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No muro da
cadeia da Machava, em Moçambique, está escrito, em grandes letras que «as
dificuldades são aço que entra na formação do carácter».
I
FINALMENTE,
A CAMINHO DE PORTUGAL.
Quis talvez
o destino que, ao beber o cálice da minha amargura, até ao fim, assistisse, em
Moçambique, à escalada dum comunismo, primário e orientalista, tipo do Vietname
ou Coreia do Norte, o qual vem transformando estas terras em autênticas prisões
sem grades e suas gentes em delatoras, algumas das quais do mais abjecto que imaginar
se possa! Um autêntico inferno social. Para detidos
e condenados, da cadeia central da Machava, as dificuldades principiaram com a
chegada dum contingente da «Frelimo», que veio tomar conta da prisão, após um
recluso ter sido ferido a tiro, por um guarda, quando se encontrava, de acordo
com o que se diz, apenas a colher laranjas, para as levar aos que se
encontravam nessa coisa horrorosa que é
a «cela de transição». Anteriormente
tinham vindo (arrumadas como sacos de batatas. ) imagens e objectos sagrados
que faziam parte do recheio da igreja da penitenciária de Lourenço Marques.
Sempre
gostaria de saber o que pensa, por exemplo, o bispo de Nampula, acerca de tudo
isso. e de muitas outras coisas. , bem
como os «padres brancos», que certamente vão ficar
sem as suas instalações do Lundo.
Para
principiar, os «frelimos», armados de me-tralhadoras, reuniram o «povo» da
cadeia, na antiga cozinha e, após as ameaças da praxe, conduziram umas tantas
pessoas, de cada vez, até aos respectivos pavilhões, obrigando-as a levar as
suas coisas para o economato, onde tiveram de deixá-las, tanto fazendo que
fosse dinheiro, para comprar cigarros, como os cestos em que alguns reclusos
trabalhavam,para arranjarem dinheiro com o qual
matavam a fome à família.
Depois foram
as «saídas precárias» que acabaram e outras regalias que vieram com o 25 de
Abril ou foram concedidas pelo governo de transição, dirigido pela «Frelimo». Terminou tudo isso mas chegou a pancada, o carregar
blocos; o abrir covas, onde alguns foram enterrados, até ao pescoço; o arrastar,
com o cachaço, o pesadíssimo carro do lixo, etc, etc. Tudo em nome do povo, da democracia popular,
da linha política da «Frelimo».
E aqueles
vinte ou trinta reclusos pretos que manifestaram a sua indignação, por tanta
barbaridade, iam sendo abatidos a tiro e foram severamente castigados. Andamos
nisto, há dois meses já, sem que o partido tenha tomado quaisquer providências.
Porventura porque as suas estruturas de
base lhe não contaram o que se
passa, certamente com receio de represálias, por parte dos
«frelimos» que se encontram de serviço na cadeia
central da Machava.
Não nos
esqueçamos porém de que a prepotência e o silêncio
geram a corrupção, que é a grande moléstia de todas as
ditaduras. Até a China já se viu forçada
a efectuar uma
«revolução cultural».
Entretanto,
lá de fora, da cidade, chegam quase todos os dias
muitos detidos, pretos, brancos e morenos. Não contando os
que são directamente enviados para os «campos de
trabalho» forçados.
Quando toda
a gente estiver cá dentro, talvez termine a repressão!Relativamente a nós, portugueses brancos, creio que só nos poderemos sentir descansados quando entrarmos num avião, ainda que deixando para os abutres tudo quanto demorou uma vida inteira a juntar.
Nada mais
resta fazer aos portugueses, em Moçambique,
uma vez que foram repentinamente abandonados
por seus irmãos da Europa. Mas não
fomos só nós os traídos: também foram os pretos,
morenos e amarelos queconfiaram em Portugal.
Por
incapacidade e irresponsabilidade de novos dirigentes.
Não se põe
em causa a independência concedida: o processo é
que se revelou errado e aviltante. Finalmente, após ter cumprido,na totalidade, o ano de cadeia a que fora condenado, eis-me no ar, a caminho da minha Pátria que, com a Espanha, deram todos os novos mundos ao Mundo.
Todavia, por
força de grandes erros e dificuldades materiais
que semearam a corrupção; da apatia, derivada dum
policiamento ou paternalismo exagerados, o povo português
não podia ir ter senão aonde foi parar, a partir de 26 de Abril!
Mas talvez
vá nascer a Nova Lusitânia com que certamente
sonharão todos os homens e mulheres
ponderados,
do meu País. De qualquer
forma, estas são as memórias mais sofridas, de
todas quantas escrevi, ao longo dos meus trinta e
dois anos de actividade intelectual.
II
ALGUNS
ATROPELOS A DIREITOS HUMANOS.
Embora 500
anos não pesem por aí além, na história da Humanidade,
podem influir, grandemente, na maneira de ser de um
povo, sobretudo quando este, como o de Moçambique
(que pode não ter tido ali a sua origem mas na África
Central. ), se mostrou bastante receptivo à influência
portuguesa, devido, certamente, à nossa maneira de
ser e estar no Mundo.
Por essa
razão e outros motivos também, a deso-cupação ou descolonização, dos
territórios que durante quase cinco
séculos foram «descoberta e soberania portuguesa»
jamais deveria ser feita com a precipitação de quem larga
tudo para ir apanhar o comboio. ainda
que esse trem
tenha sido impulsionado pelos «ventos da história». Que nos não diziam efectivamente respeito. É que na descolonização de Moçambique, como certamente na de Angola e da Guiné, de Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Timor estavam em causa problemas sociais, económicos, políticos, etc, de tamanha envergadura que, ao tentar apenas resolvê-los num ano em vez de três ou cinco, foi um erro tão grande que, mesmo
agora, ainda
estamos longe de conhecer as suas autênticas
dimensões,
sem embargo de que pessoas efectivamente
avisadas
pudessem detectá-las, se realmente soubessem o
que era o
Ultramar e o que ali se passava, em função dum
contacto,
moroso e directo, e não do que ouviam dizer.
De qualquer
forma e se é segura a minha informação,
creio que
não haveria necessidade de se atirar às urtigas
territórios
como Angola, Moçambique e Guiné, na medida
em que a
guerra, na Guiné, estava sustida; em Angola,
praticamente
ganha; em Moçambique, onde as coisas
estariam
pior, por razões que não interessará, de momento,
salientar,
ainda haveria tempo para se encontrar uma
solução, sem
se ter entregue aos comunistas da «Frelimo»
milhares e
milhares de famílias portuguesas, o que na
realidade
constitui um crime de lesa-Pátria, uma vez que
essa gente,
sentindo-se traída, objurgou Portugal, embora
isso não
evite que muitos portugueses, homens, mulheres
e crianças
arrastem a sua existência por «machambas» que
são verdadeiros
campos de concentração, quase morrendo
de fome, de
maus tratos, de vexames; andando
praticamente
nus e descalços, a cultivar as terras!
Em tais
circunstâncias e num momento destes, resta
apenas aos
brancos, morenos, amarelos e negros que se
consideravam
e desejam manter-se por-— 12 —
tugueses e
foram gravemente afectados pelo plano de
descolonização,
esperar que quer o País quer os homens
que, em seu
nome, subscreveram o plano e os acordos, de
Lusaca e
outros, assumam plena responsabilidade do que
fizeram. Assiste-lhes esse direito desde que sempre
tenham
cumprido e continuem a observar todos os deveres
de cidadãos
portugueses.
Todos nós
tínhamos ouvido falar, antes do acordo de
Lusaca, das
teses defendidas quer pela O.N.U. quer por
países e
pessoas, liberais ou «progressistas»,
relativamente
à independênciade Moçambique, de todas
as
províncias ultramarinas portuguesas, da Namíbia, da
Rodésia. e até da África do Sul.
Tudo
passaria pela autodeterminação, pela inde-pendência, pela livre escolha duma
Assembleia, por
sufrágio
universal, na qual cada homem teria direito a um
voto,
qualquer que fosse o seu entendimento ou cultura.
O que seria
muito democrático, muito certo, muito
razoável.
Tínhamos
ouvido falar disso e da «revolução dos
cravos», em
Portugal, do programa do M.F.A., etc, etc, o
que criou em
Moçambique a convicção de que iríamos
finalmente
dispor dum governo democraticamente eleito,
no qual
tomariam parte homens que seriam,
efectivamente,
os melhores de todos nós, qualquer que
fosse a cor
da sua pele.
