sábado, 10 de agosto de 2019

Os intelectuais do povo




Elisio Macamo
9 de agosto às 19:01 ·


Há ainda os intelectuais do povo. Embora tenham muita afinidade com os intelectuais do óbvio e da verdade, não são a mesma coisa. Os primeiros rejeitam a complexidade do mundo; os segundos reduzem o mundo a uma verdade essencial. Os intelectuais do povo são advogados. Eles falam em nome do povo partindo do princípio de que a verdade e a razão residem no povo. Conhecimento, para estes intelectuais, é o acesso privilegiado que se tem ao que o povo pensa. Esta é uma propriedade reservada, naturalmente, a uns poucos, daí a sua autoridade e a forte convicção com que falam.

Este tipo de intelectual encontra-se muito nas organizações da sociedade civil cuja vocação é a advocacia. Elas existem para falarem em nome do povo. Pelo menos é o que pensam alguns dos seus funcionários. É uma convicção com muita afinidade com o tipo de regime político que dominou a nossa política à altura da independência e que, nos seus traços gerais, não só nunca nos abandonou como também criou um legado muito complicado na adopção dum sistema político plural. Este reparo é importante por duas razões.
A primeira é que a ideia duma razão que reside no povo é necessariamente hostil ao pluralismo. A democracia baseia-se na ideia do pluralismo, isto é na aceitação da legitimidade da diversidade de valores, ou por outra, na aceitação do direito que cada indivíduo ou grupo de indivíduos tem de decidir o que é bom para si próprio. A intelectualidade do povo tem dificuldades com este princípio fundamental da democracia e, por isso, do lado político, insiste sempre na unidade – unidade nacional! – e, do lado da sociedade mais larga, insiste na demonização de toda a manifestação de valores que sejam diferentes da norma que o discurso da indústria do desenvolvimento (o orgânico e o crítico, tudo mesma coisa) impõe.

A segunda razão é que a insistência num único cânone ético produz espaço privilegiado que vai ser ocupado por aqueles que acham que conseguem interpretar melhor a razão popular. Nos tempos da Frelimo gloriosa, a Frelimo ela própria, apoiada no Marxismo-Leninismo, é que sabia melhor do que o povo o que o povo realmente queria. Munida dessa convicção achava-se no direito não só de impôr isso à sociedade como também de declarar “não-moçambicanos” todos aqueles que com ela não alinhassem. Escusado será dizer que muitas vezes isso levou à violação da dignidade humana, algo que, infelizmente, muita gente ainda se recusa a reconhecer, um reconhecimento que daria autoridade moral para condenar muita coisa hoje.

Menos intelectual do que a Frelimo, a Renamo também inflectiu pela mesma via. Enquanto cometia as suas atrocidades durante o martírio a que submeteu o País durante 16 longos anos, não tinha exactamente nenhuma grande justificação para tal. Só após a assinatura dos Acordos de Roma, já munida da justificação messiânica de trazer a democracia ao povo, é que ela, sadicamente, teve um argumento retroactivo para sublimar as atrocidades: o povo ansiava pela democracia e para tal estava preparado a aceitar esse sacrifício. Foi, na verdade, o mesmo argumento que alguns “intelectuais” usaram para justificarem o recurso da Renamo à violência como reacção às irregularidades eleitorais: os fins justificam os meios. Como, num contexto destes, você pode falar seriamente de paz é uma incógnita para mim.

O impacto desta postura na chamada sociedade civil é de colocar as suas acções acima de qualquer julgamento moral, pois o que ela faz, por menos ético que seja, se justifica pelos bons fins que ela persegue. E o “bom” nesses fins não é algo que se recupere a partir das próprias acções. Recupera-se na boa intenção, a qual, por sua vez, encontra justificação no facto de corresponder aos anseios do povo. Um activista pode insultar políticos, mas os políticos não podem insultar activistas; um activista pode violar a dignidade humana do político ou de outra pessoa, mas estes não têm a mesma prerrogativa; um activista pode impedir o “desenvolvimento” do País (opondo-se, por exemplo, ao investimento estrangeiro por razões ecológicas ou políticas), mas um político não pode impedir o “desenvolvimento” rejeitando propostas económicas que ele considere erradas para o País.

