domingo, 5 de maio de 2013

A polícia e o que aconteceu

Elisio Macamo
Eis, então, o primeiro texto:

A polícia e o que aconteceu

Confesso que o que inicialmente chamou a minha atenção para a forma como se fala sobre a polícia moçambicana foi o tipo de palavras usadas para descrever os seus actos. No passado, por exemplo, sempre me chocou o tipo de linguagem usada na imprensa moçambicana. Se, por exemplo, a polícia alvejasse mortalmente suspeitos de algum crime numa... acção policial muitos jornais – incluíndo noticiários televisivos ou radiofónicos – usavam a expressão “a polícia abateu...”, uma expressão horrível num estado civilizado. Horrível porque, por um lado, faltava o respeito às vítimas uma vez que não reconhecia a sua dignidade como seres humanos e, por outro lado, porque violava um preceito importante do estado de direito que consiste na presunção de inocência. Mas esta é justamente a ideia que quero transmitir.
Há maneiras de falar que pelo vocabulário empregue constituem as realidades (e os fenómenos) que elas, supostamente, pretendem descrever. Quando leio que “agentes da polícia abateram três criminosos” a ideia que recupero nessas palavras é a de que houve uma acção policial legítima que consistiu na eliminação física – também legítima – de três indivíduos que, pela sua natureza de criminosos merecem esse destino. Horrível. Em países mais civilizados, isto é onde no discurso público se presta maior atenção à fala, uma frase como essa lançava calafrios à espinha de qualquer leitor normal. O mais provável é que a reportagem falasse de “três mortos numa acção policial”, o que deixaria vaga a natureza do acontecimento em questão. Ou por outra, o relato em si faria um grande esforço de não constituir o fenómeno de maneira específica.
Estes reparos são importantes porque num contexto como o moçambicano marcado profundamente por incertezas de todo o tipo há uma tendência cada vez mais forte de defender certezas. Noticiamos e opinamos certezas, nunca a dúvida. Esta tendência revela, curiosamente, uma inversão de papeis. A imprensa pública era muito adepta do uso de certezas no passado – como quando, por exemplo, se falava de malfeitores abatidos. Agora, porém, é a imprensa privada, mas que o faz com o efeito de representar a polícia de forma muito negativa. Assim, o “abater” da imprensa pública no passado virou o “assassinato” da imprensa privada nos dias que correm, enquanto que a imprensa pública tem a tendência cada vez mais vincada de privilegiar uma linguagem mais neutra do estilo “tantos mortos em acção policial” que deixa pouco espaço para a interpelação crítica da acção policial (o exemplo mais concreto disto virá daqui a mais três textos; paciência). Vou dar dois exemplos.
Num artigo com o título “Bairro T3: Detido polícia que matou ‘chapeiro”, publicado no jornal Notícias no dia 23 de Março deste ano, o repórter escreve sobre o “agente da polícia que disparou mortalmente contra o motorista...”. O motorista “encontrou a morte...”, um dos agentes “alvejou-o a tiro na cabeça...”. O artigo termina com a citação do depoimento do porta-voz da polícia que diz que “a comissão de inquérito apurou que houve má actuação dos agentes que recorreram à violência...”. Há uma atitude muito defensiva neste relato que apresenta os “factos” da forma mais neutra possível. Lê-se este artigo e fica-se com a impressão dum incidente infeliz que está a receber a devida atenção por parte de quem de direito. Na verdade, a forma como a reportagem está construída e, acima de tudo, como ela termina, transmite a ideia de que se tratou de algo excepcional – e que deve ser tratado dessa maneira – havendo para o efeito mecanismos próprios que já foram engrenados. Recordem-se que o jornal Notícias (apesar de também privado) é, por causa da participação do Banco de Moçambique nos seus capitais, um jornal na verdade público.
Sobre o mesmo caso existe um artigo dum jornal privado, o Savana, de 22 de Março do mesmo ano, com o título “Agentes da PRM assassinam ‘chapeiro”. Na continuação, o artigo refere que “agentes da PRM alvejaram mortalmente na cabeça um jovem motorista de Chapa cem...”; refere também que segundo residentes esta “foi a terceira vez que agentes da polícia afectos àquela esquadra mata(ra)m cidadãos indefesos com recurso a armas de fogo”; à semelhança do jornal Notícias o Savana também refere que o motorista “encontrou a morte”, mas continua escrevendo, recorrendo ao que os especialistas da análise conversacional chamam de modalização, que “os agentes da PRM (...) sem piedade de imediato abriram fogo (...). Depois do acto macabro perpetrado pela polícia...”. O artigo refere ainda que “populares do bairro indignados com a situação foram se amotinar junto à esquadra, à busca dos autores do crime...”. Aqui é evidente um outro tipo de construção, mais cheio de certezas e que coloca a polícia claramente no banco dos réus.
