Tuesday, May 28, 2013

A lição médica da cidadania e “novo colono” negro


  • A lição médica da cidadania e “novo colono” negro

    Lázaro Mabunda, Jornal O País, 28/05/2013

    Que o Presidente da República, Armando Guebuza, retrocedeu a democracia moçambicana, não há dúvidas. Que o seu império empresarial floresceu nos últimos 10 anos no poder, também não há dúvidas. Que “o país não está saudável”, como disse Graça Machel, semana passada, não pode haver também alguma dúvida. Neste momento, a dúvida que há é: até quando a elite política irá concluir a eliminação e apagamento total dos vestígios da nossa saudosa democracia.
    A detenção de Jorge Arroz, presidente da Associação Médica de Moçambique, é um dos sinais vermelhos que os nossos dirigentes emitem para os contestatários das suas más políticas que acabam descambando numa, talvez, péssima governação. Já o tinham feito com o cansado antigo combatente, Hermínio dos Santos; já o fizeram com Erik Charas, proprietário do jornal “A verdade”; também já o fizeram com muitas outras pessoas. Não tenho dúvidas que o irão fazer com mais pessoas que exigirem os seus direitos.
    Este comportamento violento do Governo tem um propósito: intimidar os moçambicanos e obrigá-los a conformar-se com as violações sistemáticas dos seus direitos, como se isso fosse normal. Está a emitir, sem dúvidas, o sinal de que não nos devemos indignar com péssima governação do nosso “visionário” e “clarividente” Chefe do Estado, como o consideram os seus camaradas do Parlamento.
    Porquê péssima governação? Para não ser chamado a justificar em diversos fóruns, quer trazer aqui alguns elementos que comprovam a minha tese de que este governo entrou nos anais dos piores governos deste país. Primeiro, desde que o Chefe do Estado está no poder sempre reclamou que estamos a fragilizar a pobreza. No entanto, de 2003 a 2009, a pobreza havia registado uma subida de 0.6%, depois de ter sido reduzida em 15.3%, de 1996-2003. Na semana passada, Graça Machel apresentou novos números de 2012 que mostram que a pobreza voltou a fragilizar-nos de 2009-2012, subindo dos anteriores 54.7% para 60%.
    Um estudo desenvolvido em 2009, sobre a Relatividade da Pobreza Absoluta e Segurança Social em Moçambique, revelou que 90% dos moçambicanos (cerca de 19 milhões da actual população de Moçambique) vivem com menos de 50 meticais por dia e 75% (15 milhões) vivem com menos de 31 meticais por dia, segundo as linhas de pobreza internacionais. As linhas 2 e 1,25 dólares americanos por dia são actualmente os limiares de referência do padrão de consumo global, o que significa que pobres são aqueles cujos rendimentos ficam aquém do estipulado na linha da pobreza. (http://www.meusalario.org/mocambique/main/campanha-meu-salario/o-custo-de-vida).
    Segundo, nos últimos anos, o relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento tem revelado que Moçambique é o 3º pior país no mundo em termos do Índice do Desenvolvimento Humano, superado pelo instável Guiné-Bissau.
    Terceiro, segundo dados apresentados pela insuspeita Graça Machel ao secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, na semana passada, as desigualdades sociais e assimetrias regionais têm estado a aumentar. E “a moral do cidadão baixou, a maioria das pessoas continua pobre, não se produz comida suficiente, os jovens (maioria da população) estão desorientados, as pessoas portadoras de deficiência e pessoas idosas continuam a ser grupos altamente excluídos, as mulheres são frequentes vítimas de violência doméstica e persistem elementos que facilmente podem conduzir a uma instabilidade social.”
    As políticas públicas nacionais, embora sejam boas, há défice de implementação “devido à fragilidade institucional, associada à falta de recursos humanos à altura dos desafios”, conforme realça Graça Machel.