Essa,
certamente, a razão por que indivíduos como
Urias
Simango (a quem, após a morte de Mondlane,
caberia,
naturalmente, a chefia da «Frelimo». );
Guenguere,
Lázaro Kavandame, Joana Simeão e outros
começaram a
aparecer, vindos do
i — 13
—
estrangeiro
ou dos locais de Moçambique, onde se
encontravam,
para iniciarem a sua actividade política.
Contrariamente,
porém, ao que geralmente se pensava
e as
autoridades portuguesas acaso previam, nunca esteve
na intenção
da «Frelimo» submeter a sufrágio a sua
popularidade,
não fosse o diabo tecê-las. E, como
tanto
sucedia,
também não permitiu que os outros fossem às
urnas, de
sorte que o caminho mais «democrático» que a
«Frente de
Libertação de Moçambique» encontrou foi
meter
opositores na cadeia, transferindo-os
posteriormente
para Nachingweia, na Tanzânia, durante o
período do
governo de transição, numa altura, por
conseguinte,
em que Portugal ainda tinha grandes
responsabilidades
na administração de Moçambique!
Tanto Urias
Simango como Lázaro Kavandame, Joana
Simeão,
Paulo Gumane; Mondlane, irmão do falecido
presidente
da «Frelimo»; o dr. Júlio Razão, o engenheiro
do Umbelúzi,
o médico da Beira, eram considerados
cidadãos
portugueses, em pleno uso de todos os seus
direitos e
obrigações. No entanto, foram
transferidos de
Moçambique
para campos de concentração, situados em
território
estrangeiro, onde quem sabe se terão morrido ou
sobrevivido!
Antes do
acordo de Lusaca ter sido assinado (o que
veio a
verificar-se em 7 de Setembro de 1974), principiou
a notar-se,
pelo menos em Lourenço Marques, uma
autêntica
ofensiva psicológica, cuja origem, na altura,
seria talvez
difícil determinar mas que, mais tarde, ao
estudarem-se
os métodos de actuação da «Frelimo», não
seria
difícil deduzir de
— 14 —
quem partiu
o plano que visava amedrontar, sobretudo os
brancos, em
função de propostas obscenas, feitas nos
machimbombos,
a raparigas e senhoras; ameaças e
espancamentos,
crimes de toda a espécie!
Fartos de
serem perseguidos, humilhados e ofendidos,
os
portugueses de Lourenço Marques (e entre eles havia
brancos,
morenos, amarelos e bastantes negros. )
reagiram
frontalmente ao saber que uma Bandeira
nacional
andara a varrer as ruas da Baixa. O
símbolo a
que
desesperadamente se agarravam e à sombra do qual
foram
traídos e sacrificados.
Assim nasceu
o «7 de Setembro» que, contrariamente
ao que se
terá afirmado em Portugal e ao que a «Frelimo»
quis fazer
crer, em Moçambique, não foi uma vã e
terrorista
manobra que visava bloquear a ascenção do
povo ao
poder mas uma manifestação espontânea e
popular, de
portugueses modestos, incapazes de renegar
princípios
que enformavam a Nação de que se orgulhavam
de ser
filhos.
Que
políticos se tenham posteriormente aproveitado
da situação,
para tentarem puxar a brasa à sua sardinha, já
é bastante
diferente.
De qualquer
forma, creio não ter sido de louvar o
procedimento
de militares portugueses que, quando a
«Frelimo»
ordenou a matança, de manifestantes
desarmados,
não defenderam nem a vida í nem os haveres
de seus
irmãos de raça e de outros…
Tanto
sucedeu em 7 de Setembro e 21 de Outubro de
1974.
— 15 —
III
OS ERROS
PAGAM-SE CAROS.
Em minha
opinião, tudo quanto de mau ou de cruel
tem sucedido
aos portugueses, residentes em
Moçambique,
deve-se, na sua quase totalidade, aos
elementos
nacionais que fizeram parte do Governo de
transição e
ao nosso primeiro embaixador, naquele país, os
quais não
souberam ou quiseram fazer cumprir o
implícito,
na letra e no espírito do acordo de Lusaca ou
não estava
escrito mas seria razoável fazer observar, tal
como o mais
elementar bom senso recomendava! A não
ser que
dessem de tudo conta a Lisboa e aqui essas coisas
passassem em
claro.
De qualquer
forma, quem estava em Lourenço
Marques não
pode ser facilmenteperdoado, na medida em
que estava a
desempenhar funções de tamanha
responsabilidade
que exigiam, ao menos, bastante
dignidade
individual, se a dignidade nacional lhes não
merecesse
tantas preocupações.
Como não
foram levados em conta pormenores
— 16 —
a
considerar, as consequências são aquelas que se estão a
observar, o
que quer dizer que se está a pagar muito caro
os erros
cometidos, aliás desde o tempo em que ao general
Caeiro
Carrasco foi retirado o comando das F.A., em
Moçambique.
Dir-me-ão, e
certamente com razão, que a gene-ralidade dos portugueses ficou em Moçambique
porque
quis e que
seria relativamente fácil prever o que viria a
acontecer
(menos, talvez, umas nacionalizações ou
«subtracções»,
tão profundas quanto se verificaram. ),
desde que se
tivesse ouvido e lido, com toda a atenção, os
discursos
que Samora Machel vinha proferindo, desde que
chegou a
Cabo Delgado.
Evidentemente
que todas as opiniões são falíveis, tanto
quanto a que
tenho ouvido formular, em Portugal, segundo
a qual quem
devia, no Ultramar, ter pegado em armas,
para nos
defender, éramos nós, os que lá estávamos.
Esquecem-se,
porém, de que antes e que saiba depois do
25 de Abril,
quem tem armas são as Forças Armadas e que
ninguém está
autorizado a usá-las sem seu
consentimento.
Essa a razão por que, lá como cá, foram
chapados às
fileiras apenas aqueles que o Governo 4
e
Lisboa
entendeu.
Pegar em
armas para declarar, unilateralmente, a
independência
de Moçambiqueou de Angola era hipótese
que se
punha, mais no estrangeiro do que naqueles
territórios,
quando eram nossos. Ê que, apesar de
tudo, a
generalidade
dos portugueses é muito agarrada à
Mãe-Pátria e
tudo fará para engrandecê-la. Proceder
como Smith,
na Rodésia,
— 17 —
2
era saída
que não tinha muito acolhimento, pelo menos em
Moçambique.
Claro que,
depois do que sucedeu, nem todos pensarão
assim; creio
mesmo que a maioria torcerá a orelha, por ter
confiado
demasiadamente nosGovernos de 'Lisboa,
deixando-se
levar pelo nosso «fado», pelo nosso
saudosismo,
em detrimento duma segurança que um
futuro, que
se nos afigura não muito distante, dirá se a
África do
Sul e Rodésia seriam capazes de ajudar a
garantir.
De qualquer
forma, vivem na Rodésia cerca de 50 000
portugueses
e na África do Sul 150 000. O que, por
várias
razões, tão fáceis de descortinar, seria bom não
esquecer.
O Governo de
transição de Moçambique, que incluía
um alto
comissário, indicado por Lisboa, tomou posse no
fim do mês
de Setembro de 1974, ou seja poucos dias
depois de
ter sido assinado o acordo de Lusaca, no qual se
consignavam
termos e condições em função dos quais o
território
ascenderia à independência, mas no mesmo já
não constava
o essencial, numa autêntica Democracia.
Por parte da
«Frelimo», foi indicado um
primeiro--ministro.
A escolha recaiu em Joaquim
Chissano,
actualmente ministro dos Negócios
Estrangeiros.
Das
declarações feitas aos órgãos de comunicação
social, pelo
referido alto comissário, as que mereceram
maior relevo
foram aquelas em que se salientava que
ninguém
seria prejudicado pelos acontecimentos de 7 de
Setembro,
uma vez que perfeitamente se compreendia que
foram
consequência
— 18 —
de um
incontrolável clima de emoção que entretanto se
gerara.
As prisões,
em massa, que em Dezembro de 1974 se
verificaram,
vieram pôr em causa tais declarações, embora
se possa
admitir que os acontecimentos de 21 de Outubro e
os que para
Dezembroestavam anunciados,
amedrontassem
a «Frelimo» e o Governo de transição de
Moçambique
que, tomados de pânico, não apenas
obliteraram
a palavra comprometida como ainda tomaram
medidas
brutais de repressão que afectaram, geralmente,
quem nada
tinha a ver com o sucedido ou se previa vir a
acontecer.
