Sunday, May 26, 2013

"Um ano nas masmorras da Frelimo", de Pinho Barreiros(1977)

 

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No muro da cadeia da Machava, em Moçambique, está escrito, em grandes letras que «as dificuldades são aço que entra na formação do carácter».  

I

FINALMENTE, A CAMINHO DE PORTUGAL.
Quis talvez o destino que, ao beber o cálice da minha amargura, até ao fim, assistisse, em Moçambique, à escalada dum comunismo, primário e orientalista, tipo do Vietname ou Coreia do Norte, o qual vem transformando estas terras em autênticas prisões sem grades e suas gentes em delatoras, algumas das quais do mais abjecto que imaginar se possa! Um autêntico inferno social. Para detidos e condenados, da cadeia central da Machava, as dificuldades principiaram com a chegada dum contingente da «Frelimo», que veio tomar conta da prisão, após um recluso ter sido ferido a tiro, por um guarda, quando se encontrava, de acordo com o que se diz, apenas a colher laranjas, para as levar aos que se encontravam nessa  coisa horrorosa que é a «cela de transição». Anteriormente tinham vindo (arrumadas como sacos de batatas. ) imagens e objectos sagrados que faziam parte do recheio da igreja da penitenciária de Lourenço Marques.
Sempre gostaria de saber o que pensa, por exemplo, o bispo de Nampula, acerca de tudo isso.  e de muitas outras coisas. , bem como os «padres brancos», que certamente vão ficar sem as suas instalações do Lundo.
Para principiar, os «frelimos», armados de me-tralhadoras, reuniram o «povo» da cadeia, na antiga cozinha e, após as ameaças da praxe, conduziram umas tantas pessoas, de cada vez, até aos respectivos pavilhões, obrigando-as a levar as suas coisas para o economato, onde tiveram de deixá-las, tanto fazendo que fosse dinheiro, para comprar cigarros, como os cestos em que alguns reclusos trabalhavam,para arranjarem dinheiro com o qual matavam a fome à família.
Depois foram as «saídas precárias» que acabaram e outras regalias que vieram com o 25 de Abril ou foram concedidas pelo governo de transição, dirigido pela «Frelimo».  Terminou tudo isso mas chegou a pancada, o carregar blocos; o abrir covas, onde alguns foram enterrados, até ao pescoço; o arrastar, com o cachaço, o pesadíssimo carro do lixo, etc, etc.  Tudo em nome do povo, da democracia popular, da linha política da «Frelimo».
E aqueles vinte ou trinta reclusos pretos que manifestaram a sua indignação, por tanta barbaridade, iam sendo abatidos a tiro e foram severamente castigados. Andamos nisto, há dois meses já, sem que o partido tenha tomado quaisquer providências.  Porventura porque as suas estruturas de base lhe não contaram o que se passa, certamente com receio de represálias, por parte dos «frelimos» que se encontram de serviço na cadeia central da Machava.
Não nos esqueçamos porém de que a prepotência e o silêncio geram a corrupção, que é a grande moléstia de todas as ditaduras.  Até a China já se viu forçada a efectuar uma «revolução cultural».
Entretanto, lá de fora, da cidade, chegam quase todos os dias muitos detidos, pretos, brancos e morenos.  Não contando os que são directamente enviados para os «campos de trabalho»  forçados.
Quando toda a gente estiver cá dentro, talvez termine a repressão!
Relativamente a nós, portugueses brancos, creio que só nos poderemos sentir descansados quando entrarmos num avião, ainda que deixando para os abutres tudo quanto demorou uma vida inteira a juntar.
Nada mais resta fazer aos portugueses, em Moçambique, uma vez que foram repentinamente abandonados por seus irmãos da Europa. Mas não fomos só nós os traídos: também foram os pretos, morenos e amarelos queconfiaram em Portugal.  
Por incapacidade e irresponsabilidade de novos dirigentes.
Não se põe em causa a independência concedida: o processo é que se revelou errado e aviltante.
Finalmente, após ter cumprido,na totalidade, o ano de cadeia a que fora condenado, eis-me no ar, a caminho da minha Pátria que, com a Espanha, deram todos os novos mundos ao Mundo.
Todavia, por força de grandes erros e dificuldades materiais que semearam a corrupção; da apatia, derivada dum policiamento ou paternalismo exagerados, o povo português não podia ir ter senão aonde foi parar, a partir de 26 de Abril!
Mas talvez vá nascer a Nova Lusitânia com que certamente sonharão todos os homens e mulheres
ponderados, do meu País. De qualquer forma, estas são as memórias mais sofridas, de todas quantas escrevi, ao longo dos meus trinta e dois anos de actividade intelectual.

II

ALGUNS ATROPELOS A DIREITOS HUMANOS.
Embora 500 anos não pesem por aí além, na história da Humanidade, podem influir, grandemente, na maneira de ser de um povo, sobretudo quando este, como o de Moçambique (que pode não ter tido ali a sua origem mas na África Central. ), se mostrou bastante receptivo à influência portuguesa, devido, certamente, à nossa maneira de ser e estar no Mundo.
Por essa razão e outros motivos também, a deso-cupação ou descolonização, dos territórios que durante quase cinco séculos foram «descoberta e soberania portuguesa» jamais deveria ser feita com a precipitação de quem larga tudo para ir apanhar o comboio.  ainda que esse trem tenha sido impulsionado pelos «ventos da história».  Que nos não diziam efectivamente respeito.
É que na descolonização de Moçambique, como certamente na de Angola e da Guiné, de Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Timor estavam em causa problemas sociais, económicos, políticos, etc, de tamanha envergadura que, ao tentar apenas resolvê-los num ano em vez de três ou cinco, foi um erro tão grande que, mesmo

agora, ainda estamos longe de conhecer as suas autênticas

dimensões, sem embargo de que pessoas efectivamente

avisadas pudessem detectá-las, se realmente soubessem o

que era o Ultramar e o que ali se passava, em função dum

contacto, moroso e directo, e não do que ouviam dizer.

De qualquer forma e se é segura a minha informação,

creio que não haveria necessidade de se atirar às urtigas

territórios como Angola, Moçambique e Guiné, na medida

em que a guerra, na Guiné, estava sustida; em Angola,

praticamente ganha; em Moçambique, onde as coisas

estariam pior, por razões que não interessará, de momento,

salientar, ainda haveria tempo para se encontrar uma

solução, sem se ter entregue aos comunistas da «Frelimo»

milhares e milhares de famílias portuguesas, o que na

realidade constitui um crime de lesa-Pátria, uma vez que

essa gente, sentindo-se traída, objurgou Portugal, embora

isso não evite que muitos portugueses, homens, mulheres

e crianças arrastem a sua existência por «machambas» que

são verdadeiros campos de concentração, quase morrendo

de fome, de maus tratos, de vexames; andando

praticamente nus e descalços, a cultivar as terras!

Em tais circunstâncias e num momento destes, resta

apenas aos brancos, morenos, amarelos e negros que se

consideravam e desejam manter-se por-— 12 —

tugueses e foram gravemente afectados pelo plano de

descolonização, esperar que quer o País quer os homens

que, em seu nome, subscreveram o plano e os acordos, de

Lusaca e outros, assumam plena responsabilidade do que

fizeram.  Assiste-lhes esse direito desde que sempre

tenham cumprido e continuem a observar todos os deveres

de cidadãos portugueses.

Todos nós tínhamos ouvido falar, antes do acordo de

Lusaca, das teses defendidas quer pela O.N.U. quer por

países e pessoas, liberais ou «progressistas»,

relativamente à independênciade Moçambique, de todas

as províncias ultramarinas portuguesas, da Namíbia, da

Rodésia.  e até da África do Sul.

Tudo passaria pela autodeterminação, pela inde-pendência, pela livre escolha duma Assembleia, por

sufrágio universal, na qual cada homem teria direito a um

voto, qualquer que fosse o seu entendimento ou cultura.  

O que seria muito democrático, muito certo, muito

razoável.

Tínhamos ouvido falar disso e da «revolução dos

cravos», em Portugal, do programa do M.F.A., etc, etc, o

que criou em Moçambique a convicção de que iríamos

finalmente dispor dum governo democraticamente eleito,

no qual tomariam parte homens que seriam,

efectivamente, os melhores de todos nós, qualquer que

fosse a cor da sua pele.

