A propósito dos últimos desenvolvimentos em Moçambique, e a pedido indirecto de pessoas que pensam que analisar assuntos é identificar os bons e os maus, o preto e o branco, eis um texto sobre a questão da credibilidade e como a sua perca pelas instituições do Estado cria campo para o surgimento de demagogos que constituem maior perigo ainda à saúde da democracia. O texto, como sempre, é longo, mas tem que ser assim mesmo. O Facebook é uma bênção, mas ao mesmo tempo uma maldição. Permite que quase todos se articulem, mas também dá espaço a quem não tem o hábito de leitura, alguém para quem a leitura voluntária de duas páginas é uma tortura, para sem grande conhecimento de causa pôr em causa reflexões que não são a revelação da verdade, mas mesmo assim contribuições sinceras para o debate útil de ideias.
A fogueira das vaidades
Em 1497, em Florença, Itália, aconteceu o que ficou com o nome de fogueira de vaidades. Inspirados por um monge dominicano, Girodamo Savonarola, os habitantes puseram-se a queimar todos os objectos de vaidade que, segundo uma interpretação rígida da religião, poderiam conduzir as pessoas ao pecado. Espelhos, artigos de higiene, livros, etc. A fogueira das vaidades foi o percursor da queima de livros mais tarde durante a Inquisição, mas também pelos Nazi. Foi também percursora da censura em vários países. Nos anos oitenta, o escritor americano, Tom Wolf, publicou um romance com o título “A fogueira das vaidades”, uma excelente parábola de Eclesiastas 1:2 (vaidade das vaidades, tudo é vaidade) que foi lido por muitos como uma descrição fiel da forma como a sociedade americana dos anos oitenta tinha ficado refém de agendas políticas que reflectiam, no fundo, a ânsia pela projecção pessoal do que pelo bem comum. Já mesmo antes da detenção ridícula do líder da Associação Moçambicana de Médicos tinha começado a pensar na forma que a política está a assumir em Moçambique e quão parecida ela está cada vez mais com uma fogueira de vaidades.
Na verdade, muito antes ainda, aquando do julgamento do caso Carlos Cardoso, escrevi um texto sobre a credibilidade, no qual chamava a atenção da classe política para o perigo que era para a democracia descredibilizar as instituições do Estado. O meu receio era que se instalasse um clima de cinismo que tornaria a esfera pública vulnerável a demagogos e ao pensamento irracional. Cada vez mais temos essa situação. Vou transcrever parte desse artigo porque o raciocínio continua actual:
“... O que alimenta a credulidade das pessoas não é a plausibilidade das teorias de conspiração. É, ao que tudo indica, o sentimento de que tudo é possível. E tudo é possível porque nos últimos anos as instituições não têm feito outra coisa senão dizer meias-verdades (referia-me aqui às mentiras dos governos Bush e Blair na Grã-Bretanha e nos EUA em relação à situação que levou à guerra do Iraque) (...) Sem esta experiência de meias-verdades, senão mesmo mentiras, as pessoas teriam dado aos seus governos o benefício da dúvida, como dizem os ingleses. Se aparecesse alguém a desfiar teorias de conspiração as pessoas iriam defender os seus governos ou pelo menos os valores que eles representam dizendo “não é possível, esse governo não era capaz disso”...
A questão que interessa analisar mais de perto, portanto, é de saber exactamente o que é a credibilidade e porque a sua perca conduz à irracionalidade. Esta questão é extremamente importante, sobretudo no nosso país, onde as instituições do estado têm que se haver com o problema do déficit de credibilidade. Os inúmeros escândalos em que algumas dessas instituições, incluíndo personalidades importantes, estiveram envolvidas afectaram negativamente os níveis de credibilidade. As acusações de corrupção, por exemplo, fundadas ou não, ganham também plausibilidade porque as instituições e as pessoas deixaram de ser credíveis (...) A credibilidade é feita de várias coisas. Por exemplo, é mais prudente confiar na previsão de tempo dos serviços meteorológicos do que na previsão da avó camponesa em Gaza. Reconhecemos a estes serviços competência para dizer coisas certas a respeito deste assunto. Não é que a avó não possa ter razão. Na verdade, é bem possível que a avó acerte sempre, razão mais do que suficiente para também confiar nela. Nesse caso, porém, apoiamo-nos num outro aspecto da credibilidade, nomeadamente a experiência. Se certas pessoas ou instituições nos habituam a certas coisas e nós podemos contar com elas com certa segurança não há nenhuma razão para não depositar confiança nelas...
Confiamos porque consideramos que certas pessoas e instituições são íntegras. A sua conduta não nos dá nenhum motivo para recearmos que elas façam algo de má fé. Se o Ministério da Saúde nos aconselha a vacinar os nossos filhos acatamos porque julgamos ter a certeza de que essa instituição não ia, propositadamente, nos fazer mal. Pode acontecer, mas se for esse o caso tiramos as nossas ilações e em ocasiões seguintes desconfiamos. Há os que exageram e isso em dois sentidos. Uns precisam de várias fontes antes de acreditar. Por exemplo, para além do conselho do ministério eles querem ouvir a opinião dum médico amigo ou do curandeiro, consultam livros e páginas da internet. Outros, todavia ... preferem a palavra do chefe do seu partido, de alguém da sua região ou duma tia curandeira para todos os casos e situações.
