e Quelimane. A ausência do Estado nos momentos de dificuldades faz com que a maior parte da assistência social das regiões rurais seja coberta pelas organizações humanitárias (ONGs, Comunidades religiosas, etc). A missão de promover good governance cabe também a estas instituições porque, no seu agir, são sempre encorajadas a privilegiar «as lições de pesca» do que a distribuição dos peixes aos pobres.

Alfredo Manhiça

Fonte: Academia. Edu 28. 03.2014

Moçambique: Lábia Universal

Moçambique: Lábia Universal

31.01.2012
Moçambique: Lábia Universal. 16364.jpegAs autoridades dão um tratamento opaco aos processos criminais contra a Iurd, afirma ativista de direitos humanos.
Rowan Moore Gerety
Poucos lugares do planeta fornecem terra mais fértil para uma mensagem de cura e prosperidade do que Moçambique. Com 90% da população tentando sobreviver com menos de dois dólares por dia, com metade das crianças sofrendo com desnutrição crônica, o país africano tornou-se um poderoso centro de captação de adeptos para a Igreja Universal do Reino de Deus, a Iurd.

Um exemplo do poder que a neopentecostal brasileira adquiriu em Moçambique ocorreu numa manhã de setembro de 2011. A Iurd promoveu o chamado "Dia de Decisões" (ou "Dia D"), um megaculto realizado no Estádio Nacional de Maputo, capital moçambicana. Teve como objetivo promover curas e demonstrações de fé e, claro, atrair novos fiéis. A igreja reuniu 42 mil pessoas no local e ainda viu outras 30 mil se aglomerarem do lado de fora, acompanhando via telão. As pessoas carregavam rosas nas mãos, símbolo do evento. A compor a massa estavam, entre ou-tros desesperados, jovens vítimas de poliomielite com suas bengalas, camponeses idosos descalços e vendedores ambulantes a sonhar com uma recompensa maior.

O megaculto marcou um ano lucrativo para a Iurd em Moçambique. O canal de televisão da igreja, a TV Miramar, ratificou-se como a líder de audiência. O seu apóstolo, Edir Macedo, foi recebido pelo presidente, Armando Guebuza. O chamado "Cenáculo da Fé", um megatemplo para cultos, foi inaugurado em Maputo. E, por último, a concentração de populares no Dia D, que contou com a presença do primeiro-ministro Aires Ali e da ministra da Justiça, Benvinda Levy, entre outros figurões da política local.

Durante 20 anos de existência em Moçambique, a Iurd cresceu sempre além das expectativas e apesar das vozes contrárias de seus críticos. Nos primeiros anos da expansão, a Iurd enfrentou o então ministro de Cultura e Desporto, Mateus Katupha, que criticou o uso de instalações esportivas para eventos religiosos (enquanto seu atual sucessor presenciou o Dia D in loco). Em meados dos anos 1990, o falecido Carlos Cardoso, estrela do jornalismo moçambicano, publicou uma série de editoriais dizendo que a Iurd constituía uma empresa, ao invés de uma igreja, e como tal, deveria ser sujeita a impostos. -Concorrentes do canal Miramar - a TIM e a STV - têm feito reportagens sobre ex-fiéis da Iurd que entregaram as suas casas à igreja, na esperança de recompensas divinas.

Até hoje, epítetos como "Pastores Ladrões" e a "Igreja de Burla" (fraude), em homenagem à Universal, ecoam nos transportes públicos em Maputo. Descontentes com a igreja de Edir Macedo existem aos borbotões.

Num grupo de coral de outra igreja, a reportagem encontrou três personagens que lamentam ter participado dos quadros da Iurd. Graça entregou um crédito bancário no altar da Iurd para resolver um conflito com seu marido. Selma, que procurou seu filho durante 20 dias na Suazilândia e, aconselhada por um pastor, doou 1,2 mil dólares à igreja antes de tomar conhecimento do seu assassinato. E Felicidade, que interrompeu a construção da sua casa e deixou 25 sacos de cimento no quintal da igreja para se beneficiar de uma bênção anônima.

As três senhoras recordavam as exortações, entrevistas individuais e visitas à casa feitas pelos pastores da Universal, prática posteriormente considerada pelas três como mecanis-mo de manipulação.
Apesar das críticas, a Iurd estabeleceu-se como um ancoradouro na corrente principal da sociedade moçambicana. Nenhuma das queixas-crimes apresentadas contra a Iurd já logrou uma decisão judicial. A TIM e a STV cobram alto pelo enquadramento dos spots da Iurd em suas programações. A imprensa independente, apesar dos comentários ocasionalmente mordazes contra ela, deixa-se subsidiar pela propaganda. Um anúncio recente mostra um grupo de fiéis levantando retratos do presidente Guebuza durante uma "oração pela paz" da Iurd.

Tensões antigas com membros do gover-no foram resolvidas por meio de uma sutil simbiose com a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), o partido no poder. "Certo, há muitos críticos", assentiu José Guerra, fundador e presidente da Iurd em Moçambique. "Mas a Igreja fica mais cheia todos os dias."
Para o Dia D, a estratégia de coerção da Universal assumiu o estilo das campanhas eleitorais. Caminhões com alto-falantes percorreram de forma constante os bairros de Maputo durante dois meses, tocando uma quizomba (música típica) sob encomenda.

A base da publicidade era um pôster, onipresente nas paredes e nos esgotos de Maputo, demonstrando o poder cura-tivo da fé: um par de pés coberto de repugnantes lesões ("Antes") e, do outro lado, outro par, saudável e sem mancha nenhuma ("Depois"). "Meu nome é Armando", anunciava o cartaz. "Sofri com feridas nos pés durante muito tempo. Mas, no dia em que tomei a decisão de participar de uma concentração de fé, fui curado e hoje estou livre."

A Iurd foi a primeira igreja evangélica a se implantar em Moçambique, depois da longa e devastadora "Guerra de Desestabilização" (1976-1992).