— 19 —
IV
TRISTE
NATAL, O DE 1974.
Eu mesmo fui
afectado pela onda de prisões verificada
em Dezembro
de 1974, tendo sido detido no dia 14 desse
mesmo mês e
remetido a masmorras que mais tarde vieram
a ser
controladas pela «Frelimo», e donde saí, com custo,
precisamente
um ano depois!
B tudo isto
porquê ? Porque praticamente durante os
últimos
treze anos da minha actividade intelectual outra
coisa não
fiz senão defender a dignidade da minha Pátria,
esta e os
direitos mais elementares da pessoa humana.
Posto isso,
conhecendo muita coisa e sabendo que os
macuas, por
exemplo (que só por si são metade da
população de
Moçambique. ), nunca estiveram, na
generalidade,
ao lado da «Frelimo», perguntei num dos
artigos que
em 8, 9 e 10 de Setembro escrevi, num dos
matutinos de
Lourenço Marques, onde exercia funções de
redactor, se
a «Frelimo» era, efectivamente, a legítima
representante
do povo moçambicano ?
— 21 —
Pois a
«Frente de Libertação de Moçambique» em vez
de mostrar,
nas urnas, que quem estava enganado era eu,
limitou-se a
ordenar a minha prisão e, com desinteresse do
alto
comissário de Portugal, em Moçambique,
condenou-me
a um ano de prisão correccional,
acusando-me
de que, com os artigos que escrevera, tentara
alterar a
«Constituição (acordo de Lusaca)», o que, se não
fosse tão
perverso, seria quixotesco.
Não era,
certamente, a Constituição portuguesa, que
respeito,
que estava em causa. ; quanto ao acordo de
Lusaca. na altura em que publiquei os artigos em
referência
nem sequer os jornais tinham dado conta do
respectivo
texto, o que quererá dizer que fui condenado
pelo facto
de ser português, que não renega a sua Pátria, e
ter
procurado ser uma pessoaque, acima de partidos e
grupos,
coloca a dignidade e a liberdade dos cidadãos.
03 a prova
de que nada me pesava na consciência é que
me mantive
em Moçambique, para além dos
acontecimentos
de 7 de Setembro, em vez de ter partido
para a
África do Sul ou Rodésia, como muitos fizeram.
#
O dia 14 de
Dezembro de 1974 calhou a um sábado.
Como
habitualmente sucedia, fui mata-bichar à «Santa
Maria», nas
proximidades da saudosa praça Mac-Mahon e
voltei ao
trabalho.
— 22 —
Tão
empenhado estava no meu serviço que mal dei
pela
presença dos agentes da Judiciária, dois dos quais
eram
brancos, creio que «portugueses».
Um deles
entregou-me um mandado de captura,
dizendo-me
ainda que pretendiam passar por minha casa,
para fazerem
uma busca.
O chefe foi
comigo e os outros dois num carro da
polícia.
Remexeram o
que quiseram mas não encontraram
nada de
comprometedor, o quenão seria de admirar na
medida em
que sempre fui apenas um intelectual
independente
e nada mais. Por isso recomendei calma à
família,
pois absolutamente nada me pesava na
consciência.
Estava totalmente convencido de que se
tratava dum
equívoco que seria facilmente sanado!
Da
Judiciária transitei para o tristemente célebre
Comando
Territorial do Sul do qual a Polícia Militar (do
Exército
português, claro está!), recebia ordens. Era o
COPCON de
Moçambique.
Desta vez
acompanhava-me um senhor idoso,
funcionário
dos Caminhos deFerro, que também fora
detido,
acusado de «crime contra a descolonização» !
Fazendo
parte dum «jogo» de que só bastante mais
tarde me vim
a aperceber completamente, a P.M.
prontamente
me conduziu à P.S.P., a qual - honra lhe seja
feita —, por
não estar certamente disposta a colaborar em
tão
vergonhosa farsa, fez tudo para nos não aceitar.
Finalmente,
não teve outro remédio senão conduzir mais
dois aos
calabouços superpovoados.
— 23 —
Foi ali,
precisamente, que principiei a aperceber--me do
que,
realmente, se estava a passar: pelos motivos já
apontados,
tinha principiado uma monstruosa onda de
prisões.
Os «comités»
dos lugares de trabalho, de bairro, etc,
começaram a
denunciar à «Frelimo», por ordem desta,
todos
quantos de quem entendiam dever fazer queixa; e o
partido
ordenava à Judiciária que detivesse toda essa
gente. Todavia, como certamente não queria ficar só
ele
ou a
«Frelimo» e a Judiciária com o odioso, entregavam as
pessoas à
P.M. portuguesa que, por sua vez, passava a
castanha
quente àP.S.P.!
Como os
magistrados, dispostos a colocar a Justiça
acima dos
interesses da «Frelimo», estavam de mala
aviada, os
que, por «crimes políticos» foram indo a
tribunal, já
sabiam a sorte que os esperava.
Por fim, só
encontravam pela frente um que outro
advogado,
transformado em juizapressado, e o respectivo
escrivão. Sem delegado do Ministério Público. sem
advogado de
defesa.
#
Dos
calabouços da P.S.P. transitámos para a
penitenciária
de Lourenço Marques, que se foi enchendo à
medida que
se aproximava o Natal de 1974.
Fomos
metidos numa «ramona», toda metálica. Por
isso o
calor, lá dentro, era insuportável, naquela tarde de
Verão
africano.
— 24 —
Noutras
circunstâncias, os reparos feitos, pelos
companheiros,
teriam passado de palavras..; como a nossa
situação,
ali, era deprimente e de inferioridade,
limitámo-nos
a tirar toda a roupa quê trazíamos sobre o
tronco e
deixámos que o suor corresse à vontade.
Chegados à
penitenciária e ultrapassado que foi aquele
portão que
muito dificilmente voltaria a abrir-se, para
qualquer de
nós, cada um foi-se aproximando de quem
deveria ser
seu companheiro de cela. Duma maneira
geral,
optou-se pelos que tinham ficado connosco nos
calabouços
da P.S.P.
Já éramos
bastantes, na penitenciária de Lourenço
Marques,
naquele dia, 17 ou 18 de Dezembro de 1974. ;
porém,
quando faltavam quatro ou cinco dias para o Natal,
foi uma
autêntica caça ao homem. ; e as prisões a
transbordar.
; e a cidade e o Mundo quedos e mudos. ; e a
O. N. U. e
os direitos humanos nada disseram. Como
nada dizem
ainda.
Claro que
lusitanos só têm a ver com Portugal e, como
este se
manteve «distante», alguns de nós tiveram
dificuldade
em entoar o Hino Nacional, naquela noite de
31 de
Dezembro de 1974 para 1 de Janeiro de 1975.
- 25 —
V
PROMESSAS
QUE SE NÃO CUMPREM.
Disseram-nos
que havíamos de ser soltos no Dia De
Reis. No entanto, esse dia passou e tantos se lhe
seguiram
tendo nós
unicamente de concreto promessas, boatos e
mentiras.
Pela minha
parte e como não podia estar, eternamente,
à espera de
atinar com os desígnios da Providência, resolvi
expor a
situação ao mais alto magistrado da Nação
Portuguesa.
Talvez por
isso, em 25 de Fevereiro de 1975, fui
mandado
apresentar ao quarto juízo do tribunal da comarca
de Lourenço
Marques, acompanhado do respectivo
processo.
É claro que
eles sabiam perfeitamente que não seria
julgado tão
cedo. Talvez por essa razão me mandaram
a
tribunal. Para esperar mais demês e meio por julgamento,
na prisão da
Machava que, mesmo no tempo do fascismo,
apenas se
destinava a presos de delito comum!
— 27 —
Só para me
castigarem e fazerem saber que simples e
razoáveis sugestões
do governo de Lisboa eram tratadas
como eles
muito bem entendiam.
Não quis
também o delegado opor-se à cabala
montada,
preferindo formular uma acusação do seguinte
teor: «. No
mês de Setembro de 1974, nesta cidade (de
Lourenço
Marques) e aquando do chamado «Movimento
de
Moçambique Livre», o ora arguido dirigiu-se às
instalações
do «DIÁRIO», pois, através da emissora local
foi pedida a
comparência urgente de todos os
trabalhadores
daquele jornal.
O Pinho
Barreiros trabalhava no «DIÁRIO», como
redactor.