A credibilidade, portanto, é feita da competência, experiência, integridade e autoridade que nós reconhecemos em certas pessoas e instituições. Ela funda-se na confiança e é, por isso, imprescindível à vida em sociedade. A confiança numa sociedade é tanto mais forte quanto maior for a credibilidade das instituições. Sem confiança, nenhuma sociedade funciona. Com baixos níveis de confiança, as sociedades funcionam mal. A confiança é uma espécie de moeda de troca que usamos para confirmar a credibilidade das pessoas e instituições. Numa sociedade em que desconfiamos de tudo e de todos, isto é em que não há credibilidade, estão reunidas as condições para se fomentar a irracionalidade. Tudo se torna possível...
Esta é mais ou menos a situação em que se encontra o nosso país há já vários anos. Pelo menos nisso batemos o Ocidente. Qualquer opinião, por mais bizarra que seja, muitas vezes até justamente por causa disso mesmo, tem fortes probabilidades de ser aceite. Ninguém confia em nada, nem ninguém, só na plausibilidade dos seus próprios receios e pesadelos. E para piorar as coisas, à semelhança do que se faz em países como os Estados Unidos ... a mentira descarada está a tornar-se num desporto nacional. É só ver os depoimentos nos julgamentos do caso Carlos Cardoso e fuga de Anibalzinho. Cada qual mente como pode. Salve-se quem mentir melhor.
Nesta questão de credibilidade o nosso governo tem estado na defensiva por razões institucionais e particulares óbvias, mas o julgamento do caso Carlos Cardoso constitui um passo importante para o restabelecimento da credibilidade dos nossos órgãos oficiais. Parecendo que não há quem se interesse pela transparência e integridade das instituições. E isso é bom, pois vai levar muito tempo para restabelecer a credibilidade. Melhor começo não podia ter havido...”
Isto é o que escrevi há alguns anos. Os acontecimentos mais recentes no País mostram que o problema da credibilidade tem vindo a piorar. Hoje em dia, o clima de desconfiança é tão grande que nada do que membros do governo, representantes de orgãos do Estado, etc. dizem é tido como credível. Alguns vão dizer, “bem feito, quem lhes mandou mentir?”, mas antes de o fazerem deviam pensar nas consequências que isso tem para a consolidação da democracia e, acima de tudo, do Estado de direito. Há gente no nosso País que, noutras ocasiões, faz muito alarido do seu compromisso com a democracia e com a religião cristã, mas em momentos decisivos não tem nenhum problema em aplaudir quem ataca (e, infelizmente como vimos recentemente, mortalmente) agentes da lei e ordem. Temos um partido de oposição que colocou o País inteiro refém da inépcia política dos seus dirigentes, mas são poucas as vozes que mesmo concordando com as reivindicações desse partido, que é natural e legítimo, rejeitam aberta e decididamente as suas acções contra orgãos de soberania. Eu pelo menos não sei onde é que um crítico do governo pode ir buscar autoridade moral para condenar o que a polícia, por exemplo, faz mal quando o seu próprio compromisso com as instituições do Estado de direito é fraca até ao ponto de disso fazer alarido público.
Tom Wolfe tem quatro personagens principais no seu romance. Há um corretor da bolsa de valores, podre de rico, que atropela uma criança negra em Nova Iorque; há um jornalista falhado que está desesperadamente à procura duma grande estória; há um reverendo negro empenhado em colocar o racismo na agenda política e, finalmente, um procurador judeu que quer impressionar o seu chefe e um dos membros de sexo feminino do jurado. Toda a teia se desenvolve em torno das vaidades de cada um destes personagens, relegando para segundo plano o infeliz incidente que culminou com a morte da criança num processo que a transforma em mártir de causas diversas. Em Moçambique, por causa do déficit de credibilidade das nossas instituições, a esfera pública está cada vez mais refém dum número incontável de vaidades que com democracia, integridade e Estado de direito têm pouco ou quase nada a ver. Tornou-se imperioso, e uma espécie de profissão de fé, ver em tudo quanto corre mal a mão impiedosa dum Estado refém duma classe política rapinosa que se está nas tintas para o povo. A infeliz detenção do jovem médico – que pode muito bem ter sido o resultado duma acção tipicamente moçambicana em que por estupidez ou ainda porque alguém pensou estar a agir no interesse da Frelimo (o poder da Frelimo...) se espezinhou a legalidade – teve um fim airoso com a intervenção da Procuradoria Geral da República. A fogueira das vaidades que Moçambique cada vez mais é, vê, naturalmente, o mérito da indignação profissional (celebrada no Facebook) na soltura do jovem médico, o que até certo ponto é verdade porque a reacção popular junto da Esquadra foi realmente impressionante, mas descura o facto de que a reacção da PGR possa comprometer a tese duma instrumentalização política da polícia. Se calhar o compromisso com a legalidade não é apenas só na cabeça de quem escreve no Facebook. Se calhar as nossas instituições se sentem também comprometidas.
Está claro que cada vez mais o principal desafio enfrentado pelo Governo de Moçambique é o restabelicimento da credibilidade das instituições sob pena de todos sermos consumidos pelas chamas da fogueira das vaidades ao jeito do romance de Rom Wolfe. Mas mesmo o jeito eclesiástico se tornou cada vez mais relevante, pois pessoas com formação política duvidosa e entendimento problemático do Estado de direito parecem ter metido na cabeça que o problema sejam as instituições e não a forma como elas são conduzidas; há indícios preocupantes que revelam como a crítica insensata e impensada cada vez mais se compromete com o ponto de vista segundo o qual o Estado em si seria um perigo contra a virtude. Este é um desenvolvimento perigoso que devia preocupar todo o moçambicano sensato.
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