A memória da antipatia marxista à religião, durante os primeiros anos da independência e do catolicismo paternalista do estado colonial, permitiu que a Iurd encontrasse um povo aberto a uma nova forma de expressão religiosa. Ganhou adeptos com o mesmo discurso existente no Brasil: a flexibilidade das suas orações, a ausência de regras fixas para os fiéis e, acima de tudo, pela grandeza da sua promessa de transformação pessoal.

Para cativar os fiéis, a Universal utiliza-se das mesmas mandingas e talismãs típicos das religiões afro de Moçambique, justamente as que tanto criticam por, na visão da própria Iurd, promoverem "feitiçaria". A utilização de um óleo abençoado e um tratamento espiritual à base de envelopes com dicas a seguir (e pedidos de donativos) são de praxe. "Eles entendem de feitiçaria e tradição africana muito bem. Dão incensos, pulseiras e todas as coisas que um curandeiro dá", afirma o Pastor Claudio Mulungo, da concorrente Igreja Maná.

A Igreja Universal, como a própria admite, tem a ousadia de prometer milagres a quem tiver a ousadia de pedi-los com convicção - muitos deles ambíguos e presenciados pela reportagem.

E todos os "milagres" do Dia D tenderam ao "infalível" frente às câmeras do Miramar. Um idoso com dores crônicas nas pernas conseguiu correr e tornou-se, nas palavras do pastor acompanhante, um paraplégico curado. Quando voltou a sentar, o senhor me confiou, em voz baixa, que seus pés recomeçaram a doer. Na lógica da Iurd, não "ser abençoado" ou não se beneficiar de um milagre qualquer significa um sacrifício insincero, uma fé insuficiente por parte do fiel. Os milagres malogrados (como o de um rapaz em cadeira de rodas, acorrentado a um cateter, a quem o testemunho público nem foi proposto, apesar do esforço feito para se levantar) não são divulgados. O mais importante é mostrar o sentimento do possível, de acreditar numa inversão da pers-pectiva calvinista: quem for um crente perfeito terá recompensa sem limite.

Dois dias antes do Dia D, Alice Mabota, presidente da Liga Moçambicana de Direitos Humanos (LDH), folheou o Código Penal, detendo-se no crime de burla - obtenção dos bens de outrem por meios fraudulentos.

A aplicação da lei a donativos religiosos poderia estabelecer um prece-dente polêmico: os partidários da Iurd defendem-se de acusações de burla por invocarem a livre e espontânea vontade dos doadores. Porém, existem casos na Iurd, afirma Mabota, que se aproximam de contratos verbais.

O escritório de serviços paralegais da Liga em Maputo recebe, com regularidade, reclamações de burla contra a Iurd, mas os queixosos sempre desistem antes de levar os seus casos à Procuradoria. Algumas disputas laborais da Iurd (por dispensas ilícitas, dívidas à segurança social, discriminação entre moçambicanos e brasileiros) foram resolvidas por acordos de indenização em favor de ex-funcionários da igreja, que já gastou mais de 100 mil dólares com isso. Várias grandes empresas estrangeiras em Moçambique já foram penalizadas dessa forma. Porém, os poucos processos de crime já iniciados contra a Iurd, segundo Mabota, são reféns de uma instrução opaca por parte da Procuradoria.

"Em um Estado normal, (esses casos) receberiam uma decisão. Mas aqui, não. É por causa do poder de influência da igreja através do medo." As atividades da igreja de Edir Macedo em Moçambique não parecem ter suscitado o menor interesse das autoridades tributárias. "Aqui, em Moçambique", disse Felicidade, antiga integrante da Universal, "eles (a Iurd) fazem e desfazem, porque o nosso governo aceita."

Alice Mabota enumerou vários membros influentes do governo adeptos da igreja de Macedo. "Por que nossos dirigentes a frequentam?", interrogou-se.

"Para mim, é o governo a cuidar de si mesmo. Quando chega a hora de votar, eles vão mobilizar todo o povo da Igreja Universal para votar neles."

Ela vê um padrão de exploração no discurso de esperança ilimitada e sacrifício material promovido pela Universal. "O que é que vão decidir no Dia D?", perguntou-me, dias antes do evento: "Vão decidir ter marido, vão decidir ter emprego, vão decidir serem ricos. Acha que é verdade? Mas como dizer a uma pessoa que não tem instrução para não acreditar nisso se deseja tanto acreditar?".

No Dia D, após a "hora dos milagres", a multidão foi instruída para voltar para casa com as suas rosas, que atrairiam todo o ruim, todo o mal no ambiente, para depois as levarem a uma Igreja Universal no domingo seguinte, a fim de serem incineradas. "As coisas mudam pouco a pouco", concluiu Amélia, uma fiel que esperava para partir na boleia de um caminhão.

"Não vale a pena mudar de igreja só por não ver um milagre todos os dias. O Dia me mostrou que Deus existe", insistiu. Mas eu liguei dias depois para Amélia e, até hoje, sua rosa ficou em casa.
Fonte: Carta Capital
http://www.patrialatina.com.br/editorias.php?idprog=45ececbb4fa848ad3a87f3ee17919755&cod=9326

O golpe contrarrevolucionário de 1964: ontem como hoje

O golpe contrarrevolucionário de 1964: ontem como hoje

28.03.2014 | Fonte de informações:

Pravda.ru

O golpe contrarrevolucionário de 1964: ontem como  hoje. 20063.jpeg

Escrito por Mário Maestri
Segunda, 24 de Março de 2014

Somos filhos da derrota que teve momento singular em 1964, consolidou-se com a débâcle da esquerda revolucionária, em inícios dos anos 1970, e foi radicalizada com a transição conservadora, em 1985. Movimento histórico perverso que conheceu salto de qualidade quando da rendição geral das organizações populares nascidas nas gloriosas jornadas sociais, com ápice em 1979 - PT e CUT, sobretudo.



A discussão sobre o sentido profundo do golpe militar de 1964, quando cumpre meio século, constitui indiscutivelmente caminho seguro para o melhor entendimento dos dias atuais. Desde que compreendamos aqueles sucessos como parte do fluxo geral da história do Brasil, com ênfase no seu período pós-Abolição e, principalmente, pós-1930.