Um dos maiores excessos desta postura é a maneira como a preocupação legítima com irregularidades políticas, ambientais, culturais e sociais na concessão de autoritzações para exploração de recursos naturais está a levar alguns activistas a colocarem o “povo” contra o “desenvolvimento” só para os activistas manterem as suas organizações em vida. No anos passado, em conversa com pessoas que foram reassentadas em Tete, tive um cheirinho disto quando algumas pessoas falaram destas organizações não tanto como suas porta-vozes, mas sim como pessoas que se aproveitam do seu sofrimento para viverem bem em “Maputo”. Algumas pessoas recusaram-se a ser entrevistadas com o argumento de que sabiam que as organizações recebiam dinheiro para fazer esse trabalho, mas não partilhavam com as populações. Respeitei o seu desejo porque a pesquisa era académica e não tinha dinheiro para pagar aos entrevistados.

O intelectual do povo arroga-se o direito de falar em nome do povo, já disse. O que há de problemático nisso é que o “povo”, na verdade, não existe. O “povo” é uma ficção funcional à reprodução da razão da dita sociedade civil. Não quero generalizar, por isso peço para que leiam isto tendo em mente o lado problemático da sociedade civil, não toda a sociedade civil. Não foi escolhida por ninguém para falar em seu nome, mas arroga-se o direito de ter razão em virtude de falar em nome de alguém. Algumas vezes este direito justifica-se com recurso a alguma teoria (normalmente, neo-marxista) que acha saber melhor o que é do interesse do povo e, por via das boas intenções do intelectual do povo, traduz esse conhecimento em vontade do povo. É isso que confere o ar fanático com o qual alguns destes intelectuais do povo falam dos problemas do País, criticam o que está mal e vilipendiam aqueles que eles julgam serem defensores dos opressores do povo. A autoridade do intelectual do povo não é o método científico. É a prerrogativa de falar em nome do povo.

O efeito desta intelectualidade do povo na cultura política do País é de criar obstáculos à discussão séria dos problemas. A tendência é sempre de moralizar o debate. Por exemplo, desde ontem que se discute a decisão do governo de introduzir camiões recondicionados como meio de transporte público. É interessante notar que nessa discussão um dos recursos argumentativos privilegiados é o que o povo quer. Uns dizem que o povo não quer ser tratado assim, outros dizem que o povo prefere isso do que nada. Os méritos e deméritos não do veículo, mas do processo de reflexão que levou a essa decisão não fazem grande parte da discussão. Mas o problema intelectual está aí mesmo. É o eterno problema de como os nossos decisores políticos tomam decisões, isto é com base em que tipo de informação. É esse o problema que o intelectual normal aborda. Como se tomam decisões no País? Como se tomou esta decisão? Que pensamento orientou a decisão? Faz sentido?

Mas, lá está, a intelectualidade do povo afecta também o governo e a esfera pública. O comunicado da autoridade municipal que anuncia a decisão faz um recurso à misericórdia (só não erra quem não trabalha) ao invés de expor o pensamento que orientou a decisão para que ele seja discutido. Não o faz porque, no fundo, o governo agiu no “interesse do povo” da mesma maneira que a paz definitiva não pode ser criticamente interpelada porque foi no “interesse do povo”. E, sim, quando um grupo de compatriotas que vivem da caridade externa para falarem em nome dum povo que não os elegeu para nenhum cargo, investe tempo, energia e dinheiro para exigir que um seu compatriota seja extraditado para os EUA fá-lo porque é também no “interesse do povo”. O povo não quer que Chang seja julgado em Moçambique porque o povo não acredita na justiça nacional. O povo está farto dos políticos, sobretudo da Frelimo. É sempre o “povo”, o “nós” majestático do activismo profissional.