Essa, certamente, a razão por que indivíduos como

Urias Simango (a quem, após a morte de Mondlane,

caberia, naturalmente, a chefia da «Frelimo». );

Guenguere, Lázaro Kavandame, Joana Simeão e outros

começaram a aparecer, vindos do

i  — 13 —

estrangeiro ou dos locais de Moçambique, onde se

encontravam, para iniciarem a sua actividade política.

Contrariamente, porém, ao que geralmente se pensava

e as autoridades portuguesas acaso previam, nunca esteve

na intenção da «Frelimo» submeter a sufrágio a sua

popularidade, não fosse o diabo tecê-las.  E, como tanto

sucedia, também não permitiu que os outros fossem às

urnas, de sorte que o caminho mais «democrático» que a

«Frente de Libertação de Moçambique» encontrou foi

meter opositores na cadeia, transferindo-os

posteriormente para Nachingweia, na Tanzânia, durante o

período do governo de transição, numa altura, por

conseguinte, em que Portugal ainda tinha grandes

responsabilidades na administração de Moçambique!

Tanto Urias Simango como Lázaro Kavandame, Joana

Simeão, Paulo Gumane; Mondlane, irmão do falecido

presidente da «Frelimo»; o dr. Júlio Razão, o engenheiro

do Umbelúzi, o médico da Beira, eram considerados

cidadãos portugueses, em pleno uso de todos os seus

direitos e obrigações.  No entanto, foram transferidos de

Moçambique para campos de concentração, situados em

território estrangeiro, onde quem sabe se terão morrido ou

sobrevivido!

Antes do acordo de Lusaca ter sido assinado (o que

veio a verificar-se em 7 de Setembro de 1974), principiou

a notar-se, pelo menos em Lourenço Marques, uma

autêntica ofensiva psicológica, cuja origem, na altura,

seria talvez difícil determinar mas que, mais tarde, ao

estudarem-se os métodos de actuação da «Frelimo», não

seria difícil deduzir de

— 14 —

quem partiu o plano que visava amedrontar, sobretudo os

brancos, em função de propostas obscenas, feitas nos

machimbombos, a raparigas e senhoras; ameaças e

espancamentos, crimes de toda a espécie!

Fartos de serem perseguidos, humilhados e ofendidos,

os portugueses de Lourenço Marques (e entre eles havia

brancos, morenos, amarelos e bastantes negros. )

reagiram frontalmente ao saber que uma Bandeira

nacional andara a varrer as ruas da Baixa.  O símbolo a

que desesperadamente se agarravam e à sombra do qual

foram traídos e sacrificados.

Assim nasceu o «7 de Setembro» que, contrariamente

ao que se terá afirmado em Portugal e ao que a «Frelimo»

quis fazer crer, em Moçambique, não foi uma vã e

terrorista manobra que visava bloquear a ascenção do

povo ao poder mas uma manifestação espontânea e

popular, de portugueses modestos, incapazes de renegar

princípios que enformavam a Nação de que se orgulhavam

de ser filhos.

Que políticos se tenham posteriormente aproveitado

da situação, para tentarem puxar a brasa à sua sardinha, já

é bastante diferente.

De qualquer forma, creio não ter sido de louvar o

procedimento de militares portugueses que, quando a

«Frelimo» ordenou a matança, de manifestantes

desarmados, não defenderam nem a vida í nem os haveres

de seus irmãos de raça e de outros…

Tanto sucedeu em 7 de Setembro e 21 de Outubro de

1974.

— 15 —

III

OS ERROS PAGAM-SE CAROS.

Em minha opinião, tudo quanto de mau ou de cruel

tem sucedido aos portugueses, residentes em

Moçambique, deve-se, na sua quase totalidade, aos

elementos nacionais que fizeram parte do Governo de

transição e ao nosso primeiro embaixador, naquele país, os

quais não souberam ou quiseram fazer cumprir o

implícito, na letra e no espírito do acordo de Lusaca ou

não estava escrito mas seria razoável fazer observar, tal

como o mais elementar bom senso recomendava! A não

ser que dessem de tudo conta a Lisboa e aqui essas coisas

passassem em claro.

De qualquer forma, quem estava em Lourenço

Marques não pode ser facilmenteperdoado, na medida em

que estava a desempenhar funções de tamanha

responsabilidade que exigiam, ao menos, bastante

dignidade individual, se a dignidade nacional lhes não

merecesse tantas preocupações.

Como não foram levados em conta pormenores

— 16 —

a considerar, as consequências são aquelas que se estão a

observar, o que quer dizer que se está a pagar muito caro

os erros cometidos, aliás desde o tempo em que ao general

Caeiro Carrasco foi retirado o comando das F.A., em

Moçambique.

Dir-me-ão, e certamente com razão, que a gene-ralidade dos portugueses ficou em Moçambique porque

quis e que seria relativamente fácil prever o que viria a

acontecer (menos, talvez, umas nacionalizações ou

«subtracções», tão profundas quanto se verificaram. ),

desde que se tivesse ouvido e lido, com toda a atenção, os

discursos que Samora Machel vinha proferindo, desde que

chegou a Cabo Delgado.

Evidentemente que todas as opiniões são falíveis, tanto

quanto a que tenho ouvido formular, em Portugal, segundo

a qual quem devia, no Ultramar, ter pegado em armas,

para nos defender, éramos nós, os que lá estávamos.  

Esquecem-se, porém, de que antes e que saiba depois do

25 de Abril, quem tem armas são as Forças Armadas e que

ninguém está autorizado a usá-las sem seu

consentimento.  Essa a razão por que, lá como cá, foram

chapados às fileiras apenas aqueles que o Governo 4

e

Lisboa entendeu.

Pegar em armas para declarar, unilateralmente, a

independência de Moçambiqueou de Angola era hipótese

que se punha, mais no estrangeiro do que naqueles

territórios, quando eram nossos.  Ê que, apesar de tudo, a

generalidade dos portugueses é muito agarrada à

Mãe-Pátria e tudo fará para engrandecê-la.  Proceder

como Smith, na Rodésia,

— 17 —

2

era saída que não tinha muito acolhimento, pelo menos em

Moçambique.

Claro que, depois do que sucedeu, nem todos pensarão

assim; creio mesmo que a maioria torcerá a orelha, por ter

confiado demasiadamente nosGovernos de 'Lisboa,

deixando-se levar pelo nosso «fado», pelo nosso

saudosismo, em detrimento duma segurança que um

futuro, que se nos afigura não muito distante, dirá se a

África do Sul e Rodésia seriam capazes de ajudar a

garantir.

De qualquer forma, vivem na Rodésia cerca de 50 000

portugueses e na África do Sul 150 000.  O que, por

várias razões, tão fáceis de descortinar, seria bom não

esquecer.

O Governo de transição de Moçambique, que incluía

um alto comissário, indicado por Lisboa, tomou posse no

fim do mês de Setembro de 1974, ou seja poucos dias

depois de ter sido assinado o acordo de Lusaca, no qual se

consignavam termos e condições em função dos quais o

território ascenderia à independência, mas no mesmo já

não constava o essencial, numa autêntica Democracia.

Por parte da «Frelimo», foi indicado um

primeiro--ministro. A escolha recaiu em Joaquim

Chissano, actualmente ministro dos Negócios

Estrangeiros.

Das declarações feitas aos órgãos de comunicação

social, pelo referido alto comissário, as que mereceram

maior relevo foram aquelas em que se salientava que

ninguém seria prejudicado pelos acontecimentos de 7 de

Setembro, uma vez que perfeitamente se compreendia que

foram consequência

— 18 —

de um incontrolável clima de emoção que entretanto se

gerara.

As prisões, em massa, que em Dezembro de 1974 se

verificaram, vieram pôr em causa tais declarações, embora

se possa admitir que os acontecimentos de 21 de Outubro e

os que para Dezembroestavam anunciados,

amedrontassem a «Frelimo» e o Governo de transição de

Moçambique que, tomados de pânico, não apenas

obliteraram a palavra comprometida como ainda tomaram

medidas brutais de repressão que afectaram, geralmente,

quem nada tinha a ver com o sucedido ou se previa vir a

acontecer.

