Editorial
O debate mudou de figurino com a entrega à Assembleia da República do projecto de descentralização elaborado pela Renamo, intitulado “Projecto de lei sobre o quadro institucional das Autarquias Provinciais”.
Do debate sobre a sua impossibilidade técnica, passou-se agora ao debate sobre o seu perigo social. Até há manuais de uma certa “unidade nacional” baseada na subalternização das regiões e pessoas acima do rio Save, perante o Sul.
Mantendo constante, é claro, que há um outro debate jurídico dos que infantilmente insistem em arrastar um problema político para o meio forense. Nessa esteira legalista dos habituais “defensores das leis” de ocasião, há os que dizem que a exigência da Renamo de implementação imediata da lei após a sua aprovação é juridicamente absurda, porque as leis regem para o futuro e não para o passado. Mais: há um outro argumento, mais preguiçoso e comodista, segundo o qual, quando, no dia 15 de Outubro de 2014, fomos convocados às urnas, não fomos votar para as autarquias provinciais, mas sim para um Presidente e uma Assembleia da República, a sair dos candidatos vencedores.
Ora, todos esses argumentos para negar a descentralização proposta pela Renamo têm um denominador comum: a falta de honestidade e um cada vez mais indisfarçável e ardente desejo de ver todo um país a prestar vassalagem a Maputo, independentemente da representatividade populacional e da contribuição para o Produto Interno Bruto desse “resto do país”.
Há falta de honestidade, porque se o debate fosse sobre leis, como é que explicam que, dentro do Estado, haja um exército governamental e haja um partido da oposição também com exército armado. Portanto, por aqui cai por terra o argumento legalista sobre a Renamo e Dhlakama. A Renamo e Dhlakama nunca foram um problema da lei, sempre se tratou de um problema político. Depois do incumprimento quase total do Acordo de Roma, que teve o seu ponto mais alto na aposentação compulsiva dos generais da Renamo, que agora só passeiam no Exército, chamar a lei para o debate seria, no mínimo, falta de bom senso.
Mas voltemos ao projecto-de-lei da descentralização elaborado e apresentado pela Renamo. Argumentar que o referido projecto não pode ser implementado com base nos resultados das “eleições” de 15 de Outubro, porque alegadamente não votámos para as “regiões autónomas” é falacioso, porque também ninguém foi às urnas para votar pela consumação da fraude eleitoral. Ninguém votou para depois não se saber onde estão os editais. Ninguém votou para depois o Conselho Constitucional usar um CD áudio para validar os resultados. Tal como ninguém votou para a Polícia violentar as pessoas. Votámos todos na boa-fé de que seria uma eleição limpa e esclarecedora. Mas não. Acabámos todos num processo porco, em que as instituições de justiça eleitoral embarcaram na caravana de estupro à democracia.
Portanto, o projecto-de-lei que confere autonomia administrativa às províncias é apenas uma “atenuante da dor” que a Renamo sente depois da fraude.
Na nossa humilde opinião, toda a análise que visa inviabilizar a criação das autarquias provinciais funda-se na má-fé. Porque ignora todo o “leit motiv” que causou a situação que hoje se pretende emendar. Começar por discutir a impossibilidade da implementação da criação das autarquias provinciais, ignorando a vergonhosa fraude, é mais grave do que a própria fraude. Se a atenuante da fraude não pode ser acolhida, a fraude jamais deveria ser aceite.
Analisemos o espírito do projecto todo e conjuguemos com os argumentos contra, que são apresentados, quanto a nós, de forma avulsa e totalmente ignorante.
O espírito do projecto é mesmo conferir poder às províncias, para que possam decidir sobre as suas prioridades. Se a Renamo é que as vai governar, os resultados das eleições, mesmo depois de adulterados, são suficientemente esclarecedores sobre quem “as províncias” acham que as devia governar. Na nossa opinião, o projecto-de-lei visa acabar com a actual disposição que coloca as províncias como fonte de riqueza da elite da Frelimo instalada em Maputo.
Na actual disposição, as províncias não passam de periferia, e a sua população é remetida para a categoria de “cidadãos de segunda” perante Maputo. É Maputo que decide sobre as suas prioridades. Se as províncias quiserem água, e Maputo decidir que, em vez de água, precisam de campos de basquetebol, assim será.
Quando as grandes corporações chegam a Moçambique, vão a Maputo, e é lá onde lhes são “oferecidas” terras para exploração, bastando para tal aliar-se a um proeminente membro da Frelimo que está em Maputo. É assim que a população é expropriada das suas terras. E, quando se levanta a via mais fácil para resolver o diferendo, é a partir de Maputo ligar para o comandante da Unidade de Intervenção Rápida local, com ordens para assassinar os “cidadãos de segunda”. Isso acontece nas minas de rubi de Cabo Delgado, nas areias pesadas de Moma, nas minas de carvão de Tete, nas minas de ouro de Manica, nas concessões florestais da Zambézia e de Sofala. Invariavelmente, há um dirigente máximo da Frelimo a mamar, na qualidade de sócio dos estrangeiros, desprezando totalmente a população. Como tudo se decide em Maputo, a população dessas províncias que se desenrasque, e, se protestar, está lá a UIR pronta para receber ordens de Maputo.
A actual visão de subalternização das províncias e dos seus povos foi institucionalizada de forma propositada pela oligarquia de Maputo, porque torna mais fácil o saque das riquezas das províncias, com a particularidade de a população ficar “a ver a banda passar”.
É por isso que a oligarquia tem medo de conferir autonomia às províncias. Não se sentem bem em imaginar a população de Ngauma, de Ancuabe, de Nhamatanda, de Xigubo a sair da poeira e a decidir sobre as suas próprias prioridades. Sentem-se desconfortáveis com a possibilidade de deixarem de ser venerados. Querem continuar a sobrevoar, em helicópteros, a nossa pobreza. Querem continuar a vir de viaturas de alta cilindrada e a beberem água mineral e a comerem em serviços de “catering” contratados a partir de Maputo, perante a nudez e a fome do povo. O que lhes interessa é que a veneração continue intacta e que a população continue a vê-los como deuses responsáveis pela sua existência.
No nosso modesto entender, acabar com esta relação de subalternização de regiões e pessoas do mesmo país passa, em primeiro lugar, por combater a mentalidade feudal de superioridade do poder de Maputo. É que o poder em Maputo olha as províncias como um grupo de incapazes. Olha para o povo das províncias como eternos condenados a viverem na miséria. Olham as províncias como o poço fornecedor de riqueza. Este tipo de mentalidade que torna Maputo um centro de iluminados é a primeira barreira para a descentralização. As grandes multinacionais estão hoje a fazer milhões de lucros perante a miséria do povo nas províncias, porque têm carta-branca de Maputo, onde são divididos os lucros. Se as pessoas das províncias estivessem à frente desses processos, provavelmente não teríamos crianças a sentarem-se no chão por falta de carteiras, num país com abundância de madeira. Mas, porque tudo é decidido em Maputo, as prioridades do povo são terceirizadas. A descentralização começa com a luta pela destruição de todo um pensamento de subalternização e inferiorização das províncias e da sua gente.
CANAL MOZ – 03.04.2015
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