Suspensa
havia algum tempo a publicação do jornal,
julgou o
arguido oportuno colaborar nas edições que
vieram a
lume durante os dias do «Movimento» e que se
afiguravam
de larga tiragempara garantir de alguma
forma o
crédito de que dispunha contra o jornal
«DIÁRIO» já
que este era devedor a todos os
trabalhadores,
como é de conhecimento público.
Com esta
finalidade e desempenhando as funções de
redactor,
assinou o arguido Barreiros alguns pequenos
artigos publicados
nas edições de 8, 9 e 10 de Setembro do
«DIÁRIO», em
que se explanam ideias contrárias ao
Acordo de
Lusaka que acabava de ser assinado e que se
apresentava
com dignidade constitucional para dirigir o
Estado de
Moçambique rumo à independência.
Cometeu
assim o arguido o crime de tentativa de
alteração da
Constituição (Acordo de Lusaka)»I
— 28 —
VI
NA CADEIA DA
MACHAVA
Aquele 25 de
Fevereiro de 1975 não amanheceu nem
mais cedo
nem mais tarde do queos outros dias, para os
detidos na
penitenciária deLourenço Marques. Como
era,
geralmente, dos mais madrugadores, à mesma hora da
manhã estava
a calcorrear o sombrio corredor da ala;
deitando
contas à vida. ; fazendo um pouco de exercício e
olhando o
portão verde, que se divisava ao fundo e que de
quando em
vez se abria, para que um bilhete, um jornal,
um aceno nos
fosse passado, transitando pela «rapaziada»,
geralmente
amiga, que eram os militares portugueses, à
guarda de
quem nos encontrávamos.,.
Não
obstante, ali metidos, para além das grades, é
muito
natural que nos sentíssemos deprimidos ou
revoltados,
tal como animais encurralados; bichos de
jardim
zoológico. .
Mesmo assim,
não compreendo certas lágrimas que vi
chorar;
algumas fraquezas, de homens mal
— 29 —
curtidos. ;
um que outro alegando ter andado metido em
manifestações
estudantis, severamente reprimidas, em
Portugal.
É certo que
aquilo ali era diferente. ; lidar com nativos
ou
«frelimistas» brancos, feitos à pressa, seria bem pior do
que tratar
com pides ou «fascistas».
De qualquer
forma, o R.P. tinha quase toda a razão e o
seu
comportamento, nos lugares por onde posteriormente
andou,
acompanhado pelos capitães M. e L., pelo R., pelo
P., pelo F.
e pelo G. dirá ou não se a verdade estava toda
com ele.
Ê muito
natural que a melancolia e a raiva vivessem
connosco, na
cela duma prisão; que gritássemos o que
sentíamos;
que calássemos o que nos apetecia dizer.
Há mesmo
«carcereiros» que admitem que assim seja;
outros não. O Antunes da Costa, por exemplo, era contra
tudo isso. Se assim não fosse, não teria chamado o
ex-comando
ao gabinete para lhe perguntar se queria
apanhar uma
carga de pancada, dada pelos «camaradas»,
um tiro ou
ir para Nachingweia.
O
1
«rapaz»
disse o que afirmara porque estava prestes
a perder o
emprego e a não poder casar, em consequência
daquela
prisão, ilegal e arbitrária.
A diferença
entre o procedimento dele e o de Jorge
Costa é que
o ex-comando falou desarmado e sozinho e o
«célebre»
inspector teve de apontar a sua arma e a dos
«camaradas»,
tendo feito o mesmo em relação ao
Esquivei,
quando este lhe
— 30 —
perguntou se
realmente pensava prender-lhe a esposa,
como
ameaçara, por ela não ter querido fazer declarações,
sem primeiro
consultar o marido.
No fundo e
como muitas vezes acontece, o inspector
não passava
dum cobarde pois que, quando o Raimundo
disse que o
havia de matar não voltou mais ao portão,
mesmo
armado, apressando-se a fazer transportar, para
muito longe
de Lourenço Marques, não apenas o R. como
alguns
outros, certamente considerados «reaccionários
perigosos».
Quando a
transferência deles teve lugar, eu já estava
na Machava.
Vieram buscar-me, inopinadamente, quando
me preparava
para ir ao recreio.
Foi o
furriel que me chamou,dizendo-me para fazer a
entrega da
roupa de cama.
Como tanto
sempre representou a libertação, os
companheiros,
ao saberem, vieram despedir-se de mim,
desejando-me
muitas felicidades.
A ninguém
passou pela cabeça que estavam a preparar
mais um
golpe, como na realidade sucedia. ..
Efectivamente,
em vez de me porem em liberdade, foram
entregar-me,
com o processo, no quarto juízo do tribunal
da comarca
de Lourenço Marques.
Era a
primeira vez que isso sucedia, na medida em que
sempre se
esperou, em situações idênticas, na
penitenciária.
No meu caso, como alguém certamente
perguntara a
razão por que estava, há três meses preso,
sem
julgamento, resolverammandar-me a tribunal,
sabendo de
antemão que me iam prejudicar, visto que não
sendo logo
julgado, como era natural, teria de dar entrada
na Machava,
— 31 —
uma cadeia
destinada a detidos e reclusos de delito
comum.
Existia,
contudo, a possibilidade de ser posto em
liberdade,
ainda que condicional, sob fiança. Havia
viabilidade
e existiu essa esperança, que se desvaneceu à
última hora,
uma vez que o «digno magistrado do
Ministério
Público» (que posteriormente veio para
Portugal,
onde viverá tranquilamente. ), por medo de
complicações,
não o consentiu.
E a família,
que por mim esperava, tantas as garantias
dadas de
que, nesse dia, iria dormir a casa, quando soube
do ocorrido,
caiu em desespero. ..
De qualquer
forma, quando o 25 de Fevereiro de 1975
estava a chegar
ao fim, dava entrada na cadeia central da
Machava.
Devido a
tudo quanto se tinhapassado; ao convívio de
alguns
momentos, com a família; às grandes esperanças
vividas, que
tive como certezas, o ingresso na Machava
foi o pior
choque da minha vida.
Até a cidade
de Lourenço Marques, que tanto amava e
tão bem
conhecia, tomou forma de monstro, de pesadelo.
Era afinal a
transição para pesadelos maiores. Que ao
fim
e ao cabo um
ser humano é capaz de suportar. Por isso
a
liberdade e
a dignidade ainda não morreram — nem
perecerão,
não obstante o que presentemente sucede, por
esse mundo
fora.
Na Machava,
sem eu saber, alguns reclusos
facilitaram-me
a vida, evitando que passasse pela
— 32 —
«cela de
transição». Não puderam porém obstar que me
sentisse
profundamente deprimido pelo que ali vi.
Mão amiga,
de recluso também, ofereceu-me uma
chávena de
café, que foi o meu único alimento, naquela
noite.
Quanto a
dormir, só muito tarde resolvi entrar na cela e
deitar-me
naquela cama nojenta.
No dia
seguinte e pela primeira vez os meus nervos
cederam.
O
companheiro de cela que, com jactância, gostava de
ser tratado
por «Burlão de Luanda», quis ser simpático
para comigo
e foi ensinar-me onde era o refeitório.
Todavia, a
minha sensibilidade opôs-se a que me sentasse
num lugar
daqueles, entre semelhante gente.
Quanto à
qualidade da alimentação e higiene geral
nem será bom
falar-se.
Os mais
esquisitos arranjaram maneira de ingerir na
cela a
comida que lhes era distribuída na cozinha. Creio
que esta
teria sido uma das concessões do 25 de Abril.
Pela minha
parte, da comida só aproveitava o pão. O
resto eram
salsichas e peixe de conserva que comprava na
cantina,
quando podia;..
Com uma
alimentação destas, nada substancial, assim
me aguentei
alguns meses, utilizando como mesa o chão e
como tecto a
sombra acolhedora das laranjeiras.
O pior foi
quando os homens da limpeza foram fazer
queixa ao
capataz, acusando-me de estar a sujar o pomar.
Na verdade,
como à falta de sítio
— 33 —
melhor, ia
por lá ficando uma que outra lata vazia, não
deixavam de
ter razão. Só que não estava com
disposição
para
discutir e, por esse motivo, resolvi mudar de sítio.
Foi por essa
altura que o meu companheiro de cela
baixou ao
hospital do Infulene, tendo vindo ocupar a sua
vaga um
indivíduo que, a julgar pela aparência, devia ser
consumidor
de droga. Por isso teria sido preso e,
pela
mesma razão,
tão depressa pôde fugir, evadiu-se para ir
liquidar
quem o tinha denunciado: um militante da
«Frelimo»,
residente no Alto Maé.