Tudo isso, sem esquecer as fortes determinações gerais, sobretudo após 1930, da conjuntura internacional sobre o devir da sociedade brasileira. Determinações que superam em muito a ingerência direta do imperialismo estadunidense no golpe.

Entretanto, apesar dos tempos globalizados em que vivemos, tornaram-se praticamente comuns as interpretações nacionais dos acontecimentos de 1964.

Teima-se na ignorância das contradições prementes entre um capital monopólico, já então em crescente globalização, que necessitava intrinsecamente expandir seu processo de acumulação. Processo emperrado por nações que, desde 1917, em forma crescente, escapavam ao domínio da sua dialética de acumulação-espoliação - os Estados de economia planejada e nacionalizada, a seguir referidos como socialistas, por simplicidade.

Maré crescente
Um contexto internacional que, desde o impulso social conhecido quando e após a II Guerra, colocava em forma crescente, nas Américas, na África e na própria Europa, por linhas diretas e tortas, em sentido consciente e inconsciente, a necessidade e a vigência da revolução das formas de governo e de produção. Processo que embalava igualmente, em forma poderosa, o Brasil.

Propostas de revolução estrutural, nascidas das entranhas profundas das contradições vividas, nacional e internacionalmente, pela acumulação capitalista, que se contrapunham literalmente às orientações das direções da maior potência socialista, a URSS, que propunham a quimera de pacificação social internacional, para permitir, segundo elas, a concorrência pacífica entre capitalismo e socialismo.

Nesta disputa mundial, contemporânea ao golpe na Indonésia, a vitória da contrarrevolução no Brasil, nação continental, com enorme peso na América Latina, teve influência talvez até hoje não aquilatada no confronto mundial objetivo e subjetivo entre capital e trabalho, com o terrível desenlace de fins dos anos 1980, com a vitória da contrarrevolução mundial, sob o signo do qual continuamos a viver.

Em 1964, no Brasil, concretizou-se projeto de conquista golpista do poder dos segmentos conservadores, já tentada em 1954, quando do suicídio de Getúlio Vargas, e em 1961, no contexto da renúncia golpista de Jânio Quadros. O esgotamento do padrão burguês-desenvolvimentista getulista exigia para sua superação a redistribuição das cartas políticas, sociais e econômicas, que com razão as classes proprietárias não aceitavam.

Muito além das reformas de base
Para relançar o processo de acumulação industrial no Brasil, nos próprios marcos capitalistas, impunham-se radical reforma agrária, sem indenização; extensão das leis trabalhistas ao campo; forte ampliação do valor dos salários urbanos e rurais; desenvolvimento de tecnologia nacional; estatização do comércio mundial etc. Muito, mas muito mais, do que as anódinas Reformas de Base janguistas, petebista e pecebistas!

Como aquelas medidas fortaleceriam enormemente o campo do trabalho, a chamada burguesia nacional passou-se de "mala e cuia" ao campo da contrarrevolução. Dirigiu, então, o processo golpista, proposto e exigido, havia muito, pelo capital monopólico estadunidense e mundial. Abraçou-se, portanto, ao latifúndio conservador, ao relativamente frágil capital bancário e financeiro nacional, ao grande comércio, etc. Forças tradicionalmente representadas pela UDN.

Arrombando portas e janelas abertas, historiadores neoconservadores descobrem, extasiados, componente civil no golpe de Estado de 1964! Como se o último não tivesse sido, sempre, movimento da grande burguesia industrial brasileira, da praticamente totalidade dos grandes proprietários de terra, de capitais e do comércio, que arrastaram segmentos médios e mesmo populares sob suas influências. Ou achavam que o golpe fora invenção e decisão dos altos oficiais das forças armadas brasileiras, realizado inteirinho em cor verde-oliva?!

Quem manda no Estado?
O golpe contrarrevolucionário de 1964 deu-se um pouco ao molde da proclamação da República, em 1889, quando os grandes senhores de terra, do comércio e dos bancos, organizados sobretudo no Partido Conservador, serviram-se da alta oficialidade do Exército para formatar a nova forma de dominação que desejavam e necessitavam. Efetivamente, após a Abolição, em 1888, tornava-se desnecessária a centralização imperial, até então impulsionada pelos conservadores em defesa da ordem escravista.

Nos governos dos marechais Deodoro e Floriano, na ditadura militar de 1964, nas ordens fascista na Itália e nazista na Alemanha etc., o poder de fato e a direção estratégica do Estado estiveram sempre nas mãos dos núcleos centrais das grandes classes proprietárias. Os militares brasileiros, como os dignitários nazi-fascistas, no contexto de autonomia sempre relativa, mediavam as disputas entre as facções proprietárias em competição. Classes então incapazes ou não interessadas em impor suas hegemonias políticas diretamente.

Além de expressar interesses profundos da burguesia industrial brasileira em crise de acumulação, o golpe contrarrevolucionário buscava igualmente matar na casca do ovo o crescente processo de mobilização e luta social. Este último, avançando através do mundo, expressava-se cada vez mais enfaticamente no Brasil, onde também se começava a questionar as próprias raízes sociais da dominação burguesa.

Em 1964 e nos anos sucessivos, no Brasil e através do mundo, confrontavam-se a revolução e a contrarrevolução, o capital e o trabalho, em luta surda ou aberta, em geral apenas semi-consciente. Formulação que certamente escandaliza multidões de cientistas sociais atuais. Eles propõem ou sugerem, para o presente, e projetam, para o passado, eternidade à ordem capitalista, apologia consolidada pela hegemonia imposta pela maré conservadora que avassalou o mundo em fins dos anos 1980.