    Quarto, um simples exercício de pesquisa de preços de produtos de primeira necessidade, no período entre 2005-2013, permite-me concluir que, em quase nove anos, os produtos de primeira necessidade registaram subida em pouco mais de 100%. Por exemplo, o açúcar amarelo evoluiu de 16 para actuais 43 Mt (preços do boletim de Comércio da Direcção Nacional do Comércio), dependendo das regiões. O frango evoluiu dos cerca de 50 Mt para 130 Mt hoje. Um saco de 25 kg de arroz de primeira, que custava de 280-290, custa hoje 720 Mt. No entanto, embora os salário também tenha evoluído em cerca de 100%, de 1 200 para 2500 Mt, não compensam, na medida em que o aumento dos preços foi generalizado (todos os produtos subiram). Ou seja, enquanto o salário aumenta 200% por ano, dependendo do sector de actividade, com agricultura, por exemplo, os preços aumentam pouco mais de 500 Mt por ano.
    A discrepância entre os aumentos do custo de vida e de salário são a razão do diferendo que opõe, hoje, os médicos e o Governo. Hoje, o servente do Estado apenas consegue adquirir um saco de arroz, uma botija de gás e cinco litros de óleo. Não consegue comprar mais nada. Os médicos têm o direito de reivindicar os seus aumentos salariais.
    O argumento de que os problemas que os médicos enfrentam são também os mesmos dos professores parece-me ingénuo e descontextualizado demais, na medida em que quem se manifesta é o médico e o enfermeiro, não o professor, funcionários dos ministérios, direcções nacionais, provinciais. Se o professor não se manifesta, tem a sua razão de não o fazer, tal como os outros que se mantêm mudos.
    Ademais, o argumento de que não há condições para o aumento de salário dos médicos e profissionais de saúde não só se revela despido de racionalidade, como também revela um elevado nível de imoralidade do nosso governo. É que, neste país, há sempre condições financeiras sempre que os aumentos são para os membros do executivo e para os deputados. Aí os argumentos macroeconómicos são mobilizados para justificar a existência de condições para isso.
    Por exemplo, os deputados decidiram aumentar o seu salário-base para os actuais 84 mil, sem incluir os subsídios do círculo eleitoral, de casa, senha de combustível, carro comparticipado, ajudas de custo. Os argumentos macroeconómicos para não gravar os salários dessa classe não foram levantados.
    Uma coisa impressionou-me na detenção de Arroz: o argumento da polícia de que foi detido em flagrante. Igualmente, a polícia diz que Arroz foi intimado para o efeito. Ora, não percebo como uma pessoa que foi detida em flagrante delito pode ser simultaneamente intimada, em flagrante delito. Existe intimação em flagrante delito? Deve ser uma nova teoria da ciência policial.
    Isso só me faz lembrar o que Samora Machel dizia: “Para o nosso polícia, o estudo, a educação, a aprendizagem, devem ser permanentes. Ele deve aprender constantemente a evolução da ciência da polícia de todo o mundo”.
    O comportamento maléfico da nossa polícia consubstancia ainda o que Samora já vinha dizendo: “o que assistimos, hoje, é o contrário do que acabei de dizer. Em todas as nossas cidades, a polícia comporta-se pior que a polícia colonial!”.
    Mas por que esta polícia se comporta pior que a polícia colonial?
    É justamente por estar a ser liderada por uma elite política em estado de decomposição, um “novo colono”, talvez, pior que o próprio colono português.
    Samora não tinha dúvidas de que “se tivermos bons comandantes da polícia, bons agentes do SNASP, não haverá ilegalidade, prisões arbitrárias e «armazenamento» de pessoas sem julgamento. Haverá, sim, respeito e tranquilidade”.
    Os médicos estão a dar lição do que devemos ser como cidadãos. Uma lição de cidadania para um governo imoral, perigoso e até criminoso. É crime violar o direito constitucionalmente estabelecido, como o direito à reunião e à greve.
    A forma como os médicos estão a levar a cabo greve deixa-me esperançoso. Pelo menos, Moçambique ainda tem cidadãos, uma classe que pode despertar as outras classes sobre a necessidade de uma cidadania activa.
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