#
Mais ou
menos por essa altura, apareceu na cadeia
central da
Machava o F. e o S., companheiros da
penitenciária
de Lourenço Marques, o primeiro acusado
de ser «reaccionário»
e o segundo de ter tomado parte no
«7 de
Setembro».
à medida que
iam surgindo outros, ia-se tornando
mais difícil
a existênciados detidos, acusados de
«actividades
subversivas», pois era intensa a propaganda
da
«Frelimo», a qual atingia sobretudo os nativos, os
quais,
supondo que isso lhes traria grandes vantagens,
incluindo o
regresso à liberdade, tornaram-se adeptos
fanáticos da
linha política do partido, procurando cumprir,
mais do que
à risca, as palavras de ordem «unidade, vigi-lância, trabalho». Por isso tentámos diluir-nos,
— 34 —
o quanto
possível, no meio daquela gente. Mesmo
assim,
o S. ainda
teve problemas.
O pior, para
os que se deixaram influenciar, foi quando
chegou a
independência e ninguém foi posto em
liberdade. A partir daí, começaram a aperceber-se de que
tinham sido
ludibriados e por essa razão tentaram
desviar-se
da posição assumida. Tarde porém visto
que
as ameaças,
os castigos e a força das armas já não
deixavam
ninguém recuar. O que afinal parece
suceder
em todos os
países onde o comunismo consegue
estabelecer-se.
— 35 —
VII
O JULGAMENTO
Entretanto,
no quarto juízo dotribunal da comarca de
Lourenço
Marques, o meu processo foi correndo os seus
trâmites,
até que o respectivo julgamento foi marcado para
9 de Abril
de 1975, da parte da manhã.
Toda a gente
me dizia que ia ser absolvido, na medida
em que era
ridícula e infundada a acusação que me faziam
de tentar
alterar a «Constituição (acordo de Lusaca)», com
artigos que
escrevera, em 8, 9 e 10 de Setembro de 1974,
primeiro
porque o acordo de Lusaca não era nenhuma
Constituição
— nem portuguesa nem moçambicana—;
segundo o
referido acordo nem legal nem publicamente
existia, uma
vez. que não tinha sido ainda publicado no
boletim
oficial de Moçambique e nos jornais só o foi
bastante
tempo depois dos meus artigos terem vindo a
lume. Logicamente, não havia qualquer relação entre
uma
coisa e
outra.
— 37
—
Como prova,
foi junta ao processo fotocópia do jornal
de maior
circulação, em Lourenço Marques, que incluía o
referido
acordo.
O dia 9 de
Abril de 1975 foi a uma segunda-feira.
Em minha
casa e na Machava, à minha frente, tinham
dito para ir
confiante pois seria posto em liberdade.
A família
acreditou e ficou à espera. ; pela minha
parte,
estava quase tão satisfeito como ela.
Pelo
caminho, metidos naquele imundo transporte, o
Sousa, que
ia ao hospital, foi-me dizendo para ir
sossegado
porque já não regressaria com ele à cadeia.
No tribunal,
alguns familiares, as testemunhas de
defesa, o
defensor oficial. por não ter dinheiro
para
mais.
■E vá lá
que, naquela altura, ainda havia quem
pretendesse
defender. Existia isso mas havia também
uma
determinação que obrigava a recurso, no caso de
absolvição,
ao que parece com os réus aguardando o
desfecho, na
cadeia!
O advogado
leu-me um documento, que constituiria
capítulo de
defesa, dizendo-me que, destruída que
considerava
a acusação, o julgamento giraria à volta da
minha
personalidade.
O juiz quis
saber das testemunhas de defesa — que
existiam — e
das de acusação — que não havia.
Que
saibamos, antigamente, em julgamentos destes,
havia sempre
duas testemunhas de acusa-— 38 —
ção, pelo
menos, ainda que fossem polícias. No meu
caso
nem coisa no
género existiu.
Quiseram
saber das testemunhas que espécie de
pessoa era
eu.
As
informações foram das melhores. Mas que era
introvertido,
por isso estranhara a «inoportunidade» da
minha
actuação — declarou uma delas; que defendia a
integração
de Moçambique em Portugal — acrescentou
outra.
À primeira
respondeu o advogado, dizendo que
precisamente
por isso reagira asperamente ao sentir-me
ferido, na
minha dignidade de português. ; à segunda
respondi eu
acrescentando que o que efectivamente
defendia era
uma adesão de Estados independentes,
inseridos no
que creio ter sido um conhecido historiador
brasileiro a
baptizar de Comunidade Lusíada.
O que parece
ter ferido muito a sensibilidade do juiz
foi o título
dum dos artigos, aliás publicado em página
interior:
«FRELIMO: LEGITIMA REPRESENTANTE
'DO POVO
MOÇAMBICANO?».
Tomou ele a
nuvem por Juno; a interrogação por
afirmativa
e, como «frelimista», ficou pior do que uma
fera. Pelo menos aparentemente.
Não quis
saber nem das alegações da defesa nem das
minhas
declarações, feitas sob juramento, e considerando
que colocara
o partido em maus lençóis e tinha mostrado
uma
sagacidade capaz de me fazer saber o que se continha
no acordo de
Lusaca, sem o ter lido, resolveu
condenar-me
a um ano deprisão correccional!
_ 39 —
Foi mais uma
«punhalada», que em cheio me
vibraram, a
mim e à família, de tal maneira que a
pessoa mais
idosa que em casa tinha, não mais voltou
a ver quando
soube que, em vez de regressar ao lar,
tinha
voltado à cadeia central da Machava, agora por
mais oito
meses.
— 40 —
VIII
NO HOSPITAL
DE S. JOÃO DE DEUS
Física e
psiquicamente esgotado, há algum tempo
já,
continuei a frequentara consulta externa do
Miguel
Bombarda, até que o médico resolveu
fazer-me
baixar ao Hospital de S. João de Deus, si-tuado no Infulene, para o devido
tratamento. Isto
sucedeu em 6
de Maio de 1975.
Foi com
grande prazer que ali dei entrada, na
medida em
que era bem mais agradável viver entre
loucos do que
na prisão.
Ê certo que
também ficava para trás um que outro
companheiro
de quem, realmente, talvez me não
devesse
separar, até por uma questão de
solidariedade.
A verdade contudo é que me sentia
mal e tinha
começado a ir ao médico antes de eles
chegarem. Independentemente disso, poderia mais
facilmente
contactar com a mulher e filho, coisas que
eles não
tinham, por serem solteiros.
Naquela
tépida e calma tarde tropical sentia-me
— 41 —
mais alegre,
quando me sentei no carro que me havia de
conduzir ao
Hospital do Infuiene.
Eram cerca
das 17 horas quando lá dei entrada e ainda
tive de
esperar um bocado, até aparecer o servente, que me
conduziu ao
pavilhão, salvo erro o número quatro.
Ali sozinho,
sem guardas, sem ninguém a vi-giar-me,
pela
primeira vez senti o quanto é agradável, a liberdade,
de cuja
importância só nos apercebemos quando ficamos
sem ela.
Antes de
chegar ao pavilhão, tive de passar por alguns
sítios mais,
onde fui deixando o que levava comigo:
alimentos,
roupas, etc, enquanto o servente e enfermeiro
combinavam o
que haviam de fazer, nes dias mais
próximos,
para bem cumprirem a linha política da
«Frelimo».
Finalmente,
distribuiram-me um pijama, curto e
manchado,
que foi o melhor que se pôde arranjar.
'Distribuí
algum dinheiro, pelos trabalhadores, e
cigarros,
pelos doentes, para ter uma vida facilitada,
enquanto
estivesse naquele pavilhão.
Não deviam
ser ainda dezoito horas, quando me
chamaram,
para jantar.
Não foi sem
relutância que anuí à solicitação, uma vez
que o fim de
tarde estava agradável e o sol ainda ia alto.
Não sei se
tivemos, para jantar, o habitual arroz de
qualquer
coisa. ; só sei que me senti bastante mal, no fim
da refeição,
em consequência dos comprimidos que me
deram, para
ingerir.
No dia
seguinte, mais bem disposto e pensando
melhor
cheguei à conclusão de que tais comprimi-_ 42 —
dos seriam
para dormir. Essa a razão por que, logo
após o
jantar,
quando principiei a sentir as pernas inseguras,
fui-me
deitar, só acordando altas horas da manhã seguinte,
após um
sono, dos mais longos e mais tranquilos de toda a
minha vida.
