sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Funcionários públicos devassam à vista de seus chefes e estes fazem vista grossa


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Tema de Fundo - Tema de Fundo
Escrito por Emildo Sambo  em 21 Outubro 2016
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Foto de ArquivoA Informação Anual do Provedor de Justiça, apresentado à Assembleia da República (AR), na quinta-feira (20), não traz avanços de relevo. As cadeias continuam a rebentar pelas costuras e os reclusos a sofrer nas mãos dos guardas e gestores dos estabelecimentos penitenciários. As instituições de justiça pouco dão cavaco, com o agravante de que elas próprias concorrem para o enfraquecimento do acesso à justiça, pois demoram restituir à liberdade os que têm tal direito, violam, de forma sistemática, os limites da prisão preventiva e levam anos para executar os mandatos de soltura. Na Administração Pública, a indisciplina floresce como cogumelos, a retidão dos servidores públicos está longe do ideal e a inércia persiste como a bandeira dos funcionários que deliberada e impunemente faltam aos seus postos de trabalho perante a ausência de punho por parte dos seus superiores hierárquicos.
A partir do informe do Provedor de Justiça, José Abudo, pode-se concluir que, salvo algumas excepções, os funcionários e agentes do Estado conhecem as normas que regem as suas actividades e as entidades a que estão afectos, mas prevaricam até que se fartam porque os seus chefes parecem estar acometidos por um “vírus de desinteresse” por tudo se passa nos seus sectores.
No distrito de Lago, província do Niassa, determinado secretário permanente, que estava no cargo há mais de um mês, disse ao Provedor de Justiça que “não saiba da existência da caixa de reclamações na sua instituição, mas a mesma achava-se no corredor de passagem e todos”.
Entretanto, não foi possível abrir a referida caixa porque todos desconheciam o paradeiros das chaves, o que torna claro que os cidadãos não tinham como interagir com aquele dirigente, com vista à melhoria dos serviços.
Segundo José Abudo, a indisciplina fomentada pelos empregados na Administração Pública persiste e aqueles que deviam impor autoridade e sanções contra os seus subordinados baldam-se. “Há demasiada impunidade de funcionários que violam os seus deveres”.
Em várias instituições, disse o Provedor, no seu informe de 36 páginas e que abrange o período de Abril de 2015 a Março de 2016, “não se marcam faltas àqueles que não se fazem presentes ao serviço e, às vezes, não se instauram processos disciplinares mesmo havendo motivo” para o efeito e tão-pouco há “penalização daqueles que não usam fardamento regulamentado”.
Em caso de instauração de um processo disciplinar, os dirigentes não se pronunciam sobre o mesmo dentro dos 15 dias estabelecidos no Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado (EGFAE), o que leva a anulação do mesmo.
Por sua vez, os administradores do património do Estado pouco dominam os procedimentos de gestão, sobretudo as matérias atinentes à actualização e conservação, considerou José Abudo.
Polícia desleixada e a trabalhar como pode
Enquanto isso, um pouco por todos os comandos provinciais e distritais do país as autoridades deixam o bens apreendidos ou abandonados pelos criminosos ao relento e expostos a intempéries, o que acelera a sua degradação a ponto de não terem nenhuma utilidade. Para o Provedor de Justiça, tais bens deviam ser vendidos em hasta pública e as receitas canalizadas aos cofres do Estado.
No período em análise, a situação em alusão foi mais notória nos comandos distritais de Homoine (Inhambane), Mutarara (Tete), Lago (Niassa), Memba e Erati (Nampula), bem como no Comando Provincial de Sofala, onde algumas viaturas confiscadas em bom estado e parqueadas são paulatinamente vandalizadas, acto que consistiu na subtração de algumas peças e outros acessórios, sem nenhuma responsabilização dos infractores.
Os problemas na Polícia extravasam o acima exposto. A eles acresce-se a degradação e filtração de água de infra-estruturas onde são mantidos os reclusos em situação transitória, falta de gradeamento e arejamento, casas de banho obsoletos com autoclismos disfuncionais, o que obriga os detidos a reservar água nos bidões para o uso após as necessidades biológicas. Nos dias de chuvas os detidos permanecem de pé e à noite dormem num chão molhado, de acordo com José Abudo.
No informe passado, estas anomalias verificavam-se nas penitenciárias de Pemba, Ancuabe, da Zambézia e as celas do Comando Distrital da PRM em Mopeia.
Os reclusos do Estabelecimento Penitenciário Preventivo de Lichinga vivem co lavário em alusão e ainda são privados do banho do sol, alegadamente porque o muro do recinto prisional não oferece segurança por ser demasiado baixo.