O Brasil esteve às bordas da revolução?
No passado recente, analistas propuseram que, nos anos 1960, o Brasil conheceu período revolucionário, tendo alcançado clímax, ou seja, situação revolucionária, em 1963-4. Realidade abortada pela ausência de direção pequeno-burguesa ou proletária capaz de impulsionar inicialmente, no primeiro caso, e dirigir, no segundo, as classes trabalhadoras e populares no assalto ao poder. Esta é questão que merece análise mais cerrada do que as até agora realizadas.
O certo é que as propostas de reforma da ordem capitalista e do Estado democrático-burguês, elitista e autoritário brasileiro, avançadas pelas direções pecebistas e pequeno-burguesas (brizolistas e outras), fracassaram redonda e inexoravelmente, por não serem minimamente, digamos, na linguagem atual, autossustentáveis. Indiscutivelmente, desarmaram as forças populares no país.

Elas pecavam por propor, por um lado, bloco político-social fantasioso, ao entregarem à burguesia progressista a direção do processo político e das classes trabalhadoras. E, por outro, agitaram programa irrealizável, ou seja, a domesticação do grande capital para obter, nas palavras também crédulas do historiador Marcelo Ridenti, avanço na "democracia política também num sentido social e econômico, diminuindo as desigualdades". (Folha de São Paulo, 23/03/2014).

Socialismo ou barbárie
Nos últimos anos, mesmo no coração da Europa desenvolvida, sob a crise geral da produção capitalista, radicaliza-se o escorcho crescente das classes trabalhadoras e segmentos médios, a um nível até há pouco inimaginável. Nada disto por maldade ou opção, mas por necessidade intrínseca do capital, no seu esforço permanente de relançar sua taxa de acumulação decrescente.

Um processo facilitado enormemente pela dissolução dos Estados de economia nacionalizada e planejada, em fins dos anos 1980, até então fortes escolhos objetivos e subjetivos para o avanço desse projeto de literal barbarização social através do mundo, já sem diferenciar centro e periferia.

Acertam os que dizem que hoje, no Brasil, encontram-se postas as mesmas questões que o mundo do trabalho e as classes populares se defrontaram em 1964, apenas em condições indiscutivelmente muito mais difíceis e complexas do que há meio século, quando o golpe contrarrevolucionário se impôs no Brasil, sem resistência armada das forças populares.

Como já era imperioso e necessário ontem, há cinquenta anos, ainda mais hoje, as classes trabalhadoras industriais devem construir bloco político com os oprimidos de todas as ordens, e todos os homens de bem, em prol da imprescindível refundação das estruturas profundas da nação brasileira, no relativo à propriedade, à produção, à distribuição das riquezas e à gestão do Estado. Um movimento de libertação que se consubstanciará através de processo que necessariamente deverá superar as fronteiras nacionais. Não há outro cominho.

Mário Maestri, 65, é historiador e orientador do Programa de Pós-Graduação em História UPF-RS.

A publicação deste texto é livre, desde que citada a fonte e o endereço eletrônico da página do Correio da Cidadania

A Turquia está fora de controle

A Turquia está fora de controle

29.03.2014 | Fonte de informações:

Pravda.ru

A Turquia está fora de controle. 20069.jpeg

6/3/2014, Christopher de Bellaigue, New York Review of Books, vol. 61, n. 6 (ed. de 3/4/2014)
http://www.nybooks.com/articles/archives/2014/apr/03/turkey-goes-out-control/?pagination=false
Essas linhas apareceram publicadas em recente coluna de jornal, assinada por Can Dündar, jornalista turco, e não consigo pensar em melhor fórmula para apresentar a confrontação pervertida, evitável, quase de história em quadrinhos, que tomou conta da Turquia desde dezembro passado, e que ameaça desfazer todos os ganhos políticos e econômicos de uma década.

As partes em confronto são o primeiro-ministro Recep Tayyip Erdoğan, 60 anos, e um clérigo turco, Fethullah Gülen, 73 anos. Erdoğan lidera o partido que está no governo, "Partido Justiça e Desenvolvimento" (tur. AKP), e trabalha na agitação de Ankara, capital do país. Gülen é o pregador e didata moral mais conhecido da Turquia. Vive em reclusão na Pennsylvania, ao que se sabe em estado precário de saúde (sofre do coração). Gülen preside de modo pouco formal, mas sem dúvida preside, um império de escolas, negócios e uma rede de simpatizantes.

Esse império é que Erdoğan agora chama de "um estado paralelo" ao que ele foi eleito para governar; e está decidido a eliminá-lo. A disputa começou para valer em dezembro passado e tem tido efeito extraordinariamente destrutivo. Muito dos seguidores de Gülen trabalham dentro do governo e têm muito poder. Agora, vastas partes do funcionalismo público foram evisceradas, grande parte da mídia foi reduzida a porta-vozes de uma espécie de 'revelação' politicamente motivada e do 'denuncismo' o mais tresloucado, e a economia está parando, depois de uma década de forte crescimento. O milagre turco é passado.

O governo do AKP de Erdoğan e o movimento de Gülen partilham uma ideologia de islamismo modernizante, e embora as relações entre os dois já viessem se deteriorando há algum tempo, antes da atual crise ainda era possível ser associado aos dois grupos. A coexistência acabou repentinamente dia 17/12, quando mais de 50 figuras pró-AKP, entre as quais o presidente do banco estatal Halkbank; um magnata da construção; e os filhos de três ministros do Gabinete foram detidos para interrogatório por procuradores de justiça considerados homens de Gülen.

As prisões foram executadas, ao que se sabe, por policiais gülenistas, e receberam muita atenção dos jornais e redes de televisão, esses, também, com tendência semelhante pro-Gülen. Denúncias de que os bem relacionados prisioneiros seriam culpados de suborno, contrabando e outros malfeitos foram tuitadas e retuitadas num frenesi condenatório-executório; o ataque pelos gülenistas, de dentro do governo e também de fora dele, foi bem planejado. Descobriram-se provas, entre as quais cerca de $4,5 milhões escondidos em caixas de sapatos na casa do principal executivo do banco Halkbank, além de indicações de pagamentos feitos a ministros. Rapidamente se divulgou que uma segunda fase da mesma investigação atingiria também o filho do primeiro-ministro.