Nesse mesmo
dia ou no seguinte, apareceu o médico
que me
mandou para o pavilhão número um, destinado a
doentes em
vias de restabelecimento.
No meu
encontro com o Irmão, encarregado daquela
secção, tive
ensejo de lhe contar o que se passava comigo
e as razões
por que me encontrava ali.
Como pessoa
de boa formação que era, como outros,
não podia
aprovar o que me estava a ser feito e tudo fez
para me
ajudar, dentro das suas possibilidades, de tal
forma que,
os dias aí passados, foram os mais felizes, da
minha
desgraça.
Entretanto,
embora com dificuldade, tudo ia fazendo
para me
adaptar, o melhor possível, à nova situação.
O que mais
me custava era ter de ir às vinte e uma
horas para a
enfermaria, visto que andava a dormir mal e,
por essa
razão, mais profundamente sentia todas as tolices
dos malucos.
Numa
tentativa para evitar tudo aquilo, efectivamente
deprimente,
mal o sol tinha nascido já eu estava a pé,
procurando
antecipar-me aos que, em função do seu
desequilíbrio
ou formação transformavam as casas de
banho em
autênticas cloacas.
— 43 —
Depois ia
até à sala de jogos, esperando que fosse
aberta a
porta, que dava para o quintal.
Ali,
enquanto os outros não apareciam, fazia um pouco
de exercício
e aguardava o primeiro noticiário do R.C.M.,
que tinha
lugar às sete horas.
Dali a pouco
era o mata-bicho e em seguida o recreio,
podendo ir
para o jardim ou mais longe os que dessem
garantia de
que não tentariam escapulir-se, para a cidade.
Ao fim de
alguns dias, o Irmão chamou-me,
dizendo-me
que podia ir ao recreio. Não aceitei porque me
encontrava a
rever as memórias, de tudo quanto até ali me
sucedera,
manuscrito esse que mais tarde foi destruído,
por receio
de que a «Frelimo» se viesse a apoderar dele.
Ao meio-dia
era o almoço e todos tinham de estar de
regresso. Só
se voltava a sair às quinze horas.
Depois do
almoço, as pessoas reuniam-se, no quintal
ou sala de
jogos. Eu preferia sentar-me, à sombra duma
árvore ou
num banco, a ouvir um pouco de música ou o
noticiário,
que parecia não mais acabar, desde que Samora
Machel
chegara a Cabo Delgado.
Os nativos
reuniam-se em grupos, consoante as suas
etnias, para
conversarem ou fazerem cestos.
Era a altura
de se ter cuidado com os cigarros, pois os
pedidos
choviam de todos os lados.
Embora não
dispusesse de muitos, sempre ia dando um
ou outro,
sobretudo ao velho açoriano que, utilizando a
maneira
característica de se expressar, várias vezes me
contou a sua
triste histó-_ 44 —
ria, ao fim
e ao cabo igual a tantas outras de que me
falaram, com
mais ou menos coerência, com maior ou
menor
lucidez.
E eu a ouvir
tudo aquilo; a viver num «mundo» tão
distante do
meu e pelo qual sempre passei à pressa,
quando
transitava pela estrada do Infulene, a caminho de
Vila Luísa.
Foi preciso
que entrassem na minha vida os piores
efeitos da
«revolução dos cravos», que teve lugar em
Portugal,
para ingressar numa cadeia, num hospital de
loucos e em
tantas outras coisas.
E a quem
pedir contas, uma vez que, neste País, agora
ninguém viu,
ninguém sabe, ninguém fez nada de mau?
*
Cerca das
dezassete horas, todos tinham de estar de
volta ao
hospital, vindos do passeio. Alguns chegavam
mais cedo
porque, naquela zona, para além do jardim,
pouco mais
existia com interesse.
Essa a razão
por que quando o Irmão insistiu, que fosse
passear,
apenas fui até ao restaurante, tomar um café,
tendo de
imediato regressado ao referido jardim, para
meditar, ver
passar os machimbombos e arejar, a cabeça e
os pulmões. Para contactar com a vida que se
desenrolava
para além da minha existência.
Entretanto,
já tinha pedido ao Irmão para me deslocar
a Lourenço
Marques, a fim de visitar a família e tratar de
vários
assuntos que tinha em suspenso. Ele acedeu e disse
para voltar
uns dias
-45-
depois, recomendando-me
porém que não desse nas
vistas.
No entanto,
foi de coração apertado que apanhei o
autocarro,
uma vez que o meu bilhete de identidade tinha
ficado na P.
S. P. e eu sabia que, no caminho, faziam-se
inspecções.
Por sorte,
consegui ir até casa e foi com espanto e
alegria que
a família me viu chegar.
Da «Vitória»
a casa pouco tempo demorei e, pelo
caminho,
experimentei uma sensação esquisita: uma
mescla de
liberdade e de prisão.
Apesar de
tudo, a minha rua estava no mesmo lugar e a
casa no
mesmo sítio. Os vizinhos, que restavam,
procuravam
fazer a mesma vida de sempre como se nada
tivesse
acontecido ou seria forçoso vir a suceder, o que
quer dizer
que a natureza, mesmo humana, também tem as
suas leis,
que se não cumprem, nem mais depressa nem
mais
devagar, consoante a vontade de alguns homens.
O «Fly» que,
como sempre, se conservava à porta da
cozinha,
teve dificuldade em reconhecer--me. Tanto já o
tempo que
marcava o nosso desencontro. ..
Como a
memória das pessoas, a dos bichos também é
fraca, não
obstante ter sido o meu grande companheiro de
todas as
manhãs de domingo, na mata da marginal.
#
Na altura,
já Samora Machel andava por Moçambique,
«ditando»
história, à sua primaríssima
— 46 —
maneira, e
tentando destruir tudo quanto tivesse qualquer
relação com
Portugal, cuja cultura, segundo ele, tinha a
sua máxima
expressão no que se dançava em «boites», à
meia-luz,
esquecendo-se, porém, das bebedeiras e lascívia
de batuques.
Na capital
de Cabo Delgado, perguntara Samora se
alguém
conhecia a Amélia. E a cidade herdara o
nome da
rainha D.
Amélia.
Se bem
entendi as perorações dos elementos da
«Frelimo»,
disso encarregados, a história de Moçambique,
para eles,
principiou pelo Monomotapa onde, a
determinada
altura, apareceu um D. António Silveira que,
de acordo
com a mesma óptica, foi dos «primeiros agentes
do
imperialismo».
E o tom e a
cor que quer Samora quer os seus agentes
davam aos
factos e acontecimentos eram estes, de modo
que, quando
fui a Lourenço Marques, com autorização do
Irmão,
estavam já a apear a estátua de Mouzinho, e a
destruir, à
marretada, o respectivo pedestal. Outro
tanto
já tinha
sucedido à de Vasco da Gama, na Ilha de
Moçambique,
e a muitas mais sem que, pelos vistos, Lis-boa se importasse com isso.
De qualquer
forma, os pretos, da «Frelimo»,
aproveitaram
todas as nossas fraquezas e desvarios, para
fazerem de
Portugal e dos portugueses gato-sapato,
utilizando,
permanentemente, o insulto mais soez, a
injustiça
mais flagrante..
— 47 —
IX
REGRESSO A
PORTUGAL
Eram cerca
das oito horas, do dia 19 de Junho de 1975,
quando o
Irmão, do Hospital do Infulene, onde na altura me
encontrava,
em tratamento, me chamou para dizer que
tinha
notícias, certamente boas para mim. Que
me ia dar
alta, pois
ia ser posto em liberdade. Que agarrasse
nas
minhas
coisas e fosse para a portaria esperar porque ha-viam de ir buscar-me.
Como estava
a tratar da minha liberdade condicional,
por já ter
cumprido metade da pena, de um ano de cadeia, a
que fora
condenado, sob alegação de ter tentado alterar,
com artigos
que escrevera, num jornal de Lourenço
Marques; o
acordo de Lusaca (que trata da independência
de Moçambique),
nem sequer perguntei ao Irmão quem
telefonara;
pensei logo que tudo se relacionava com isso.
Oito e meia.
nove. dez horas. e sem ninguém
aparecer!
Aí, comecei a magicar.
— 49 —
Por portas
travessas disseram-me: Ah! é você?. Pois
telefonaram
da cadeia central. É para ir para
Lisboa!»