— 19 —

IV

TRISTE NATAL, O DE 1974.

Eu mesmo fui afectado pela onda de prisões verificada

em Dezembro de 1974, tendo sido detido no dia 14 desse

mesmo mês e remetido a masmorras que mais tarde vieram

a ser controladas pela «Frelimo», e donde saí, com custo,

precisamente um ano depois!

B tudo isto porquê ? Porque praticamente durante os

últimos treze anos da minha actividade intelectual outra

coisa não fiz senão defender a dignidade da minha Pátria,

esta e os direitos mais elementares da pessoa humana.

Posto isso, conhecendo muita coisa e sabendo que os

macuas, por exemplo (que só por si são metade da

população de Moçambique. ), nunca estiveram, na

generalidade, ao lado da «Frelimo», perguntei num dos

artigos que em 8, 9 e 10 de Setembro escrevi, num dos

matutinos de Lourenço Marques, onde exercia funções de

redactor, se a «Frelimo» era, efectivamente, a legítima

representante do povo moçambicano ?

— 21 —

Pois a «Frente de Libertação de Moçambique» em vez

de mostrar, nas urnas, que quem estava enganado era eu,

limitou-se a ordenar a minha prisão e, com desinteresse do

alto comissário de Portugal, em Moçambique,

condenou-me a um ano de prisão correccional,

acusando-me de que, com os artigos que escrevera, tentara

alterar a «Constituição (acordo de Lusaca)», o que, se não

fosse tão perverso, seria quixotesco.

Não era, certamente, a Constituição portuguesa, que

respeito, que estava em causa. ; quanto ao acordo de

Lusaca.  na altura em que publiquei os artigos em

referência nem sequer os jornais tinham dado conta do

respectivo texto, o que quererá dizer que fui condenado

pelo facto de ser português, que não renega a sua Pátria, e

ter procurado ser uma pessoaque, acima de partidos e

grupos, coloca a dignidade e a liberdade dos cidadãos.

03 a prova de que nada me pesava na consciência é que

me mantive em Moçambique, para além dos

acontecimentos de 7 de Setembro, em vez de ter partido

para a África do Sul ou Rodésia, como muitos fizeram.

#

O dia 14 de Dezembro de 1974 calhou a um sábado.

Como habitualmente sucedia, fui mata-bichar à «Santa

Maria», nas proximidades da saudosa praça Mac-Mahon e

voltei ao trabalho.

— 22 —

Tão empenhado estava no meu serviço que mal dei

pela presença dos agentes da Judiciária, dois dos quais

eram brancos, creio que «portugueses».

Um deles entregou-me um mandado de captura,

dizendo-me ainda que pretendiam passar por minha casa,

para fazerem uma busca.

O chefe foi comigo e os outros dois num carro da

polícia.

Remexeram o que quiseram mas não encontraram

nada de comprometedor, o quenão seria de admirar na

medida em que sempre fui apenas um intelectual

independente e nada mais.  Por isso recomendei calma à

família, pois absolutamente nada me pesava na

consciência.  Estava totalmente convencido de que se

tratava dum equívoco que seria facilmente sanado!

Da Judiciária transitei para o tristemente célebre

Comando Territorial do Sul do qual a Polícia Militar (do

Exército português, claro está!), recebia ordens.  Era o

COPCON de Moçambique.

Desta vez acompanhava-me um senhor idoso,

funcionário dos Caminhos deFerro, que também fora

detido, acusado de «crime contra a descolonização» !

Fazendo parte dum «jogo» de que só bastante mais

tarde me vim a aperceber completamente, a P.M.

prontamente me conduziu à P.S.P., a qual - honra lhe seja

feita —, por não estar certamente disposta a colaborar em

tão vergonhosa farsa, fez tudo para nos não aceitar.  

Finalmente, não teve outro remédio senão conduzir mais

dois aos calabouços superpovoados.

— 23 —

Foi ali, precisamente, que principiei a aperceber--me do

que, realmente, se estava a passar: pelos motivos já

apontados, tinha principiado uma monstruosa onda de

prisões.

Os «comités» dos lugares de trabalho, de bairro, etc,

começaram a denunciar à «Frelimo», por ordem desta,

todos quantos de quem entendiam dever fazer queixa; e o

partido ordenava à Judiciária que detivesse toda essa

gente.  Todavia, como certamente não queria ficar só ele

ou a «Frelimo» e a Judiciária com o odioso, entregavam as

pessoas à P.M. portuguesa que, por sua vez, passava a

castanha quente àP.S.P.!

Como os magistrados, dispostos a colocar a Justiça

acima dos interesses da «Frelimo», estavam de mala

aviada, os que, por «crimes políticos» foram indo a

tribunal, já sabiam a sorte que os esperava.

Por fim, só encontravam pela frente um que outro

advogado, transformado em juizapressado, e o respectivo

escrivão.  Sem delegado do Ministério Público.  sem

advogado de defesa.

#

Dos calabouços da P.S.P. transitámos para a

penitenciária de Lourenço Marques, que se foi enchendo à

medida que se aproximava o Natal de 1974.

Fomos metidos numa «ramona», toda metálica.  Por

isso o calor, lá dentro, era insuportável, naquela tarde de

Verão africano.

— 24 —

Noutras circunstâncias, os reparos feitos, pelos

companheiros, teriam passado de palavras..; como a nossa

situação, ali, era deprimente e de inferioridade,

limitámo-nos a tirar toda a roupa quê trazíamos sobre o

tronco e deixámos que o suor corresse à vontade.

Chegados à penitenciária e ultrapassado que foi aquele

portão que muito dificilmente voltaria a abrir-se, para

qualquer de nós, cada um foi-se aproximando de quem

deveria ser seu companheiro de cela.  Duma maneira

geral, optou-se pelos que tinham ficado connosco nos

calabouços da P.S.P.

Já éramos bastantes, na penitenciária de Lourenço

Marques, naquele dia, 17 ou 18 de Dezembro de 1974. ;

porém, quando faltavam quatro ou cinco dias para o Natal,

foi uma autêntica caça ao  homem. ; e as prisões a

transbordar. ; e a cidade e o Mundo quedos e mudos. ; e a

O. N. U. e os direitos humanos nada disseram.  Como

nada dizem ainda.

Claro que lusitanos só têm a ver com Portugal e, como

este se manteve «distante», alguns de nós tiveram

dificuldade em entoar o Hino Nacional, naquela noite de

31 de Dezembro de 1974 para 1 de Janeiro de 1975.

- 25 —

V

PROMESSAS QUE SE NÃO CUMPREM.

Disseram-nos que havíamos de ser soltos no Dia De

Reis.  No entanto, esse dia passou e tantos se lhe seguiram

tendo nós unicamente de concreto promessas, boatos e

mentiras.

Pela minha parte e como não podia estar, eternamente,

à espera de atinar com os desígnios da Providência, resolvi

expor a situação ao mais alto magistrado da Nação

Portuguesa.

Talvez por isso, em 25 de Fevereiro de 1975, fui

mandado apresentar ao quarto juízo do tribunal da comarca

de Lourenço Marques, acompanhado do respectivo

processo.

É claro que eles sabiam perfeitamente que não seria

julgado tão cedo.  Talvez por essa razão me mandaram a

tribunal.  Para esperar mais demês e meio por julgamento,

na prisão da Machava que, mesmo no tempo do fascismo,

apenas se destinava a presos de delito comum!

— 27 —

Só para me castigarem e fazerem saber que simples e

razoáveis sugestões do governo de Lisboa eram tratadas

como eles muito bem entendiam.

Não quis também o delegado opor-se à cabala

montada, preferindo formular uma acusação do seguinte

teor: «. No mês de Setembro de 1974, nesta cidade (de

Lourenço Marques) e aquando do chamado «Movimento

de Moçambique Livre», o ora arguido dirigiu-se às

instalações do «DIÁRIO», pois, através da emissora local

foi pedida a comparência urgente de todos os

trabalhadores daquele jornal.