A velocidade e o vigor da reação de Erdoğan a esses eventos indicam que ele os considerou como precursores de sua própria destruição. Imediatamente, começou a varrer de sua própria entourage traidores potenciais ou nomes que lhe parecessem comprometidos; em poucos dias substituiu metade do próprio Gabinete, inclusive os ministros cujos filhos haviam sido presos para interrogatório. O expurgo alcançou pontos longínquos do funcionalismo civil. Como parte da campanha de Erdoğan contra a influência de Gülen, milhares de policiais foram tirados dos respectivos postos, além de altos procuradores de justiça, envolvidos no caso de corrupção e burocratas associados aos ministros demitidos.

No início de fevereiro, o governo começou a investigar oficiais de polícia gülenistas, acusados de formarem "uma organização ilegal dentro do estado". Erdoğan suspendeu as investigações judiciais e partiu para a ação direta. A dois meses de eleições municipais e a seis meses de uma eleição presidencial à qual espera concorrer, Erdogan ainda sobrevive. Mas a tradição política que ele representa, uma síntese de islamismo e livre-mercado, essa, foi gravemente ferida; o primeiro-ministro está também muito gravemente abalado; e há mais abalos por vir.

Antes de o confronto Erdoğan-Gülen começar a ser visto, no início de 2013, e com certeza antes dos protestos nacionais do verão passado, quando liberais turcos tomaram as ruas contra seu autoritário primeiro-ministro, a corrente turca do islamismo modernizante gozava de muitas simpatias. E estava personificada em Erdoğan - que chegou ao poder em 2003, depois de décadas de lutas, pelos islamistas, contra as táticas opressivas de instituições seculares há muito tempo entrincheiradas, sobretudo no Exército e no Judiciário. Nos seus primeiros anos no cargo de primeiro-ministro, Erdoğan pareceu estar conseguindo encaminhar soluções para muitos dos problemas do país. Explorando a forte maioria que tinha o partido AKP no Parlamento, ele conseguiu estabilizar e liberalizar a economia errática, semiplanejada, tornando os turcos mais ricos do que jamais antes; e introduziu várias reformas liberais (o fim da tortura e maiores direitos para os curdos). Talvez mais importante que tudo, pôs as Forças Armadas sob controle das autoridades civis eleitas, as mesma forças armadas que, desde 1960, haviam conseguido derrubar nada menos que quatro governos eleitos.

Em todo esse processo, o partido AKP esteve numa coalizão não oficial com islamistas menos visíveis; e seu mais poderoso parceiro de coalizão era o movimento de Fethullah Gülen. Suas escolas formavam turcos bem comportados, patriotas e piedosos, e o governo os acolhia bem nas elites burocráticas e de negócios que, aos poucos iam deslocando a velha guarda secular. Erdoğan e Gülen pareciam encarnar a ânsia de muitos turcos por um Islã em harmonia com uma democracia eleitoral, com empreendedorismo e consumismo. E o elemento islamista na fórmula deveria assegurar altos padrões de ética e bom comportamento. Durante anos, a vida pública fora venal, movida a ganância, ambições e apetites; os islamistas prometiam fazer as coisas de outro modo.

Mas há ganância e apetites também entre os islamistas. Pouco depois das primeiras prisões de aliados de Gülen na polícia, em dezembro, um vídeo distribuído por internet mostrava um alto dirigente do partido AKP em flagrante delito. (Abdurrahman Dilipak, colunista conhecido e pró-governo, alegou que haveria mais de 40 outros vídeos em circulação, todos "forjados"). Conversas gravadas envolvendo Gülen também foram vazadas e ouvidas por milhões de turcos. Numa delas, Gülen é ouvido numa conversa em que se decidia que empresa turca receberia um contrato oferecido por governo estrangeiro. Em outra fita, Gülen e um de seus assessores discutem a probabilidade de três "amigos" (i.e., seus seguidores) em posições chaves na entidade do estado turco que controla os bancos, garantirem proteção a um banco ligado ao grupo de Gülen, o Bank Asya, contra investigações a serem conduzidas pelo governo. (Pouco depois do vazamento, os três funcionários em questão foram demitidos.) Tudo isso mostrava imagem muito diferente de um santo, que vivia vida frugal, de estudos e caminhadas pelas colinas da Pennsylvania, que Gülen cultivara.

O conflito assume agora tons absolutamente desbragados, e já é visível nos postos mais altos. Erdoğan recusa-se a pronunciar o nome de Gülen em público, mas quando fala de "falsos profetas, videntes e pseudos sábios vazios", seu alvo é claro. Num dos frequentes sermões que Gülen pronuncia de sua própria casa, e alcança vastas audiências na Turquia graças a redes de televisão que o apoiam e à Internet, o pregador exilado lançou uma maldição contra seus inimigos: "que Deus consuma em fogo as casas deles, destrua os ninhos deles, quebre os acordos entre eles." Denúncias de vasta corrupção dentro do governo, muitas das quais envolvendo contratos viciados para projetos de construção e violação de áreas reservadas de zoneamento, são insistentemente repetidas pelos veículos de imprensa-empresa gülenistas, tão insistentemente repetidas que acabam por já serem vistas como verdade comprovada.

Dia 24/2, gravações de conversas telefônicas entre o primeiro-ministro e seu filho Bilal, nas quais pai e filho estariam combinando o modo de esconder dezenas de milhões de euros, foram distribuídas por YouTube. O primeiro-ministro declarou que as gravações eram forjadas, mas elas foram ouvidas dois milhões de vezes em 24 horas imediatamente depois de postadas. Ainda que os expurgos que Erdoğan promoveu no Judiciário e na Política impliquem que não haverá processos nem, portanto, condenações (e a imunidade parlamentar na Turquia proteja alguns dos aliados de Erdoğan), ainda assim é difícil supor que o governo volte a recuperar a reputação de probidade de que gozava antes.