Fiquei
deveras perturbado. Assim mesmo, tão
depressa,
para Lisboa, possivelmente sob prisão!
E a família?.
É certo que
fora o regresso, o que eu desejara. ; porém
com tempo e
método. Mas já lá iam alguns três meses,
desde que
tentara tal coisa!
Fui almoçar.
Continuei à espera, da parte da tarde e
durante um
bom bocado da noite.
Resolvi por
fim deitar-me e, quando eram umas vinte e
duas horas,
o guarda-nocturno veio dizer-me que estavam
à minha
espera!
Fiquei
evidentemente irritado, aborrecido e
intranquilo,
na medida em que, no Moçambique de agora,
muita coisa
pode acontecer, às pessoas mais decentes!
Mas não,
dessa vez enganara-me: o guarda e a pessoa que
o
acompanhava eram boa gente. Certamente
tinham
aproveitado
o serviço, para darem um passeio.
Viera um
telegrama do Ministério da Coordenação
Interterritorial,
solicitando a minha presença, em Lisboa,
antes de 25
de Junho de 1975 (dia da independência de
Moçambique. )
— disseram--me depois.
Tudo estava
a ser tratado com grande urgência e que
por isso
devia embarcar na segunda ou terça--feira. —
acrescentaram
eles.
Como
estávamos numa quinta-feira, o que na altura
me faltava
era tempo. ao menos para me
— 50 —
despedir da
família, já que ninguém se lembrara de que
seria humano
e justo que ela fosse na mesma altura.
Todavia,
passaram as segunda e terça-feira. ; mais
uma semana
se seguiu e outra se aproxima, no momento
em que tomo
nota destes pontos das minhas recordações e
continuo à
espera de embarque !
Dizem-me que
ninguém sabe dos papéis! Cheira-me a
gato com
rabo de fora.
De momento,
estou a tentar obter passagem, por
outras vias.
Também já
estou farto de ser perseguido e ofendido,
apenas pelo
facto de sempre ter repudiado totalitarismos e
de ter
defendido a dignidade e nobreza da minha Pátria;
isto e os
direitos mais elementares da pessoa humana.
Não
obstante, fui condenado a um longo e doloroso
cativeiro,
com conivência de«portugueses», que também
não
defenderam, em 7 de Setembro e 21 de Outubro de
1974, as
vidas e haveres de nossos irmãos, quando jovens
e velhos
foram mortos, raparigas violadas, senhoras
violentadas,
crianças assadas vivas!
É a tal
desgraça que se previa ir atingir muitos
milhares de
famílias portuguesas, se o Ultramar fosse
abandonado!
E o nosso
Governo nem sequer retirou, antes de 25 de
Junho de
1975, todos os cidadãos, quantos desejassem
regressar à
Pátria! Daí a razão dos dramas que se
verificaram
depois, incluindo o de Manuel Mota dos
Anjos,
condenado a oito anos de
— 51 —
prisão pelo
facto de ter defendido, no Bairro do Jardim,
mulheres e
crianças condenadas a uma morte horrorosa!
Dos pretos
que fizeram isso e que saiba nenhum foi
condenado. Mas os brancos que esboçaram ou não
defesa foram
mortos, perseguidos e presos!
E há quem
diga, em Portugal, que foi muito bem feito!
— 52 —
X
LEI DA SELVA.
Não há
dúvida de que o telegrama do Ministério da
Coordenação
Interterritorial que, a princípio, me causou
sérias
preocupações, acabou por revelar-se um documento
providencial!
Efectivamente, se tivesse chegado, sequer
com um dia
de atraso, duvido muito que alguém, neste
momento,
soubesse do meu paradeiro! Da mesma forma
como se
desconhece, na altura em que escrevo, o de
centenas de
detidos e condenados, brancos portugueses,
mestiços e
africanos!
Na
realidade, no dia seguinte ao meu regresso a esta
cadeia da
Machava, numa sexta-feira, portanto, por ser
altura do
«comité» e eu não ter nada que fazer naquela
tarde,
resolvi deslocar-me ao local da reunião.
Tinham-me
dito contudo que, quem costumava falar,
era pessoal
da cadeia. Estranhei, por conseguinte, a
presença, no
estrado, de elementos da
-53-
«FRELIMO»,
bem como o aparato bélico, nas re-dondezas.
O mais novo
dos elementos, que se encontrava
fardado,
depois de algumas canções «revolucionárias»,
dirigindo-se
aos presentes, principiou por dizer:
«Camaradas!
nós vamos fazer uma chamada e, quem for
citado, deve
encaminhar-se para o local indicado; os
outros devem
manter-se nos mesmos sítios e não fiquem
tristes
porque hoje mesmo ou amanhã voltaremos. A
«Frelimo» a
todos quer ajudar!»
Entretanto,
continuou ele: «Há alguém que esteja
doente»?.
— Estou eu —
respondeu um homem.
— O que é
que você tem?
— Estou
tuberculoso!
— Não faz
mal; há-de melhorar. — acrescentou o
«frelimo».
Vieram
posteriormente dizer-me que o meu nome
constava da
primeira lista e só não fui com os outros
porque
alguém fizera saber que ia para Portugal.
Pois eu que
sou estrangeiro, em Moçambique; que
cometi um
«crime», em território então português,
seguiria,
para lugar desconhecido, sob pressão de
baionetas
estrangeiras!
Como se não
bastasse um «político» estar numa cadeia de presos de delito comum, pretos na
sua esmagadora maioria. Necessariamente
com usos e costumes diferentes.
Toda aquela
gente partiu, enquadrada por militares da «Frelimo», armados até aos dentes. Mesmo o Ferreira, português também, que fora
acusado de ser «reaccionário» e que, há trinta e cinco dias já,
aguardava a
continuação do julgamento!
Alguns foram
depois aparecendo, vindos de Mabalane, para irem ao médico.
Por eles
soube os horrores que lá passaram ou viram sofrer.
Sobretudo o
ódio ao brancoaté ali é evidente. Entretanto, muita água correu sob as pontes.
Quarenta e
cinco vezes o sol despontou e desapare-ceu, para além do muro da cadeia. Mês e meio
depois de
ter vindo o telegrama do Ministério da
Coordenação
Interterritorial, continuo à espera de
seguir para
o meu País! Não sei se a causa residirá na
maldade se
na incapacidade das pessoas e orga-nizações se em ambas as coisas.
Se não
encontrar justiça, nem em Moçambique
nem em
Portugal, nem no estrangeiro, resta-me deixar
cair os
braços e, exausto, esperar que, ao menos a
Providência,
me estenda a mão.
A não ser
que recalque sentimentos e vá «men-digar», junto de Samora Machel.
Nesta
sexta-feira, dia 1 de Agosto de 1975, não é
isso que
penso efectivamente fazer.
— 55 —
XI
25 DE JUNHO
DE 1975: DIA DA
INDEPENDÊNCIA
DE MOÇAMBIQUE
Samora
Machel e seus agentes vieram vindo, Moçambique abaixo, até chegarem a
Inhambane, a «terra da boa gente».
A maior
parte do percurso fizeram-no por via aérea. A razão é evidente: A «Frelimo»,
mesmo nessa altura, não dominava, efectivamente, qualquer parcela do
território, muito menos a sul do rio Save, onde os distritos de Gaza, Inhambane
e Lourenço Marques se situavam. Daí a
razão de tantas precauções. ..
Na cidade de
Inhambane, precisamente, reuniram-se os «comités» central e executivo, bem como
todos os ministros do Governo de transição, nomeados pela «Frelimo», os quais
faziam geralmente parte de qualquer dos referidos órgãos do partido. Do que
transpareceu da reunião, conclui-se que a mesma foi tempestuosa, em
consequência das vigorosas críticas feitas ao Governo presidido por Joaquim
Chissano, o qual granjeou a simpatia de muitos pretos e brancos, o que não
sucede em relação a Samora Machel que, com a sua dialéctica furiosa, as aldeias
comunais, o trabalho forçado, a proibição da poligamia, a abstinência
brutalmente imposta, não concitou senão a má vontade ou o ódio dos nativos, que
sempre gostaram de ir para onde desejassem e quando entendessem; de trabalhar
quando e como lhes agradasse; de casarem com quantas mulheres quisessem; de
festejar as suas alegrias ou afogar as suas mágoas consoante lhes desse na real
gana.
Eram os tais
usos e costumes que Portugal respeitava, por constituírem lei.