O Pinho Barreiros trabalhava no «DIÁRIO», como

redactor.

Suspensa havia algum tempo a publicação do jornal,

julgou o arguido oportuno colaborar nas edições que

vieram a lume durante os dias do «Movimento» e que se

afiguravam de larga tiragempara garantir de alguma

forma o crédito de que dispunha contra o jornal

«DIÁRIO» já que este era devedor a todos os

trabalhadores, como é de conhecimento público.

Com esta finalidade e desempenhando as funções de

redactor, assinou o arguido Barreiros alguns pequenos

artigos publicados nas edições de 8, 9 e 10 de Setembro do

«DIÁRIO», em que se explanam ideias contrárias ao

Acordo de Lusaka que acabava de ser assinado e que se

apresentava com dignidade constitucional para dirigir o

Estado de Moçambique rumo à independência.

Cometeu assim o arguido o crime de tentativa de

alteração da Constituição (Acordo de Lusaka)»I

— 28 —

VI

NA CADEIA DA MACHAVA

Aquele 25 de Fevereiro de 1975 não amanheceu nem

mais cedo nem mais tarde do queos outros dias, para os

detidos na penitenciária deLourenço Marques.  Como

era, geralmente, dos mais madrugadores, à mesma hora da

manhã estava a calcorrear o sombrio corredor da ala;

deitando contas à vida. ; fazendo um pouco de exercício e

olhando o portão verde, que se divisava ao fundo e que de

quando em vez se abria, para que um bilhete, um jornal,

um aceno nos fosse passado, transitando pela «rapaziada»,

geralmente amiga, que eram os militares portugueses, à

guarda de quem nos encontrávamos.,.

Não obstante, ali metidos, para além das grades, é

muito natural que nos sentíssemos deprimidos ou

revoltados, tal como animais encurralados; bichos de

jardim zoológico. .

Mesmo assim, não compreendo certas lágrimas que vi

chorar; algumas fraquezas, de homens mal

— 29 —

curtidos. ; um que outro alegando ter andado metido em

manifestações estudantis, severamente reprimidas, em

Portugal.

É certo que aquilo ali era diferente. ; lidar com nativos

ou «frelimistas» brancos, feitos à pressa, seria bem pior do

que tratar com pides ou «fascistas».

De qualquer forma, o R.P. tinha quase toda a razão e o

seu comportamento, nos lugares por onde posteriormente

andou, acompanhado pelos capitães M. e L., pelo R., pelo

P., pelo F. e pelo G. dirá ou não se a verdade estava toda

com ele.

Ê muito natural que a melancolia e a raiva vivessem

connosco, na cela duma prisão; que gritássemos o que

sentíamos; que calássemos o que nos apetecia dizer.

Há mesmo «carcereiros» que admitem que assim seja;

outros não.  O Antunes da Costa, por exemplo, era contra

tudo isso.  Se assim não fosse, não teria chamado o

ex-comando ao gabinete para lhe perguntar se queria

apanhar uma carga de pancada, dada pelos «camaradas»,

um tiro ou ir para Nachingweia.

O

1

«rapaz» disse o que afirmara porque estava prestes

a perder o emprego e a não poder casar, em consequência

daquela prisão, ilegal e arbitrária.

A diferença entre o procedimento dele e o de Jorge

Costa é que o ex-comando falou desarmado e sozinho e o

«célebre» inspector teve de apontar a sua arma e a dos

«camaradas», tendo feito o mesmo em relação ao

Esquivei, quando este lhe

— 30 —

perguntou se realmente pensava prender-lhe a esposa,

como ameaçara, por ela não ter querido fazer declarações,

sem primeiro consultar o marido.

No fundo e como muitas vezes acontece, o inspector

não passava dum cobarde pois que, quando o Raimundo

disse que o havia de matar não voltou mais ao portão,

mesmo armado, apressando-se a fazer transportar, para

muito longe de Lourenço Marques, não apenas o R. como

alguns outros, certamente considerados «reaccionários

perigosos».

Quando a transferência deles teve lugar, eu já estava

na Machava. Vieram buscar-me, inopinadamente, quando

me preparava para ir ao recreio.

Foi o furriel que me chamou,dizendo-me para fazer a

entrega da roupa de cama.

Como tanto sempre representou a libertação, os

companheiros, ao saberem, vieram despedir-se de mim,

desejando-me muitas felicidades.

A ninguém passou pela cabeça que estavam a preparar

mais um golpe, como na realidade sucedia. ..

Efectivamente, em vez de me porem em liberdade, foram

entregar-me, com o processo, no quarto juízo do tribunal

da comarca de Lourenço Marques.

Era a primeira vez que isso sucedia, na medida em que

sempre se esperou, em situações idênticas, na

penitenciária.  No meu caso, como alguém certamente

perguntara a razão por que estava, há três meses preso,

sem julgamento, resolverammandar-me a tribunal,

sabendo de antemão que me iam prejudicar, visto que não

sendo logo julgado, como era natural, teria de dar entrada

na Machava,

— 31 —

uma cadeia destinada a detidos e reclusos de delito

comum.

Existia, contudo, a possibilidade de ser posto em

liberdade, ainda que condicional, sob fiança. Havia

viabilidade e existiu essa esperança, que se desvaneceu à

última hora, uma vez que o «digno magistrado do

Ministério Público» (que posteriormente veio para

Portugal, onde viverá tranquilamente. ), por medo de

complicações, não o consentiu.

E a família, que por mim esperava, tantas as garantias

dadas de que, nesse dia, iria dormir a casa, quando soube

do ocorrido, caiu em desespero. ..

De qualquer forma, quando o 25 de Fevereiro de 1975

estava a chegar ao fim, dava entrada na cadeia central da

Machava.

Devido a tudo quanto se tinhapassado; ao convívio de

alguns momentos, com a família; às grandes esperanças

vividas, que tive como certezas, o ingresso na Machava

foi o pior choque da minha vida.

Até a cidade de Lourenço Marques, que tanto amava e

tão bem conhecia, tomou forma de monstro, de pesadelo.  

Era afinal a transição para pesadelos maiores.  Que ao fim

e ao cabo um ser humano é capaz de suportar.  Por isso a

liberdade e a dignidade ainda não morreram — nem

perecerão, não obstante o que presentemente sucede, por

esse mundo fora.

Na Machava, sem eu saber, alguns reclusos

facilitaram-me a vida, evitando que passasse pela

— 32 —

«cela de transição». Não puderam porém obstar que me

sentisse profundamente deprimido pelo que ali vi.

Mão amiga, de recluso também, ofereceu-me uma

chávena de café, que foi o meu único alimento, naquela

noite.

Quanto a dormir, só muito tarde resolvi entrar na cela e

deitar-me naquela cama nojenta.

No dia seguinte e pela primeira vez os meus nervos

cederam.

O companheiro de cela que, com jactância, gostava de

ser tratado por «Burlão de Luanda», quis ser simpático

para comigo e foi ensinar-me onde era o refeitório.

Todavia, a minha sensibilidade opôs-se a que me sentasse

num lugar daqueles, entre semelhante gente.

Quanto à qualidade da alimentação e higiene geral

nem será bom falar-se.

Os mais esquisitos arranjaram maneira de ingerir na

cela a comida que lhes era distribuída na cozinha. Creio

que esta teria sido uma das concessões do 25 de Abril.

Pela minha parte, da comida só aproveitava o pão.  O

resto eram salsichas e peixe de conserva que comprava na

cantina, quando podia;..

Com uma alimentação destas, nada substancial, assim

me aguentei alguns meses, utilizando como mesa o chão e

como tecto a sombra acolhedora das laranjeiras.

O pior foi quando os homens da limpeza foram fazer

queixa ao capataz, acusando-me de estar a sujar o pomar.  

Na verdade, como à falta de sítio

— 33 —

melhor, ia por lá ficando uma que outra lata vazia, não

deixavam de ter razão.  Só que não estava com disposição

para discutir e, por esse motivo, resolvi mudar de sítio.

