A memória
é uma ilha
de edição
Excerto do tema
“Vinheta” do O Rappa
Foi com alguma surpresa que soube que falecera. Justamente peloEdgar Kamikaze Barroso que até me perguntou se sabia que o Ackyamungo ja não estava entre nós. Disse-lhe que não. E até lhe perguntei se teria sido morte súbita. Respondeu-me que não sabia de nada. No dia seguinte disseram-me que a sua enfermidade se manifestara ainda em Tete, nas funções de governador.
E que essa teria sido uma das razões pelas quais Armando Emílio Guebuza lhe teria movimentado para Maputo, onde como Vice-Ministro, estaria sujeito a uma carga de trabalho menos pesada. E fundamentalmente, teria melhor assistência médica. Não conseguiu vencer esta última batalha. Paz à sua alma.
Fui estudante dele nos idos anos 90. Ele sempre foi um frelimista dos sete costados. Eu nunca fui. Mas simpatizávamo-nos mutuamente, porque tínhamos algo em comum. Cultivar o conhecimento para todos em Moçambique. Porque achávamos que mais do que recursos naturais, a maior riqueza de uma Nação era o Homem. Se bem que, muitas vezes, o Ackyamungo o interpretasse a sua maneira.
Por isso não poderia encerrar este breve elogio fúnebre, sem narrar um dos episódios mais marcantes do prof. Ackyamungo na UEM que ilustra bem essa faceta. Que foi o dia em que após três meses em desconhecida “missão de servico", durante os quais foi substituído por uma cavalgadura chamada Figueiredo, que entendia tanto de computadores como um engenheiro de medicina, lá regressou numa solarenga manhã de sábado para dar o exame final da famigerada cadeira de Métodos Numéricos da Faculdade de Engenharia da UEM.
Eram precisamente 10 da manhã, com quase 2 horas de atraso. Três rádios motorolas na mão. Passo apressado. Guayabera cubana. Branca. E uma resma de papel na mão. Ei-lo que surge no horizonte dos aterrorizados estudantes. "O que é que o gajo vai dar no exame?", perguntam-se.
E ele, com aquelas feições de apparatchik Ajaua de sangue temperado maconde, passa por aquela multidão de gente desesperada, para aí umas 100 almas, coisa e tal, e segue directo para o anfiteatro do segundo andar, perseguido pela turba de futuros "quadros e quadrados nacionais" - havia de tudo, como calculam.
E num ápice estava já em cima do estrado onde havia um imenso quadro verde com paus de giz branco, onde ele comanda:
- Entrem todos!...
O pessoal avança e em menos de cinco minutos o anfiteatro de 100 lugares era insuficiente para todos. Havia gente até no corredor e escadarias.
- Mas são assim tantos? Parece que não estudam nada, hein? São da RENAMO?
(Silêncio ensurdecedor na sala)
E ele insiste:
- Quem é da RENAMO dificilmente passará na minha cadeira. E esta cadeira é que justifica o curso de engenharia. Sem ela, não adianta ser engenheiro, podem mudar de curso!
(Silêncio ainda mais ensurdecedor na sala)
Ele então diz:
- Bem, já perdemos muito tempo. Eu sou uma pessoa muito ocupada. Larguei uma missão de alto nível que o Guebuza me deu para vir aqui num sábado, por isso, não vou admitir cabula, hein?
E prossegue:
- Mesmo que quisessem cabular, estariam a perder o vosso tempo. Este teste que eu fiz é só para os que sabem mesmo. O livro que consultei não é aquele que vocês gostam de decorar. Aqui só passa quem me convencer que sabe. Porque nesta cadeira só pode dispensar quem for melhor do que eu!
E finaliza:
- Mas há muita gente aqui dentro. Não posso dar um teste assim! Vamos lá dividir os estudantes em três salas. Vocês aí, vão para o anfiteatro de Electricidade e Magnetismo no primeiro andar. E vocês aí vão para o de Química-Física do outro lado da Faculdade....
(Um estranho sorriso apodera-se de alguns estudantes que se perguntam: - Como é que o gajo vai vigiar 3 turmas ao mesmo tempo? Se hoje é sábado. E não está ninguém na faculdade? Nem funcionários há...)
E ele prossegue, indiferente:
- Vamos embora, que eu tenho compromissos na sede do partido. Dentro de 10 minutos começa o exame! Avisa.
(Passam 10 minutos e todo mundo está já sentadinho em cada um dos anfiteatros. 120 almas, maioritariamente compostas por 2 a 3 gerações de estudantes repetentes)
Começa então o exame. Enunciados distribuídos um-a-um, pelo próprio. E pasme-se, não há variantes. O texto é o mesmo para todos em cada uma das três turmas. Mas antes, ao sair, deixa um dos rádios motorola em cima da secretária. Vai para os outros dois anfiteatros e o cenário repete-se.
E quando termina a distribuição dos testes, comunica as instruções aos pupilos:
- Este é um exame de 120 minutos mas com consulta. Se alguém tiver levantado livros na biblioteca pode consultá-los aqui. Mas não pode partilhar com os colegas. E nem vale a pena perder tempo em consultar livros se for cábula. Mas mostrar que aprendeu mesmo Métodos Numéricos. E nem sequer abandonar a sala sem a minha autorização! E eu vou agora voltar para sede do partido porque tenho um trabalho para finalizar lá da mais alta prioridade.
Dito isto, levanta-se, ante os olhos estupefactos dos estudantes, dirige-se ao parque de estacionamento, entra na sua viatura e parte em direcção à cidade!
E lá ficámos nós, na companhia de um motorola em cima da secretária como única prova de vida da presença do docente e com o ar mais aparvalhado do mundo. Pensando que o Ackyamungo estava mas é a tentar nivelar as estatísticas ameaçadoras de graduados de engenharia da UEM na época. Qual quê! Foi só olhar para o primeiro exercício para percebermos que ia ser o cabo dos trabalhos. Programar, sem erros, nem computador, um código em FORTRAN 77 que executasse a equação da ONDA. O sacana do professor, ruminávamos...
Nem haviam passado 40 minutos quando o motorola ganha de repente vida:
- Pi...puff..piii.pfssst (ruídos VHF) Atenção...atenção estudantes, daqui Ackyamungo! Estou na sede do partido a trabalhar. Daqui a 60 minutos vou recolher os testes. Bom Trabalho!
Escusado será dizer que de 120 só passaram 40. Felizmente eu fui um deles...
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