Porque a
sublevação de minorias que, em Mo-çambique, pegaram em armas, opondo-se ao
convívio
com
portugueses, foi bem aproveitada pela «Frelimo», é possível que Samora Machel
consiga impor a sua vontade, pela força das armas. Uma coisa porém é certa: A estabilidade do
partido conseguir-se-á, sempre, à custa da infelicidade de grandes massas
populacionais!
Eis a
herança, também para Moçambique, do «Abril em Portugal».
#
De qualquer
forma, 25 de Junho de 1975, dia da independência de Moçambique, para todos se
aproximava,
a largos passos.
— 58 —
O estádio,
que fora Salazar, bem como os respectivos acessos, estavam, para o efeito, a
ser preparados.
Na cadeia da
Machava, onde me encontrava, as reacções eram diversas: Uns tantos pretos
diziam que os brancos que ali estavam haviam de ser todos mortos. ; a maioria
optava porque, com ordem ou não da «Frelimo», todos deviam obter a liberdade
ainda que, para consegui-la, se tivesse de destruir o portão de saída.
Foi um erro
ter-se falado tanto em semelhante assunto, na medida em que deu ensejo a que a
«Frelimo» tomasse as suas providências, de maneira que, uns dias antes de 25 de
Junho, grande parte de detidos e reclusos foram transferidos, da Machava para
Mabalane, donde no dia da independência uma parte se evadiu, com alguns de lá,
para irem saquear e fazer uma série de tropelias em Vila Pinto Teixeira, onde
se viveram momentos verdadeiramente dramáticos. Pelas razões já apontadas, na noite de 24 para
25 de Junho de 1975, eu ainda estava na cadeia da Machava, lugar onde, nem
mesmo a proximidade da independência alterara a rotina.
Por sorte ou
por azar, as pilhas do meu pequeno rádio estavam de tal maneira que, instantes
depois das cerimónias terem principiado,nada conseguia ouvir. Essa a razão por que caí num sono que foi
interrompido por disparos de regozijo dos «frelimos», no momento em que, no
estádio, descia a Bandeira Portuguesa e era hasteada a de Moçambique.
Fui-me
deixando estar na cela, que se encontra-
— 59 —
va às
escuras, apreciando os projécteis, que riscavam o céu. Todavia, muitos se foram juntando, no nosso
pavilhão: eram sobretudo brancos, certamente pensando, pelo menos a princípio,
que iam ser mortos. A mim, com a família
lá fora, passando grandes dificuldades, sobretudo materiais; profundamente
abatido como me encontrava, em consequência disso, doutras coisas mais e das
incertezas com que o meu futuro se encontrava carregado, já pouca coisa na vida
me interessava. Essa, certamente, a
razão por que, calmamente, vesti uns calções, enfiei uns sapatos e fui até às
grades. Ouvimos mais uns disparos e
chegámos à conclusão de que não queriam dizer nada de grave. Aos poucos, cada um foi regressando à sua
cela, possivelmente enquanto se ia lendo a seguinte cons-tituição, da República
Popular de Moçambique, na qual a democracia pluralista foi posta totalmente de
parte: «. A República Popular de Moçambique é um Estado de democracia popular
em que todas as camadas patrióticas se engajam na construção de uma nova
sociedade, livre da exploração do homem pelo homem.
Na República
Popular de Moçambique o poder pertence aos operários e camponeses unidos e
dirigidos pela FRELIMO, e é exercido pelos órgãos do poder popular.
A República
Popular de Moçambique é orientada pela linha política definida pela FRELIMO,
que é a força dirigente do Estado e da Sociedade. A FRELIMO traça a orientação
política básica do Estado
_ 60 —
e dirige e
supervisa a acção dos órgãos estatais a fim de assegurar a conformidade da
política do Estado com os interesses do povo.
As Forças
Populares de Libertação de Moçambique, dirigidas pela FRELIMO sendo um dos
elementos essenciais do poder do Estado, têm uma responsabilidade fundamental
na defesa e consolidação da independência e da unidade nacional. Ao mesmo tempo
elas são uma força
de produção
e de mobilização política das massas
populares.
A acção e
desenvolvimento das Forças Populares de
Libertação
de Moçambique funda-se na direcção política
da FRELIMO e
na ligação estreita com o povo.
As Forças
Populares de Libertação dei Moçambique têm como seu comandante-chefe o
presidente da
FRELIMO. O
comandante-chefe das Forças Populares de Libertação de Moçambique nomeia e
demite os responsáveis militares no escalão superior.
A terra e os
recursos naturais situados no solo e no subsolo, nas águas territoriais e na
plataforma continental de Moçambique são propriedade do Estado. O Estado
determina as condições do seu aproveitamento e do seu uso.
O Estado
encoraja os camponeses e trabalhadores individuais a organizarem-se em formas
colectivas de produção, cujo desenvolvimento apoia e orienta. A República
Popular de Moçambique é um Estado laico, nela existindo uma separação absoluta
entre o Estado e as instituições religiosas.
— 61 —
Na República
Popular de Moçambique as actividades das instituições religiosas devem
conformar-se com as leis do Estado.
A
participação activa na defesa do país e da revolução
é o direito
e o dever mais alto de cada cidadão e cidadã da República Popular de
Moçambique.
O Estado
pune severamente todos os actos de traição, subversão, sabotagem e, em geral,
os actos praticados contra os objectivos da FRELIMO e contra a ordem popular
revolucionária.
A Assembleia
Popular é o órgão supremo do Estado na República Popular de Moçambique.
A Assembleia
Popular é o mais alto órgão legislativo da República Popular de Moçambique.
A iniciativa
das leis pertence ao comité central da Frelimo, ao comité executivo da Frelimo,
ao Presidente da República, à comissão permanente da Assembleia Popular, aos
órgãos da Assembleia Popular e ao Conselho de Ministros.
A comissão
permanente da Assembleia Popular é presidida pelo Presidente da República.
O Presidente
da República Popular de Moçambique é o presidente da FRELIMO.
O Presidente
da República Popular de Moçambique é o Chefe do Estado. Simboliza a unidade
nacional e representa a Nação no plano interno e internacional.
Ao
Presidente da República Popular de Moçambique
compete
fazer respeitar a Constituição e assegurar o
funcionamento
correcto dos órgãos estatais; criar
ministérios
e definir as suas competências;
— 62 —
dirigir as
actividades do Conselho de Ministros e presidir
às suas
sessões; nomear e demitir os membros do Conselho
de
Ministros; nomear e demitir o presidente e
vice-presidente
do Tribunal Popular Supremo e o
procurador-geral
da República; nomear e demitir os
governadores
provinciais; nomear e demitir o
comandante-geral
e o viee-comandante do Corpo de
Polícia de
Segurança Pública de Moçambique; promulgar e fazer publicar as leis e os
decretos-leis; declarar o estado de guerra e celebrar tratados de paz sob
decisão do comité central da Frelimo; proclamar a mobilização geral ou parcial;
indultar e comutar penas; declarar o estado de sítio ou de emergência.
O Presidente
da República pode anular as deliberações das assembleias provinciais, bem como
as decisões dos respectivos governadores. Na República Popular de Moçambique a
função judicial será exercida pelos tribunais, através do Tribunal Popular
Supremo e dos demais tribunais determinados na lei sobre organização
judiciária. A sua composição e competência serão fixadas por lei. 0 Tribunal
Popular Supremo promoverá a aplicação uniforme da lei por todos os tribunais ao
serviço dos interesses do povo de Moçambique e assegurará o cumprimento da
Constituição, das leis e de todas as normas legais da República Popular de
Moçambique.
0 presidente
do Tribunal Popular Supremo é nomeado pelo Presidente da República. »
_ 63 —
Após 500
anos de convívio, algo melhor se podia e devia ter oferecido àquele povo. Por mim, teria vergonha de aparecer à frente
do dr. Júlio Razão, embora ele saiba que estava contra tal processo. É que, apesar de tudo, sou português.
De qualquer
forma, nada nem ninguém evitou que tivesse permanecido na cadeia desde 14 de
Dezembro de 1974 a 14 de Dezembro de 1975.
Em 24 de
Janeiro de 1976 pude, finalmente, deixar Moçambique, a caminho de Portugal, o
meu País de origem, graças à boa vontade e ao esforço do Encarregado de
Negócios e do consulado de Portugal, em Lourenço Marques, aos quais sou devedor
dos maiores
agradecimentos.
A partir
daqui, remeto o leitor ao primeiro capítulo deste livro.
— 64 —
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