Foi por essa altura que o meu companheiro de cela

baixou ao hospital do Infulene, tendo vindo ocupar a sua

vaga um indivíduo que, a julgar pela aparência, devia ser

consumidor de droga.  Por isso teria sido preso e, pela

mesma razão, tão depressa pôde fugir, evadiu-se para ir

liquidar quem o tinha denunciado: um militante da

«Frelimo», residente no Alto Maé.

#

Mais ou menos por essa altura, apareceu na cadeia

central da Machava o F. e o S., companheiros da

penitenciária de Lourenço Marques, o primeiro acusado

de ser «reaccionário» e o segundo de ter tomado parte no

«7 de Setembro».

à medida que iam surgindo outros, ia-se tornando

mais difícil a existênciados detidos, acusados de

«actividades subversivas», pois era intensa a propaganda

da «Frelimo», a qual atingia sobretudo os nativos, os

quais, supondo que isso lhes traria grandes vantagens,

incluindo o regresso à liberdade, tornaram-se adeptos

fanáticos da linha política do partido, procurando cumprir,

mais do que à risca, as palavras de ordem «unidade, vigi-lância, trabalho».  Por isso tentámos diluir-nos,

— 34 —

o quanto possível, no meio daquela gente.  Mesmo assim,

o S. ainda teve problemas.

O pior, para os que se deixaram influenciar, foi quando

chegou a independência e ninguém foi posto em

liberdade.  A partir daí, começaram a aperceber-se de que

tinham sido ludibriados e por essa razão tentaram

desviar-se da posição assumida.  Tarde porém visto que

as ameaças, os castigos e a força das armas já não

deixavam ninguém recuar.  O que afinal parece suceder

em todos os países onde o comunismo consegue

estabelecer-se.

— 35 —

VII

O JULGAMENTO

Entretanto, no quarto juízo dotribunal da comarca de

Lourenço Marques, o meu processo foi correndo os seus

trâmites, até que o respectivo julgamento foi marcado para

9 de Abril de 1975, da parte da manhã.

Toda a gente me dizia que ia ser absolvido, na medida

em que era ridícula e infundada a acusação que me faziam

de tentar alterar a «Constituição (acordo de Lusaca)», com

artigos que escrevera, em 8, 9 e 10 de Setembro de 1974,

primeiro porque o acordo de Lusaca não era nenhuma

Constituição — nem portuguesa nem moçambicana—;

segundo o referido acordo nem legal nem publicamente

existia, uma vez. que não tinha sido ainda publicado no

boletim oficial de Moçambique e nos jornais só o foi

bastante tempo depois dos meus artigos terem vindo a

lume.  Logicamente, não havia qualquer relação entre uma

coisa e outra.

— 37 —  

Como prova, foi junta ao processo fotocópia do jornal

de maior circulação, em Lourenço Marques, que incluía o

referido acordo.

O dia 9 de Abril de 1975 foi a uma segunda-feira.

Em minha casa e na Machava, à minha frente, tinham

dito para ir confiante pois seria posto em liberdade.

A família acreditou e ficou à espera. ; pela minha

parte, estava quase tão satisfeito como ela.

Pelo caminho, metidos naquele imundo transporte, o

Sousa, que ia ao hospital, foi-me dizendo para ir

sossegado porque já não regressaria com ele à cadeia.

No tribunal, alguns familiares, as testemunhas de

defesa, o defensor oficial.  por não ter dinheiro para

mais.

■E vá lá que, naquela altura, ainda havia quem

pretendesse defender.  Existia isso mas havia também

uma determinação que obrigava a recurso, no caso de

absolvição, ao que parece com os réus aguardando o

desfecho, na cadeia!

O advogado leu-me um documento, que constituiria

capítulo de defesa, dizendo-me que, destruída que

considerava a acusação, o julgamento giraria à volta da

minha personalidade.

O juiz quis saber das testemunhas de defesa — que

existiam — e das de acusação — que não havia.

Que saibamos, antigamente, em julgamentos destes,

havia sempre duas testemunhas de acusa-— 38 —

ção, pelo menos, ainda que fossem polícias.  No meu caso

nem coisa no género existiu.

Quiseram saber das testemunhas que espécie de

pessoa era eu.

As informações foram das melhores. Mas que era

introvertido, por isso estranhara a «inoportunidade» da

minha actuação — declarou uma delas; que defendia a

integração de Moçambique em Portugal — acrescentou

outra.

À primeira respondeu o advogado, dizendo que

precisamente por isso reagira asperamente ao sentir-me

ferido, na minha dignidade de português. ; à segunda

respondi eu acrescentando que o que efectivamente

defendia era uma adesão de Estados independentes,

inseridos no que creio ter sido um conhecido historiador

brasileiro a baptizar de Comunidade Lusíada.

O que parece ter ferido muito a sensibilidade do juiz

foi o título dum dos artigos, aliás publicado em página

interior: «FRELIMO: LEGITIMA REPRESENTANTE

'DO POVO MOÇAMBICANO?».

Tomou ele a nuvem por Juno; a interrogação por

afirmativa e, como «frelimista», ficou pior do que uma

fera.  Pelo menos aparentemente.

Não quis saber nem das alegações da defesa nem das

minhas declarações, feitas sob juramento, e considerando

que colocara o partido em maus lençóis e tinha mostrado

uma sagacidade capaz de me fazer saber o que se continha

no acordo de Lusaca, sem o ter lido, resolveu

condenar-me a um ano deprisão correccional!

_ 39 —

Foi mais uma «punhalada», que em cheio me

vibraram, a mim e à família, de tal maneira que a

pessoa mais idosa que em casa tinha, não mais voltou

a ver quando soube que, em vez de regressar ao lar,

tinha voltado à cadeia central da Machava, agora por

mais oito meses.

— 40 —

VIII

NO HOSPITAL DE S. JOÃO DE DEUS

Física e psiquicamente esgotado, há algum tempo

já, continuei a frequentara consulta externa do

Miguel Bombarda, até que o médico resolveu

fazer-me baixar ao Hospital de S. João de Deus, si-tuado no Infulene, para o devido tratamento. Isto

sucedeu em 6 de Maio de 1975.

Foi com grande prazer que ali dei entrada, na

medida em que era bem mais agradável viver entre

loucos do que na prisão.

Ê certo que também ficava para trás um que outro

companheiro de quem, realmente, talvez me não

devesse separar, até por uma questão de

solidariedade.  A verdade contudo é que me sentia

mal e tinha começado a ir ao médico antes de eles

chegarem.  Independentemente disso, poderia mais

facilmente contactar com a mulher e filho, coisas que

eles não tinham, por serem solteiros.

Naquela tépida e calma tarde tropical sentia-me

— 41 —

mais alegre, quando me sentei no carro que me havia de

conduzir ao Hospital do Infuiene.

Eram cerca das 17 horas quando lá dei entrada e ainda

tive de esperar um bocado, até aparecer o servente, que me

conduziu ao pavilhão, salvo erro o número quatro.

Ali sozinho, sem guardas, sem ninguém a vi-giar-me,

pela primeira vez senti o quanto é agradável, a liberdade,

de cuja importância só nos apercebemos quando ficamos

sem ela.

Antes de chegar ao pavilhão, tive de passar por alguns

sítios mais, onde fui deixando o que levava comigo:

alimentos, roupas, etc, enquanto o servente e enfermeiro

combinavam o que haviam de fazer, nes dias mais

próximos, para bem cumprirem a linha política da

«Frelimo».

Finalmente, distribuiram-me um pijama, curto e

manchado, que foi o melhor que se pôde arranjar.

'Distribuí algum dinheiro, pelos trabalhadores, e

cigarros, pelos doentes, para ter uma vida facilitada,

enquanto estivesse naquele pavilhão.

Não deviam ser ainda dezoito horas, quando me

chamaram, para jantar.

Não foi sem relutância que anuí à solicitação, uma vez

que o fim de tarde estava agradável e o sol ainda ia alto.

Não sei se tivemos, para jantar, o habitual arroz de

qualquer coisa. ; só sei que me senti bastante mal, no fim

da refeição, em consequência dos comprimidos que me

deram, para ingerir.

No dia seguinte, mais bem disposto e pensando

melhor cheguei à conclusão de que tais comprimi-_ 42 —

dos seriam para dormir.  Essa a razão por que, logo após o

jantar, quando principiei a sentir as pernas inseguras,

fui-me deitar, só acordando altas horas da manhã seguinte,

após um sono, dos mais longos e mais tranquilos de toda a

minha vida.