O terreno da disputa é tanto comercial quanto político. O governo acusou o Bank Asya de afiliados de Gülen de ter comprado 2 bilhões em moeda estrangeira pouco antes das operações policiais de dezembro passado - o que implica dizer que os funcionários do banco teriam sido avisados com antecedência sobre o que viria e da consequente queda do valor da lira turca. O banco luta agora para deter uma corrida de saques, que fez o preço das ações cair cerca de 46% entre 16/12 e 5/2. Até especialistas não gülenistas entendem que o governo orquestrou a corrida ao banco, tentando arruinar o Bank Asya, sem se preocupar com danos colaterais, tanto contra os pequenos correntistas como contra todo o sistema bancário que a corrida fatalmente causaria. O capitalismo turco é só muito tenuemente controlado pelo sistema jurídico-judiciário.

A imagem de Erdoğan também está abalada. No verão passado, as manifestações mostraram ao público turco um primeiro-ministro enfurecido, tomado de ira e de medo, como quando reagiu contra a insatisfação de uma minoria predominantemente secular, não com gestos magnânimos, que teriam satisfeito muitos dos manifestantes, mas com cassetetes, porretes bombas de gás e denúncias de um complô sinistro orquestrado 'do exterior', mantido por um sinistro "lobby das taxas de juros", para negar aos turcos o seu bem merecido lugar ao sol.

Quando diz "lobby das taxas de juros", Erdoğan fala de especuladores ocidentais inescrupulosos - judeus, por implicação -, e os discursos dele despertam antigas lembranças; dentre outras, de uma Turquia terrivelmente endividada nos bancos europeus, nos tempos otomanos, o que enfraqueceu mortalmente o império antes do colapso, na 1ª Guerra Mundial. Mas Erdogan invoca também os sombrios anos 1990s, quando uma economia inflacionada, corroída de dívidas e improdutiva foi usada como playground por investidores sanguinários, realizavam seus lucros quando o mercado inchava e só reapareciam depois do crash inevitável, beneficiando-se de juros reais de, em média, 32%.

Esses traumas marcaram a abordagem que Erdoğan deu aos aspectos monetários da crise. Mesmo antes de 17/12, uma combinação de compras de bônus do Federal Reserve; a ameaça de subida nas taxas globais de juros; sinais de que a economia turca começava a esfriar, e tumultos políticos causados pelos protestos do verão passado derrubaram a lira, que caiu cerca de 9%. A queda acentuou-se depois das prisões em dezembro, mas o primeiro-ministro só autorizou ligeira alteração na taxa de juros depois que a moeda já caíra mais 13%, e as empresas turcas, fortemente expostas no curto prazo, com dívidas em dólares, lutavam para cumprir suas obrigações financeiras. Finalmente, dia 28/1, o Banco Central aumentou as taxas, e a queda da lira foi afinal contida.

A resistência ideológica de Erdoğan, contra o aumento dos juros, custou muito caro a empresas turcas. Nas palavras de Inan Demir, economista do Finansbank, em Istanbul: "Não havia outra saída, além de aumentar os juros, ou haveria pânico em grande escala, mas deveriam ter sido aumentados muito antes. Agora, as empresas turcas estão no pior dos mundos, com dificuldades sempre crescentes para pagar, por causa da lira fraca; e com custos financeiros sempre mais altos, por causa dos juros altos."

Em apenas quatro meses, o Finansbank revisou a previsão de crescimento para 2014, de 3,7% para 1,7% - depois de uma década de crescimento médio de mais de 5%. (...)

The Rise of Turkey: The Twenty-First Century's First Muslim Power, novo livro de Soner Cagaptay [discute a economia turca] e nada diz sobre o movimento Gülen, exceto que organizou coruscante conferência internacional, da qual o autor do livro participou, sobre "o papel de liderança da Turquia na Primavera Árabe".

De importante, é que tal conferência seria hoje impensável, porque os Irmãos da Fraternidade Muçulmana aliados de Erdoğan foram já expulsos do poder no Egito, e toda a política deles para a Síria (que previa, erradamente, que seria fácil derrubar o governo de Bashar al-Assad) já fracassou completamente. Cagaptay não é, absolutamente, o único acadêmico que aceitou a hospitalidade do movimento Gülen, que ele classifica como movimento "de prestígio". O problema é que Fethullah Gülen além de ser feito de "prestígio", também é feito de muito dinheiro.

Gülen: The Ambiguous Politics of Market Islam in Turkey and the World foi escrito por um sociólogo norte-americano, Joshua Hendrick, que trabalhou durante sete meses como editor voluntário numa editora afiliada ao movimento gülenista em Istanbul. Eu, que passei recentemente alguns dias com gülenistas, que me pareceram entusiasmados, radiantes, extremamente solícitos e surpreendentes, de início, e, logo depois, cansativos e tediosos, só posso admirar o tempo que Hendrick sobreviveu entre eles. Afinal, valeu a pena, porque nos oferece um estudo detalhado de um movimento definido, se é que se pode dizer assim, pela distorção, pela ocultação e pelo obscurecimento.

Fethullah Gülen nega que comande qualquer tipo de movimento ou que mantenha qualquer vínculo institucional com organizações que o reverenciam. Seus seguidores - já estimados em cerca de 5 milhões - dizem que não formam rede; que são unidos exclusivamente pelo respeito pelo Hocaefendi, o "estimado professor", movidos por sua visão de um Islã moderno e tolerante, que valoriza o conhecimento e o progresso material, tanto quando a piedade e a caridade. Empresas que pertençam ou sejam apoiadas por gülenistas não se identificam como tais, embora haja uma associação, a Confederação Turca de Empresários e Industriais, cujos membros não ocultam a admiração pelo líder. Por tudo isso, é difícil saber quantos bilhões de dólares circulam nessa 'comunidade'. O retrato de Gülen nunca desaparece das paredes das mais de mil escolas privadas, em mais de 120 países, organizadas por seus aderentes, ou das manchetes do jornal Zaman, também de seguidores de Gülen - e o maior jornal da Turquia.

Como observa Hendrick, muita gente sequer se dá conta de que vive na órbita de Gülen - um pai que envie a filha para uma escolha 'de gülenistas' na África do Sul, por exemplo; ou um empregado de serviço terceirizado de uma empresa de construção, mandado trabalhar na Rússia. A negabilidade e a ambiguidade sempre foram e continuam a ser "cruciais para o ininterrupto crescimento [do movimento] nos últimos 30 anos."

