quinta-feira, 4 de outubro de 2018

Armas e munições de paz, com Samora e Victor de Sousa como pano de fundo


Na Galeria 1834, de Gonçalo Mabunda, há um painel gigante que representa a súmula da nação que hoje celebra a paz mas que nasceu das cinzas profundas da revolução. O pintor Victor Sousa quis escrever isso, passando para a tela o que de mais pungente e idílico marcou, para ele, a história de Moçambique. Luta, revolução, Samora Machel, liberdade, irmandade, sonho, guerra, fome e chacinas. Uma nação entrelaçada na construção de uma sociedade livre e na armadilha da destruição. Pinta os símbolos de um socialismo que criou o orgulho da moçambicanidade (de que Albie Sachs falava em Maputo na semana passada aquando da reedição do livro das fotografia de Samora captadas pelas lentes de Kok Nam, organizado por Alves Gomes, com nova introdução de Luís Bernardo Honwana) mas que sucumbiu à ganância de seus “free riders” e ao capitalismo torpe com seu novo-riquismo vigente.
O painel é um acrílico sobre tela que traceja com corres garridas nosso percurso colectivo e, talvez, o destino ainda insondável dessa moçambicanidade. É a peça central de uma mostra colectiva onde se podem também rever Fiel dos Santos, Saranga, Dawiza, João Paulo Quehá, Imani, Forna e o versátil artista e galerista Gonçalo Mabunda. Suas propostas encaixam fielmente na linha temática do painel. Um encontro entre o choro e a esperança. Entre a guerra e a paz. A mostra foi pensada pela “Machel Fidus” (uma agremiação ligada a Malenga Machel, um dos filhos de Samora) para celebrar os 85 anos do nascimento do primeiro Presidente de Moçambique mas também, e justamente, a passagem do primeiro ano sobre a morte do pintor Victor de Sousa.
Sim, o pintor Victor Sousa morreu há pouco mais de um ano sem terminar o painel. No últimos meses, para homenageá-lo, os pintores com obras expostas na mostra juntaram seus pincéis e colectivamente concluíram a obra. Foi um desafio. Primeiro era preciso que cada um perscrutasse os anseios de Víctor Sousa ao imaginar a tela grandiosa. Depois era preciso garantir que o que cada um metesse lá – sua cor, seu traço, cada alma – todos ganhassem na harmonia do produto final. O processo criativo, conta Saranga, um dos artistas envolvidos na conclusão do painel foi inspirador. O pintores esgaravataram as intensões de Victor Sousa mas cada um deixou seu traço peculiar (para quem conhece as cores quentes dos abstractos de Quehá ou a mansidão do azul “navy” com que Fiel do Santos tinge os rostos sombrios nas suas telas). Se houvesse intertextualidade na pintura, eu diria que também captei lá no painel um cheirinho de Malangatana. Nossos artistas mais séniores não gostam que lhe denunciemos as influências. Mas está, lá, com seu boneco de olhos redondos e rostos curvos.
A história mais recente de Moçambique cavalga a busca da paz. A conclusão do painel busca esse epílogo ainda incompleto, com uma granada desarmada em Gorongosa, representada por um ananás robusto como se essa granada estivesse a querer significar um porvir farto de alimentos. E Gonçalo Mabunda. Ele, que também pintou o painel, apresenta na mostra duas esculturas em metal. Em véspera de celebração da paz, Mabunda regressa as armas. Não para fazer guerra. Para fazer paz com as armas... desarmadas. Sua proposta é uma gigante poltrona, que ele intitulou de “O Trono do Marechal”. As pernas são feitas de obuses de morteiro e o tampo de cartucheiras. Tem balas, roquetes, carregadores. gatilhos, coronhas....um pouco de todas as coisas que perfazem uma bazooka ou uma kalash. A mostra ganha relevo também nisso. Se o painel expõe a guerra e suas mazelas na história de uma jovem nação, a peça magistral de Mabunda enterra a guerra e usa seus artefactos para celebrar a paz. Hoje é dia de paz. Samora Machel e Victor Sousa eram homens de paz. (A Galeria 1834, na Paulo Samuel Kankhomba com a Karl Marx, abre todos os dias de até as 18 horas. Esta mostra-venda encerra a 29 de Outubro).
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Fausto Fausto Belíssimo e simbólico quadro de João Fornasini exposto nessa galeria.

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