Nesse mesmo dia ou no seguinte, apareceu o médico

que me mandou para o pavilhão número um, destinado a

doentes em vias de restabelecimento.

No meu encontro com o Irmão, encarregado daquela

secção, tive ensejo de lhe contar o que se passava comigo

e as razões por que me encontrava ali.

Como pessoa de boa formação que era, como outros,

não podia aprovar o que me estava a ser feito e tudo fez

para me ajudar, dentro das suas possibilidades, de tal

forma que, os dias aí passados, foram os mais felizes, da

minha desgraça.

Entretanto, embora com dificuldade, tudo ia fazendo

para me adaptar, o melhor possível, à nova situação.

O que mais me custava era ter de ir às vinte e uma

horas para a enfermaria, visto que andava a dormir mal e,

por essa razão, mais profundamente sentia todas as tolices

dos malucos.

Numa tentativa para evitar tudo aquilo, efectivamente

deprimente, mal o sol tinha nascido já eu estava a pé,

procurando antecipar-me aos que, em função do seu

desequilíbrio ou formação transformavam as casas de

banho em autênticas cloacas.

— 43 —

Depois ia até à sala de jogos, esperando que fosse

aberta a porta, que dava para o quintal.

Ali, enquanto os outros não apareciam, fazia um pouco

de exercício e aguardava o primeiro noticiário do R.C.M.,

que tinha lugar às sete horas.

Dali a pouco era o mata-bicho e em seguida o recreio,

podendo ir para o jardim ou mais longe os que dessem

garantia de que não tentariam escapulir-se, para a cidade.

Ao fim de alguns dias, o Irmão chamou-me,

dizendo-me que podia ir ao recreio. Não aceitei porque me

encontrava a rever as memórias, de tudo quanto até ali me

sucedera, manuscrito esse que mais tarde foi destruído,

por receio de que a «Frelimo» se viesse a apoderar dele.

Ao meio-dia era o almoço e todos tinham de estar de

regresso. Só se voltava a sair às quinze horas.

Depois do almoço, as pessoas reuniam-se, no quintal

ou sala de jogos. Eu preferia sentar-me, à sombra duma

árvore ou num banco, a ouvir um pouco de música ou o

noticiário, que parecia não mais acabar, desde que Samora

Machel chegara a Cabo Delgado.

Os nativos reuniam-se em grupos, consoante as suas

etnias, para conversarem ou fazerem cestos.

Era a altura de se ter cuidado com os cigarros, pois os

pedidos choviam de todos os lados.

Embora não dispusesse de muitos, sempre ia dando um

ou outro, sobretudo ao velho açoriano que, utilizando a

maneira característica de se expressar, várias vezes me

contou a sua triste histó-_ 44 —

ria, ao fim e ao cabo igual a tantas outras de que me

falaram, com mais ou menos coerência, com maior ou

menor lucidez.

E eu a ouvir tudo aquilo; a viver num «mundo» tão

distante do meu e pelo qual sempre passei à pressa,

quando transitava pela estrada do Infulene, a caminho de

Vila Luísa.

Foi preciso que entrassem na minha vida os piores

efeitos da «revolução dos cravos», que teve lugar em

Portugal, para ingressar numa cadeia, num hospital de

loucos e em tantas outras coisas.

E a quem pedir contas, uma vez que, neste País, agora

ninguém viu, ninguém sabe, ninguém fez nada de mau?

*

Cerca das dezassete horas, todos tinham de estar de

volta ao hospital, vindos do passeio. Alguns chegavam

mais cedo porque, naquela zona, para além do jardim,

pouco mais existia com interesse.

Essa a razão por que quando o Irmão insistiu, que fosse

passear, apenas fui até ao restaurante, tomar um café,

tendo de imediato regressado ao referido jardim, para

meditar, ver passar os machimbombos e arejar, a cabeça e

os pulmões.  Para contactar com a vida que se

desenrolava para além da minha existência.

Entretanto, já tinha pedido ao Irmão para me deslocar

a Lourenço Marques, a fim de visitar a família e tratar de

vários assuntos que tinha em suspenso. Ele acedeu e disse

para voltar uns dias

-45-

depois, recomendando-me porém que não desse nas

vistas.

No entanto, foi de coração apertado que apanhei o

autocarro, uma vez que o meu bilhete de identidade tinha

ficado na P. S. P. e eu sabia que, no caminho, faziam-se

inspecções.

Por sorte, consegui ir até casa e foi com espanto e

alegria que a família me viu chegar.

Da «Vitória» a casa pouco tempo demorei e, pelo

caminho, experimentei uma sensação esquisita: uma

mescla de liberdade e de prisão.

Apesar de tudo, a minha rua estava no mesmo lugar e a

casa no mesmo sítio.  Os vizinhos, que restavam,

procuravam fazer a mesma vida de sempre como se nada

tivesse acontecido ou seria forçoso vir a suceder, o que

quer dizer que a natureza, mesmo humana, também tem as

suas leis, que se não cumprem, nem mais depressa nem

mais devagar, consoante a vontade de alguns homens.

O «Fly» que, como sempre, se conservava à porta da

cozinha, teve dificuldade em reconhecer--me.  Tanto já o

tempo que marcava o nosso desencontro. ..

Como a memória das pessoas, a dos bichos também é

fraca, não obstante ter sido o meu grande companheiro de

todas as manhãs de domingo, na mata da marginal.

#

Na altura, já Samora Machel andava por Moçambique,

«ditando» história, à sua primaríssima

— 46 —

maneira, e tentando destruir tudo quanto tivesse qualquer

relação com Portugal, cuja cultura, segundo ele, tinha a

sua máxima expressão no que se dançava em «boites», à

meia-luz, esquecendo-se, porém, das bebedeiras e lascívia

de batuques.

Na capital de Cabo Delgado, perguntara Samora se

alguém conhecia a Amélia.  E a cidade herdara o nome da

rainha D. Amélia.

Se bem entendi as perorações dos elementos da

«Frelimo», disso encarregados, a história de Moçambique,

para eles, principiou pelo Monomotapa onde, a

determinada altura, apareceu um D. António Silveira que,

de acordo com a mesma óptica, foi dos «primeiros agentes

do imperialismo».

E o tom e a cor que quer Samora quer os seus agentes

davam aos factos e acontecimentos eram estes, de modo

que, quando fui a Lourenço Marques, com autorização do

Irmão, estavam já a apear a estátua de Mouzinho, e a

destruir, à marretada, o respectivo pedestal.  Outro tanto

já tinha sucedido à de Vasco da Gama, na Ilha de

Moçambique, e a muitas mais sem que, pelos vistos, Lis-boa se importasse com isso.

De qualquer forma, os pretos, da «Frelimo»,

aproveitaram todas as nossas fraquezas e desvarios, para

fazerem de Portugal e dos portugueses gato-sapato,

utilizando, permanentemente, o insulto mais soez, a

injustiça mais flagrante..

— 47 —

IX

REGRESSO A PORTUGAL

Eram cerca das oito horas, do dia 19 de Junho de 1975,

quando o Irmão, do Hospital do Infulene, onde na altura me

encontrava, em tratamento, me chamou para dizer que

tinha notícias, certamente boas para mim.  Que me ia dar

alta, pois ia ser posto em liberdade.  Que agarrasse nas

minhas coisas e fosse para a portaria esperar porque ha-viam de ir buscar-me.

Como estava a tratar da minha liberdade condicional,

por já ter cumprido metade da pena, de um ano de cadeia, a

que fora condenado, sob alegação de ter tentado alterar,

com artigos que escrevera, num jornal de Lourenço

Marques; o acordo de Lusaca (que trata da independência

de Moçambique), nem sequer perguntei ao Irmão quem

telefonara; pensei logo que tudo se relacionava com isso.

Oito e meia.  nove.  dez horas.  e sem ninguém

aparecer! Aí, comecei a magicar.

— 49 —

Por portas travessas disseram-me: Ah! é você?.  Pois

telefonaram da cadeia central.  É para ir para Lisboa!»