O intelectual normal tem muitas reticências em relação a este charlatanismo intelectual. A postura intelectual do intelectual do povo radica numa falácia: o apelo à multidão. Não é o número de pessoas que concordam com alguma coisa que faz com que essa coisa seja certa. É sempre a qualidade do raciocínio por detrás da construcção intelectual dessa coisa que conta. Por isso, um intelectual normal raramente faz recurso ao que o povo quer para validar o seu raciocínio. Aliás, o intelectual normal abomina esse recurso. Não fala em nome do povo e quando tem que envolver o povo articula isso com algum princípio. Por exemplo, a paz definitiva não é problemática porque o povo se sente ignorado e marginalizado; é problemática porque não envolveu o povo, o que viola um princípio básico da ordem democrática. Demonstra falta de respeito pelo povo, o que constitui uma violação da dignidade humana, o valor básico de qualquer ordem política civilizada. O que conta não é o que o povo “sente” – que eu não tenho como saber sem ter feito pesquisa – mas sim o princípio da participação política tão essencial à democracia.

A intelectualidade do povo é profundamente hostil à democracia ao mesmo tempo que depende dela para existir. Ela simplesmente inviabiliza o debate político por insistir numa única verdade, a verdade do povo.

27Joseph Alexius Faya, Dioclécio Ricardo David e 25 outras pessoas

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Comentários


Alcídes André de Amaral O "Povo" irrita... O seu intelectual dá nervo Risos
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Benedito Mamidji Tenho estado a acompanhar este exercício tipológico da intelectualidade pérola-indiano com interesse. Se por um lado - aventando a possibilidade de concordar com a tipologia - acho a diversidade algo positivo, por outro preocupa-me a ideia de um ponto central onde mora a normalidade. Os tipos de intelectuais aqui arrolados são classificados com base e em função de uma intelectualidade que se quer normal. Faz me lembrar os debates sobre o que é e não é ciência dos finais do século 19. O facto porém é que estás intelectualidades sempre existiram em quase todas sociedades e viveram lado a lado (ora em harmonia ora em conflito, mais em conflito que em harmonia). O que torna o nosso caso aparentemente problemático é a natureza incipiente (diria até nascente) da nossa esfera pública e a confusão que sempre fazemos entre intelectual e acadêmico. Um acadêmico pode ser um intelectual e vice versa, mas nem sempre isso acontece. Nem sempre um intelectual tem que ser acadêmico ou conhecedor das regras basilares da ciência. O historiador Steven Fireman escreveu um dos melhores livros sobre Africa intitulado “Peasant Intellectuals.” Ele assenta a sua argumentação com base no marxista italiano António Gramsci que teorizou sobre o intelectual orgânico e não orgânico. O desafio, a meu ver, não é desqualificar o mosaico de intelectualidade existente no nosso país com base numa ideia hierarquizada de normalidade, mas ver o que ganhamos e o que perdemos com estas intelectualidades várias. Há muito que uns aprendem com os outros, mesmo que nem uns nem outros o reconheçam.
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Elisio Macamo o último texto da série é sobre o intelectual normal. depois de ler isso podemos discutir. por enquanto, apenas esclarecer que não se trata de desqualificar, mas sim de mostrar essa diversidade e o que há de problemático nela. a ênfase é necessariamente na intelectualidade académica. essa é que me interessa. a outra não.
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Benedito Mamidji Muito bem. aguardo pelo último texto
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Alcídes André de Amaral Mas, de qualquer forma, penso que a deia do que é um intelectual normal já está, incrustada, na contraparte de um intelectual anormal. Ando a ler esta séria de textos com base na perspectiva de Norbert Elias: envolvimento e distânciamento. Se de um lado não temos como escapar deste envolvimento, por outro lado devemos ter consciência do valor do distânciamento. O valor intelectual "normal", a meu ver, está nesse distanciamento. É nos impossível olhar a cadeira que estamos sentados exatamente porque estamos envolvidos nela. Se levantarmos dela, e olharmo-la devidamente podemos ter a ideia da textura, da cor, do material usado, etc. O intelectual normal questiona-se sobre isso ciente de quanto mais se envolver na cadeira (activismo e militância, por exemplo) menos capacidade de distanciamento teremos. Gosto de usar o exemplo da cadeira quando me envolvo em debates sobre o papel do intelectual em África... Após a independência caímos em atrocidades talvez até pela dose de involvimento que tivemos com a ideia que defendiamos: o nosso engajamento na luta do povo oprimido.
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Reginaldo Mutemba 4 Tipos ideais de intelectualidade: 1) normal, 2) do Obvio, 3) de Verdade e 4) do povo. Acompanhando a caracterizacao. Olhando pelo percurso da sociedade civil existem modelos que se estabeleceram sem excluir parte dos cidadãos? Em que não existam intelectuais da sociedade civil que sejam pro-locutoras de um estrato da sociedade? Se isso revela marcas actuais de demarcação, por meio de porta-vozes e não necessariamente através de classe em si. Os críticos de Marx na caracterização de classes sociais contemporâneas defendem que quem faz falar a classe são os “porta-vozes”. Existe um modelo puro de uma sociedade civil, que não exclua os outros tendo em conta a complexidade dos assuntos tratados?
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Elisio Macamo Reginaldo Mutemba, não tenho a certeza se entendi o comentário.