Para o José Abudo, este cenário pode levar a que os prisioneiros sofram de dores e fraqueza de ossos e facilitar a sua fractura, provocar sangramentos anormais por conta da falta de vitamina D.
Cadeias sempre apinhadas...
Em relação à superlotação das cadeias, um problema sem fim à vista, nada mudou. Os estabelecimentos visitados pelo Provedor da Justiça albergavam mais gente do que o previsto, tal é o caso do Estabelecimento Penitenciário Preventivo de Lichinga que acolhia 400 reclusos, contra o normal de 80. O caos é o mesmo em Mutarara, Mocímboa da Praia, Inhambane, por exemplo.
Este cenário propicia a transmissão de doenças da pele e outras infecto-contagiosas, principalmente nas celas onde não existe separação entre os prisioneiros doentes e os que não padecem de nenhuma enfermidade.
A não separação de detidos menores de idade dos adultos e de reclusos condenados por crimes graves dos penalizados por crimes leves ainda é uma problema cadente no país, mas com barba branca e rija. O mesmo acontece em relação à superlotação da população prisional e a falta de separação facilita a transmissão de doenças da pele, tuberculose e outras.
Ademais, as cadeias albergam nas mesmas celas reclusos que sofrem de perturbações mentais e que aparentemente são saudáveis, o que “não é novo”. Tal é o caso das reclusões de Tete, Homoíne, Inhambane, Inharrime.
Negado tratamento médico aos reclusos enfermos
O pior do sofrimento a que estão sujeitos os cidadãos privados de liberdade nas referidas cadeias reflecte-se na falta de assistência médica daqueles que apresentam lesões e ferimentos em consequência das agressões físicas perpetradas por populares no acto da detenção.
No distrito de Lago, José Abudo esteve a frente a frente com um cidadão que apresentava escoriações graves na cabeça após escapar da morte nas mãos de populares. Contudo, os agentes da Polícia negam-lhe tratamento médico, o que pese embora a infecção evidente.
Aos parlamentares, José Abudo denunciou ainda que em Mecubúri, o comandante distrital da PRM recusou prover assistência médica a um cidadão que fora torturado por uma multidão, supostamente por falta de roupa para ser encaminhado ao hospital.
Tantos outros problemas repetiam-se em muitos comandos distritais ou prisões por onde o Provedor de Justiça passava. Em Mocímboa da Praia, por exemplo, um número significativo de enclausurados apresenta saúde debilitada e inchaço nos membros inferiores e superiores, o que pode resultar da “falta de movimentação ou insuficiência nutricional”, mas ninguém os levava a uma unidade sanitária.
Desonestidade da Polícia versus reclusões sem prazo de soltura
Os maus-tratos a que é submetida uma pessoa nas mãos da polícia é inimaginável para quem goza de liberdade. Nas esquadras, a Polícia não oferece alimentação aos detidos pretensamente por falta de verba para o feito ou porque é responsabilidade do Serviço Nacional Penitenciário alimentar os reclusos/detidos. Na falta de transporte para transferir as vítimas aos estabelecimentos penitenciários, a falta de comida chega a estender-se por dois a quatro dias.
Todavia, determinados agentes da Lei e Ordem, piedosos, chegam a desembolsar fundos próprios para adquirir alimentação de modo a evitar que os cidadãos presos morram à forme. Diante deste facto, José Abudo disse que “o direito à alimentação nos estabelecimentos penitenciários e nas celas dos comandos distritais da PRM” abrange a todos os indivíduos privados de liberdade, independentemente de a sua prisão estar ou não legalizada, afirmou Abudo.
Aliás, relativamente à prisão preventiva, os prazos continuam a ser reiteradamente violados. Segundo o Provedor de Justiça, “no Estabelecimento Penitenciário Provincial de Nampula, os detidos estão há mais de 10 a 22 meses” nesta situação sem nenhuma “diligência com vista a colocá-los em liberdade provisória”.
O mesmo acontece em relação às penas cumpridas mas sem mandato de soltura. Na mesma cadeia, existem seis reclusos que à data da visita de José Abudo já tinham cumprido as penas a que foram condenados mas permaneciam sem emissão de mandatos de soltura pelo Tribunal da Cidade de Nampula. Isto é “bastante grave e fere os direitos fundamentais”.
Em Tete, concretamente no distrito de Memba, pelo menos cinco compatriotas encontravam-se na mesma situação, porém, o caso mais grave diz respeito a uma cidadã que, após 10 meses de reclusão, pagou caução para ser solta. Volvido algum tempo recolheu novamente aos calabouço sob as ordens do Procurador da República de Moatize, alegando que a visada tinha uma dívida com um outro cidadão. “O Provedor da Justiça interveio e ela foi solta”, mas o magistrado que orquestrou a detenção ilegal não foi responsabilizado.

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