Fiquei deveras perturbado.  Assim mesmo, tão

depressa, para Lisboa, possivelmente sob prisão!

E a família?.

É certo que fora o regresso, o que eu desejara. ; porém

com tempo e método.  Mas já lá iam alguns três meses,

desde que tentara tal coisa!

Fui almoçar. Continuei à espera, da parte da tarde e

durante um bom bocado da noite.

Resolvi por fim deitar-me e, quando eram umas vinte e

duas horas, o guarda-nocturno veio dizer-me que estavam

à minha espera!

Fiquei evidentemente irritado, aborrecido e

intranquilo, na medida em que, no Moçambique de agora,

muita coisa pode acontecer, às pessoas mais decentes!

Mas não, dessa vez enganara-me: o guarda e a pessoa que

o acompanhava eram boa gente.  Certamente tinham

aproveitado o serviço, para darem um passeio.

Viera um telegrama do Ministério da Coordenação

Interterritorial, solicitando a minha presença, em Lisboa,

antes de 25 de Junho de 1975 (dia da independência de

Moçambique. ) — disseram--me depois.

Tudo estava a ser tratado com grande urgência e que

por isso devia embarcar na segunda ou terça--feira.  

acrescentaram eles.

Como estávamos numa quinta-feira, o que na altura

me faltava era tempo.  ao menos para me

— 50 —

despedir da família, já que ninguém se lembrara de que

seria humano e justo que ela fosse na mesma altura.

Todavia, passaram as segunda e terça-feira. ; mais

uma semana se seguiu e outra se aproxima, no momento

em que tomo nota destes pontos das minhas recordações e

continuo à espera de embarque !

Dizem-me que ninguém sabe dos papéis! Cheira-me a

gato com rabo de fora.

De momento, estou a tentar obter passagem, por

outras vias.

Também já estou farto de ser perseguido e ofendido,

apenas pelo facto de sempre ter repudiado totalitarismos e

de ter defendido a dignidade e nobreza da minha Pátria;

isto e os direitos mais elementares da pessoa humana.

Não obstante, fui condenado a um longo e doloroso

cativeiro, com conivência de«portugueses», que também

não defenderam, em 7 de Setembro e 21 de Outubro de

1974, as vidas e haveres de nossos irmãos, quando jovens

e velhos foram mortos, raparigas violadas, senhoras

violentadas, crianças assadas vivas!

É a tal desgraça que se previa ir atingir muitos

milhares de famílias portuguesas, se o Ultramar fosse

abandonado!

E o nosso Governo nem sequer retirou, antes de 25 de

Junho de 1975, todos os cidadãos, quantos desejassem

regressar à Pátria! Daí a razão dos dramas que se

verificaram depois, incluindo o de Manuel Mota dos

Anjos, condenado a oito anos de

— 51 —

prisão pelo facto de ter defendido, no Bairro do Jardim,

mulheres e crianças condenadas a uma morte horrorosa!

Dos pretos que fizeram isso e que saiba nenhum foi

condenado.  Mas os brancos que esboçaram ou não

defesa foram mortos, perseguidos e presos!

E há quem diga, em Portugal, que foi muito bem feito!

— 52 —

X

LEI DA SELVA.

Não há dúvida de que o telegrama do Ministério da

Coordenação Interterritorial que, a princípio, me causou

sérias preocupações, acabou por revelar-se um documento

providencial! Efectivamente, se tivesse chegado, sequer

com um dia de atraso, duvido muito que alguém, neste

momento, soubesse do meu paradeiro! Da mesma forma

como se desconhece, na altura em que escrevo, o de

centenas de detidos e condenados, brancos portugueses,

mestiços e africanos!

Na realidade, no dia seguinte ao meu regresso a esta

cadeia da Machava, numa sexta-feira, portanto, por ser

altura do «comité» e eu não ter nada que fazer naquela

tarde, resolvi deslocar-me ao local da reunião.

Tinham-me dito contudo que, quem costumava falar,

era pessoal da cadeia. Estranhei, por conseguinte, a

presença, no estrado, de elementos da

-53-

«FRELIMO», bem como o aparato bélico, nas re-dondezas.

O mais novo dos elementos, que se encontrava

fardado, depois de algumas canções «revolucionárias»,

dirigindo-se aos presentes, principiou por dizer:

«Camaradas! nós vamos fazer uma chamada e, quem for

citado, deve encaminhar-se para o local indicado; os

outros devem manter-se nos mesmos sítios e não fiquem

tristes porque hoje mesmo ou amanhã voltaremos.  A

«Frelimo» a todos quer ajudar!»

Entretanto, continuou ele: «Há alguém que esteja

doente»?.

— Estou eu — respondeu um homem.

— O que é que você tem?

— Estou tuberculoso!

— Não faz mal; há-de melhorar.  — acrescentou o

«frelimo».  

Vieram posteriormente dizer-me que o meu nome

constava da primeira lista e só não fui com os outros

porque alguém fizera saber que ia para Portugal.

Pois eu que sou estrangeiro, em Moçambique; que

cometi um «crime», em território então português,

seguiria, para lugar desconhecido, sob pressão de

baionetas estrangeiras!

Como se não bastasse um «político» estar numa cadeia de presos de delito comum, pretos na sua esmagadora maioria.  Necessariamente com usos e costumes diferentes.

Toda aquela gente partiu, enquadrada por militares da «Frelimo», armados até aos dentes.  Mesmo o Ferreira, português também, que fora acusado de ser «reaccionário» e que, há trinta e cinco dias já,

aguardava a continuação do julgamento!

Alguns foram depois aparecendo, vindos de Mabalane, para irem ao médico.

Por eles soube os horrores que lá passaram ou viram sofrer.

Sobretudo o ódio ao brancoaté ali é evidente.  Entretanto, muita água correu sob as pontes.  

Quarenta e cinco vezes o sol despontou e desapare-ceu, para além do muro da cadeia.  Mês e meio

depois de ter vindo o telegrama do Ministério da

Coordenação Interterritorial, continuo à espera de

seguir para o meu País! Não sei se a causa residirá na

maldade se na incapacidade das pessoas e orga-nizações se em ambas as coisas.

Se não encontrar justiça, nem em Moçambique

nem em Portugal, nem no estrangeiro, resta-me deixar

cair os braços e, exausto, esperar que, ao menos a

Providência, me estenda a mão.

A não ser que recalque sentimentos e vá «men-digar», junto de Samora Machel.

Nesta sexta-feira, dia 1 de Agosto de 1975, não é

isso que penso efectivamente fazer.

— 55 —

XI

25 DE JUNHO DE 1975: DIA DA

INDEPENDÊNCIA DE MOÇAMBIQUE

Samora Machel e seus agentes vieram vindo, Moçambique abaixo, até chegarem a Inhambane, a «terra da boa gente».

A maior parte do percurso fizeram-no por via aérea. A razão é evidente: A «Frelimo», mesmo nessa altura, não dominava, efectivamente, qualquer parcela do território, muito menos a sul do rio Save, onde os distritos de Gaza, Inhambane e Lourenço Marques se situavam.  Daí a razão de tantas precauções. ..

Na cidade de Inhambane, precisamente, reuniram-se os «comités» central e executivo, bem como todos os ministros do Governo de transição, nomeados pela «Frelimo», os quais faziam geralmente parte de qualquer dos referidos órgãos do partido. Do que transpareceu da reunião, conclui-se que a mesma foi tempestuosa, em consequência das vigorosas críticas feitas ao Governo presidido por Joaquim Chissano, o qual granjeou a simpatia de muitos pretos e brancos, o que não sucede em relação a Samora Machel que, com a sua dialéctica furiosa, as aldeias comunais, o trabalho forçado, a proibição da poligamia, a abstinência brutalmente imposta, não concitou senão a má vontade ou o ódio dos nativos, que sempre gostaram de ir para onde desejassem e quando entendessem; de trabalhar quando e como lhes agradasse; de casarem com quantas mulheres quisessem; de festejar as suas alegrias ou afogar as suas mágoas consoante lhes desse na real gana.

Eram os tais usos e costumes que Portugal respeitava, por constituírem lei.