Jeremias Messias Prof. Parece que as Organizações da Sociedade Civil devem desaparecer? Elas querem pão por isso ficam levianas!
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Elisio Macamo Jeremias Messias, não é uma questão de desaparecem. também não acho que existam apenas pelo pão. há um contexto dentro do qual elas se tornam assim. é isso que precisamos de entender, sobretudo elas próprias.

Joseph Alexius Faya
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Carlos Edvandro Assis Prof. Elisio Macamo o John Paul Lederach desenvolveu o conceito de "constituição da paz" em contraste à "constituição da guerra". Segundo ele, a constituição da paz são networks formados por cidadãos da sociedade civil. O conceito, sugere que os cidadãos da sociedade civil devem ser tidos como "recursos" e que, um processo de pacificação e desenvolvimento baseada no cidadão, é integral e instrumental para suster mudanças.
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Elisio Macamo Carlos Edvandro Assis, parece-me óbvio, mas ao mesmo tempo pouco útil analiticamente. ajudaria muito que o processo de paz tivesse sido inclusivo para que o impulso de defesa venha da sociedade, mas não sei se se precisa de redes da sociedade civil.
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Carlos Edvandro Assis Elisio Macamo em circuntâncias especiais, estas redes é que oferecem serviços que permitem o estabelecimento de uma estrutura compreensiva para diálogo. Pode extender-se para diálogo permante.
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Elisio Macamo a questão analítica é essa. em que circunstâncias é assim?
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Carlos Edvandro Assis Elisio Macamo diálogo imparcial e vestidas de análises objectivas permanente como fiz ref mais para cima. Isso no cotidiano. E isso requer destas redes questionar sempre às topológias das situações para o seu involvimento.
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Elisio Macamo está a repetir o problema. por exemplo, se alguém disser que moz só vai ter sucesso no futebol quando apostar na iniciação, quando se pergunta em que circunstâncias é que a iniciação garante o sucesso, a resposta não pode ser: quando se apostar na iniciação. que circunstâncias devem prevalecer (ou serem criadas) para que a iniciação garanta o sucesso? então, essa sua referência peca justamente por ser circular, mas é típica duma ciência normativa que se faz por aí, sobretudo quando se analisa os nossos problemas.
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Reginaldo Mutemba Existe um modelo ideal de sociedade Civil em não apareça, necessariamente, pro- locutor de um dado grupo? Olhando a complexidade de assuntos da esfera pública. Exemplo. Uma organização de sociedade Civil que se dedica a protecção da fauna e flora. Todos que representam esta organização tem o mesmo nível de conhecimento, informação?
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Elisio Macamo Reginaldo Mutemba, existem vários tipos. esse é um deles. o outro, mais comum, é de grupos de interesse. por exemplo, as associações profissionais. as associações de contribuintes (e não o cip). as associações dos naturais de...
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