O que eu quero destacar neste texto é a forma diferente como o mesmo acontecimento – a morte dum motorista de chapa em resultado dos tiros disparados sobre ele por agentes policiais (vejam a dificuldade que tenho em encontrar uma forma neutra de escrever isto!) – é relatado pela imprensa. Não quero dizer que uma reportagem seja melhor do que a outra. O que quero dizer é que cada um dos textos constroi os factos à sua maneira e eu como leitor estou à mercê das opções feitas pelo jornalista. O que acho curioso, porém, é que na nossa esfera pública seja possível entrar em grandes discussões sobre a polícia na base de factos construídos (bem ou mal) por jornalistas. É óbvio que aqui não é exactamente a fé na idoneidade da imprensa que motiva a nossa credulidade. Parece-me ser, isso sim, o nosso compromisso político que nos leva a alinhar com os factos construídos pelo Jornal Notícias ou pelo jornal Savana. Parece-me pouco para uma esfera pública responsável, mas é este o país real. Continua
  • Sérgio Chaúque quero crer que o ilustre nao queria ou nao quer criar esferas de ''civilizados''.. mais ou menos civilizados. mas de resto, no que tange ao uso da linguagem dos variados jornais, quero crer que pode ter razao o ilustre, cda um querendo abracar ,maior numero dos leitores; se for por uma questao de conducao politica os seus editoriais, ai a coisa eh outra. dificil de engolir.
  • Américo Matavele Uma visão que nunca me passou pela cabeça. A construção da opinião, a educação de uma nação, o moldar o comportamento social, partem deste tipo de "suposições" frásicas na construção da realidade. Pegando nos exemplos que o Dr nos dá, posso afirmar que, se dividirmos os jornais citados por duas sociedades diferentes, numa experiência a longo prazo, estilo National Geographic, daqui a uns anos, teremos duas sociedades diferentes: Uma mais branda e misericordiosa, e outra mais agressiva e convencida, dependendo do tipo de aleitamento noticioso que tiveram. Por outro lado, os objectivos por detrás da opção por uma ou outra linha editorial, tem suas razões, como bem disse o mano Sérgio Chaúque, que ultrapassam o mero comedimento social. A própria violência social (física e não física), é construído ao longo do tempo pelo tipo de leitura que abunda na sociedade, e pela sua capacidade de difusão e da criação de certezas, entre outros elementos que são usados "inocentemente".
  • Vagumar Armindo Compulsando o que vem relatado em seu trecho, venerado mestre, e notorio e infelizmente a tendencia de sensasionalismo jornalistico usando termos mais duros e/ou pejorativos possiveis com varios objectivos, da qual menciono um: a venda do produto(jornais e etc) bem como protagonismo exacerbado a qualquer custo. Por conseguinte, se penhora a etica jornalistica(informar como os factos sao e sem excessos). Ha necessidade de se reflectir, na medida em que, o julgamento em praca publica, embora os nostalgicos e leigos assim o insistem em perpetuar, ficou para o legado.
  • Elisio Macamo caros amigos, obrigado pelos comentários. eu acho que as opções editoriais que são tomadas em função da necessidade de vender um jornal necessitam também de explicação. isto é, o que leva um editor a supor que os seus leitores prefiram um tipo de título e linguagem e não outro? penso que a resposta a essa questão pode nos aproximar muito da forma como se constroem factos. abraços.
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  • Arsenio Jose Farranguane Bom texto, simples e objectivo. Para além da questão ideológica de cada orgão que reportou o caso, este artigo despertou em mim a questão da ética jornalística. É caso para nos questionarmos: Como está a saúde da nossa imprensa em termos de ética? É chagada a hora de as nossas pesquisas nos cursos de comunicação social, principlamente no ensino superior, direcionarem-se para esta vertente, pois é deveras importante, na medida que almejamos no futuro um jornalismo comprometido com verdade ou seja de responsabilidade.
  • Chacate Thinker Intersante esta ana'lise. Infelismente, as nossas orientacoes politicas, culturais... tendem a infuenciar a nossa leitura dos factos a nossa disposicao. Oxa-la que um dia antinjamos uma maturidade analitica que procura no maximo ser neutra na discucao, na elaboracao de ideias face aos fenomenos a nossa disposicao!
  • Elisio Macamo caro Arsenio Jose Farranguane, estou de acordo consigo quanto à importância da ética jornalística. penso que isso deve partir da própria profissão. enquanto isso não acontece, precisamos de leitores críticos, evidentemente. caro Chacate Thinker, é normal que seja assim. anormal é não fazer nada contra. abraços..

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