Porque a sublevação de minorias que, em Mo-çambique, pegaram em armas, opondo-se ao convívio

com portugueses, foi bem aproveitada pela «Frelimo», é possível que Samora Machel consiga impor a sua vontade, pela força das armas.  Uma coisa porém é certa: A estabilidade do partido conseguir-se-á, sempre, à custa da infelicidade de grandes massas populacionais!

Eis a herança, também para Moçambique, do «Abril em Portugal».

#

De qualquer forma, 25 de Junho de 1975, dia da independência de Moçambique, para todos se

aproximava, a largos passos.

— 58 —

O estádio, que fora Salazar, bem como os respectivos acessos, estavam, para o efeito, a ser preparados.

Na cadeia da Machava, onde me encontrava, as reacções eram diversas: Uns tantos pretos diziam que os brancos que ali estavam haviam de ser todos mortos. ; a maioria optava porque, com ordem ou não da «Frelimo», todos deviam obter a liberdade ainda que, para consegui-la, se tivesse de destruir o portão de saída.

Foi um erro ter-se falado tanto em semelhante assunto, na medida em que deu ensejo a que a «Frelimo» tomasse as suas providências, de maneira que, uns dias antes de 25 de Junho, grande parte de detidos e reclusos foram transferidos, da Machava para Mabalane, donde no dia da independência uma parte se evadiu, com alguns de lá, para irem saquear e fazer uma série de tropelias em Vila Pinto Teixeira, onde se viveram momentos verdadeiramente dramáticos.  Pelas razões já apontadas, na noite de 24 para 25 de Junho de 1975, eu ainda estava na cadeia da Machava, lugar onde, nem mesmo a proximidade da independência alterara a rotina.

Por sorte ou por azar, as pilhas do meu pequeno rádio estavam de tal maneira que, instantes depois das cerimónias terem principiado,nada conseguia ouvir.  Essa a razão por que caí num sono que foi interrompido por disparos de regozijo dos «frelimos», no momento em que, no estádio, descia a Bandeira Portuguesa e era hasteada a de Moçambique.

Fui-me deixando estar na cela, que se encontra-

— 59 —

va às escuras, apreciando os projécteis, que riscavam o céu.  Todavia, muitos se foram juntando, no nosso pavilhão: eram sobretudo brancos, certamente pensando, pelo menos a princípio, que iam ser mortos.  A mim, com a família lá fora, passando grandes dificuldades, sobretudo materiais; profundamente abatido como me encontrava, em consequência disso, doutras coisas mais e das incertezas com que o meu futuro se encontrava carregado, já pouca coisa na vida me interessava.  Essa, certamente, a razão por que, calmamente, vesti uns calções, enfiei uns sapatos e fui até às grades.  Ouvimos mais uns disparos e chegámos à conclusão de que não queriam dizer nada de grave.  Aos poucos, cada um foi regressando à sua cela, possivelmente enquanto se ia lendo a seguinte cons-tituição, da República Popular de Moçambique, na qual a democracia pluralista foi posta totalmente de parte: «. A República Popular de Moçambique é um Estado de democracia popular em que todas as camadas patrióticas se engajam na construção de uma nova sociedade, livre da exploração do homem pelo homem.

Na República Popular de Moçambique o poder pertence aos operários e camponeses unidos e dirigidos pela FRELIMO, e é exercido pelos órgãos do poder popular.

A República Popular de Moçambique é orientada pela linha política definida pela FRELIMO, que é a força dirigente do Estado e da Sociedade. A FRELIMO traça a orientação política básica do Estado

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e dirige e supervisa a acção dos órgãos estatais a fim de assegurar a conformidade da política do Estado com os interesses do povo.

As Forças Populares de Libertação de Moçambique, dirigidas pela FRELIMO sendo um dos elementos essenciais do poder do Estado, têm uma responsabilidade fundamental na defesa e consolidação da independência e da unidade nacional. Ao mesmo tempo elas são uma força

de produção e de mobilização política das massas

populares.

A acção e desenvolvimento das Forças Populares de

Libertação de Moçambique funda-se na direcção política

da FRELIMO e na ligação estreita com o povo.

As Forças Populares de Libertação dei Moçambique têm como seu comandante-chefe o presidente da

FRELIMO. O comandante-chefe das Forças Populares de Libertação de Moçambique nomeia e demite os responsáveis militares no escalão superior.

A terra e os recursos naturais situados no solo e no subsolo, nas águas territoriais e na plataforma continental de Moçambique são propriedade do Estado. O Estado determina as condições do seu aproveitamento e do seu uso.

O Estado encoraja os camponeses e trabalhadores individuais a organizarem-se em formas colectivas de produção, cujo desenvolvimento apoia e orienta. A República Popular de Moçambique é um Estado laico, nela existindo uma separação absoluta entre o Estado e as instituições religiosas.

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Na República Popular de Moçambique as actividades das instituições religiosas devem conformar-se com as leis do Estado.

A participação activa na defesa do país e da revolução

é o direito e o dever mais alto de cada cidadão e cidadã da República Popular de Moçambique.

O Estado pune severamente todos os actos de traição, subversão, sabotagem e, em geral, os actos praticados contra os objectivos da FRELIMO e contra a ordem popular revolucionária.

A Assembleia Popular é o órgão supremo do Estado na República Popular de Moçambique.

A Assembleia Popular é o mais alto órgão legislativo da República Popular de Moçambique.

A iniciativa das leis pertence ao comité central da Frelimo, ao comité executivo da Frelimo, ao Presidente da República, à comissão permanente da Assembleia Popular, aos órgãos da Assembleia Popular e ao Conselho de Ministros.

A comissão permanente da Assembleia Popular é presidida pelo Presidente da República.

O Presidente da República Popular de Moçambique é o presidente da FRELIMO.

O Presidente da República Popular de Moçambique é o Chefe do Estado. Simboliza a unidade nacional e representa a Nação no plano interno e internacional.

Ao Presidente da República Popular de Moçambique

compete fazer respeitar a Constituição e assegurar o

funcionamento correcto dos órgãos estatais; criar

ministérios e definir as suas competências;

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dirigir as actividades do Conselho de Ministros e presidir

às suas sessões; nomear e demitir os membros do Conselho

de Ministros; nomear e demitir o presidente e

vice-presidente do Tribunal Popular Supremo e o

procurador-geral da República; nomear e demitir os

governadores provinciais; nomear e demitir o

comandante-geral e o viee-comandante do Corpo de

Polícia de Segurança Pública de Moçambique; promulgar e fazer publicar as leis e os decretos-leis; declarar o estado de guerra e celebrar tratados de paz sob decisão do comité central da Frelimo; proclamar a mobilização geral ou parcial; indultar e comutar penas; declarar o estado de sítio ou de emergência.

O Presidente da República pode anular as deliberações das assembleias provinciais, bem como as decisões dos respectivos governadores. Na República Popular de Moçambique a função judicial será exercida pelos tribunais, através do Tribunal Popular Supremo e dos demais tribunais determinados na lei sobre organização judiciária. A sua composição e competência serão fixadas por lei. 0 Tribunal Popular Supremo promoverá a aplicação uniforme da lei por todos os tribunais ao serviço dos interesses do povo de Moçambique e assegurará o cumprimento da Constituição, das leis e de todas as normas legais da República Popular de Moçambique.

0 presidente do Tribunal Popular Supremo é nomeado pelo Presidente da República. »

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Após 500 anos de convívio, algo melhor se podia e devia ter oferecido àquele povo.  Por mim, teria vergonha de aparecer à frente do dr. Júlio Razão, embora ele saiba que estava contra tal processo.  É que, apesar de tudo, sou português.

De qualquer forma, nada nem ninguém evitou que tivesse permanecido na cadeia desde 14 de Dezembro de 1974 a 14 de Dezembro de 1975.

Em 24 de Janeiro de 1976 pude, finalmente, deixar Moçambique, a caminho de Portugal, o meu País de origem, graças à boa vontade e ao esforço do Encarregado de Negócios e do consulado de Portugal, em Lourenço Marques, aos quais sou devedor dos maiores

agradecimentos.

A partir daqui, remeto o leitor ao primeiro capítulo deste livro.

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