O outro fator é o próprio Gülen. O magnetismo pessoal sempre o ajudou a conquistar seguidores desde os anos 1960s, quando, ainda jovem imã de mesquita, já era conhecido pelo estilo emocional de pregar, frequentemente explodindo em lágrimas e, mesmo, atirando-se e rolando pelo chão. Um seguidor que acabava de voltar de uma visita ao Hocaefendi nos EUA, descreveu-o para Hendricks como "dono de poderes que uma pessoa medianamente culta e educada nem consegue imaginar. É um presente de Deus."

Em alguns sentidos, Gülen é reverenciado como se reverenciam os "pole" sufis, seres humanos eleitos por Deus para difundir a verdade divina; mas o movimento Gülen é mundano demais para ser incluído entre movimentos sufis. "Agir" é o princípio orientador declarado dos gülenistas, não qualquer distanciamento ou introspecção.

Acompanhando os ensinamentos de dum adivinho turco do século 20, Bediüzzaman Said Nursi,[1] Gülen crê que a humanidade tenha de ser salva do pecado e aprender o caminho da revelação e o exemplo profético do Corão. A partir do mesmo ponto, outros revivalistas muçulmanos no século 19, sobretudo Sayyid Qutb, do Egito, justificaram a violência e a aplicação à força da lei sagrada. Gülen tende na direção inversa. Prega "abraçar as pessoas, sem considerar diferenças de opinião, visão de mundo, ideologia, etnia ou crença" e com vistas à "democracia, aos direitos humanos e às liberdades" - o que para Qutb é anátema.

A visão de mundo de Gülen ajuda a entender, em certa medida, o internacionalismo do movimento, a ênfase no ensino de idiomas nas suas escolas, e a busca do diálogo entre várias fés, em encontros, conferências e projetos universitários. Diferente de outras organizações islâmicas, o movimento Gülen não recolhe dinheiro exclusivamente para muçulmanos, mas também para não muçulmanos (para as vítimas do terremoto no Haiti, por exemplo). Gülen e seus principais assessores dedicam muito trabalho no esforço de se afastarem de qualquer antissemitismo, e, até, de qualquer crítica contra Israel. Assim, os esforços do movimento para fixar-se nos EUA foram muito facilitados; há ali cerca de 140 escolas especiais gülenistas, e Gülen cultivou boas relações com aliados poderosos na política, na educação e nas artes.

Apesar disso tudo, os gülenistas estão sendo examinados de perto por pais e mães norte-americanos que enviam seus filhos para aquelas escolas, e que se preocupam com a opacidade de seus objetivos e métodos; e, em termos mais gerais, também por observadores que não veem com clareza o que, exatamente, Gülen prega ou representa.

Desde o início do século 19, a educação é preocupação central dos reformadores muçulmanos - com ênfase nas ciências -, e o movimento de Gülen não é diferente. Na Turquia, o movimento já controla oito universidades, dúzias de escolas secundárias privadas e cerca de 350 outras instituições que preparam os alunos para os exames vestibulares, de acesso às universidades. O sistema público de educação na Turquia não tem boa reputação; ou pais, então, economizam para conseguir mandar os filhos para essas instituições pré-vestibulares.

Numa dessas instituições, imaculadamente limpa e muito bem equipada, um gülenista, professor graduado, disse-me que os cursos preparatórios gülenistas põem alunos nas melhores universidades da Turquia, e que reservam 15% dos lugares para alunos pobres, que recebem bolsas de estudo. O professor interrompeu nossa conversa para ir à mesquita, do outro lado da rua, fazer suas preces; e voltou depois, acompanhado de dois alunos agradáveis, de boas maneiras (as moças estudam em ala separada dos rapazes). Contaram-me sobre o sistema "grande irmão", pelo qual se assegura apoio moral e material aos alunos que vivem longe de casa e que se distribuem pelos dormitórios da escola preparatória. Um dos rapazes observou que os professores o tratavam "como seu próprio filho." O movimento gülenista é dado a analogias familiares. Não aprecia trabalhadores que só se dedicam "das nove às cinco"; e a dedicação é apreciada igualmente nos alunos e nos professores.

Riqueza, sucesso, a excitação de participar de uma verdade sublime - o movimento Gülen difunde-se com muita energia, empurrado por esses estímulos. É fácil imaginar o senso de dever que toma os gülenistas mais pobres depois que são elevados àquele mundo de brilhos, cosmopolita e, sobretudo, muito firmemente entretecido. Tanto quanto mediante os livros e discursos do Hocaefendi, eles são também promovidos por laços de amizade; no caso de as famílias originais não quererem trilhar os novos caminhos, então os gülenistas têm de escolher entre a família velha e a nova família.

Cultos e organizações fechadas em todo o mundo se têm servido de métodos semelhantes, e os resultados nem sempre são felizes. Uma psicóloga em Istanbul contou-me sobre um menino muito pobre, filho de um porteiro no distrito mais caro da cidade, que a procurou depois de ter tido contato com um grupo de gülenistas. Eles o acolheram, convidaram-no a visitar a casa onde viviam juntos, o apresentaram às ideias do Hocaefendi, e o fizeram sentir-se vivo, realizado e acolhido. Até que um dia, sozinho em casa, mexendo numa pilha de DVDs, pôs no aparelho um dos discos. Era um guia para atrair novos recrutas, com táticas que o rapaz reconheceu que haviam sido usadas para atraí-lo. Pouco adiante, o rapaz procurou minha amiga psicóloga.

No início de seu livro, Hendrick reproduz parte da transcrição de um vídeo vazado e que foi item da acusação em processo movido contra Gülen em 2000, no qual foi julgado in absentia (Gülen já havia fugido da Turquia para os EUA) por conspiração contra o estado secular. Nesse já famoso excerto, Gülen diz aos seus apoiadores: "Vocês devem mover-se nas artérias do sistema, sem que ninguém perceba a presença de vocês, até alcançarem os centros de poder (...) Vocês têm de esperar até terem tomado todo o poder do estado."

Mas Hendrick não avança muito profundamente na discussão das várias denúncias que se fizeram contra Gülen ao longo dos anos; como sociólogo, talvez entenda que não é trabalho que lhe caiba.

Alegações de que Gülen estaria tentando tomar o controle de órgãos do estado, particularmente o Judiciário e a Política, datam, pelo menos, de 1971, quando Gülen cumpriu pena de sete meses de prisão por trabalhar para minar o secularismo. Essas acusações têm a ver com uma importante diferença entre o movimento de Gülen e outras tradições islamistas turcas. Enquanto outras tradições reagiram de modo ortodoxo contra os obstáculos legais e políticos que lhes foram impostos, concorrendo em eleições e disputando postos de poder, os gülenistas tentaram permanecer corretamente alinhados às instituições seculares (nem sempre com sucesso, como o comprovam a condenação e a prisão de Gülen), ao mesmo tempo em que, gradualmente, se infiltravam dentro delas.

Em 2011, um jornalista, Ahmet Şık, lançou um livro The Imam's Army [O Exército do Imã], no qual expôs o modo como os gülenistas assumiram o controle da força policial turca, ao longo de vinte anos.

The Imam's Army é livro rico de detalhes fascinantes. Fala de uma diretiva que teria sido lançada para os policiais gülenistas no final dos anos 1990s, no auge de uma campanha, pelas autoridades seculares, contra os islamistas turcos. Por essa diretiva, os seguidores de Gülen na Polícia receberam ordens para retirar de suas casas todos os livros, espalhar latas vazias de cerveja pela casa, não usar turbantes para, assim, exibir imagem "secular". Şık também escreve sobre transferências e demissões que são rotina para todos os policiais veteranos ou procuradores que tentam atacar gülenistas, e as campanhas de vilificação movidas contra eles pelas empresas-imprensa ligadas aos gülenistas, em especial pelo jornal Zaman.

Şık recuperou parte de seu material de livro publicado antes, escrito por um ex-chefe de polícia, Hanefi Avcı. Em setembro de 2010, dois dias antes da data em que teria de comprovar suas denúncias numa conferência de imprensa, e apesar de sua manifesta tendência de direita, Avcı foi preso e acusado de pertencer a uma organização de esquerda. Şık foi preso no ano seguinte, pouco antes da data prevista para o lançamento de The Imam's Army. (Apesar dos esforços da polícia para destruir todas as cópias digitais do livro, o texto foi postado na Internet, e foi baixado 100 mil vezes em dois dias.) Mais jornalistas foram presos na sequência, sob pretextos variados, e todos os casos foram reunidos numa só grande investigação sobre um alegado complô contra o governo, pelo antigo establishment secular. A conspiração recebeu o nome de Ergenekon, da pátria mítica da nação turca na Ásia Central.

Quando foi iniciada em 2007, a investigação Ergenekon foi bem recebida por muitos turcos, como oportunidade para o país pôr ponto final aos abusos cometidos pelas forças armadas e seus aliados. Mas muito antes de a investigação chegar ao clímax, em agosto do ano passado, com a prisão de 242 pessoas, incluído um ex-chefe do Estado-maior, acusado de pertencer à "organização terrorista Ergenekon", já muitos haviam mudado de opinião sobre todo o processo, dadas as flagrantes irregularidades no inquérito e no julgamento. Houve condenações sem outras provas além de gravações ilegalmente obtidas; vários casos visíveis de provas 'plantadas' contra um ou outro acusado. A maior irregularidade de todas, provavelmente, se verificou num processo relacionado a esse, em que 330 membros, entre aposentados e do serviço ativo das Forças Armadas foram encarcerados, condenados por planejarem um golpe, em 2003, embora não houvesse qualquer prova contra eles além de um único CD cujo exame mostrou que, um dia, ali estivera gravada a versão 2007 do Microsoft Office.

O julgamento "Ergenekon" deveria ter sido a vingança final colhida pelos longamente reprimidos islamistas turcos e Erdoğan como seu líder. Mas há boas razões para afirmar que jamais existiu algo semelhante à tal organização Ergenekon e que todo o processo foi motivado por desejo de vingança. Segundo Gareth Jenkins, acadêmico britânico que analisou a fundo todo o caso, a operação foi montada e executada não por Erdoğan mas por "uma gangue de seguidores de Gülen na polícia e nos baixos escalões do Judiciário." Na opinião de Jenkins, os gülenistas usaram a operação para castigar seus inimigos. Jenkins acredita que Ahmet Şık, Hanefi Avcı e os demais jornalistas presos - alguns dos quais ainda esperam pela sentença -, foram punidos por serem "críticos, opositores ou rivais do movimento Gülen."

Ainda em 2006, Fethullah Gülen foi absolvido da acusação de tentar tomar o estado turco, mas Erdoğan, seu ex-aliado, deu nova vida à mesma ideia. Tendo apoiado aquela investigação Ergenekon, Erdoğan dedica-se agora a reabrir o mesmo caso, sem dúvidas para usar como publicidade e propaganda os abusos judiciários cometidos pelos gülenistas. Mês passado, Erdoğan reagiu com abuso de sua própria autoria: fez aprovar uma lei, pelo Parlamento, que dá maior poder ao governo para controlar juízes e procuradores.

A disputa entre Gülen e Erdoğan marca o fim de uma parceria que levou o islamismo ao poder na Turquia, e põe por terra a crença, cara até a alguns liberais, de que, se a Turquia deixasse falar sua maioria religiosa e pia, seria também país mais justo. *******


Resenha de

The Rise of Turkey: The Twenty-First Century's First Muslim Power , Soner Cagaptay, Potomac, 168 pp., $25.95

Gülen: The Ambiguous Politics of Market Islam in Turkey and the World , Joshua D. Hendrick, New York University Press, 276 pp., $49.00

I˙mamin Ordusu [The Imam's Army], Ahmet Şık, 298 pp., disponível em theopinions.info/thearmyoftheimam.htm
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[1] http://en.wikipedia.org/wiki/Said_Nurs%C3%AE (ing.)