segunda-feira, 8 de abril de 2013

Não vamos esquecer o tempo que passou (*)

 
E-mailImprimirPDF

Nenhum de nós é ou deve ser culpado pelos pecados dos nossos pais (ou antepassados). Não temos que carregar cruzes de pecados que não cometemos. No entanto, não devemos nem podemos, nesta rejeição da herança da culpa, apagar a realidade em que viviam os nossos pais e avós e em que alguns de nós também ainda vivemos.
Ricardo-rangel-menino-marcadoÀ data de independência de Moçambique viviam em Moçambique cerca de 200 mil branc...os de origem portuguesa. Muitos nascidos em Portugal, outros já nascidos em Moçambique, descendenetes de 2 ou 3 gerações também já aqui nascidas.
Se é verdade que nem todos maltratavam os negros, que muitos sentiam-se moçambicanos e não portugueses e que muitos lutaram, de várias formas, para pôr fim ao colonialismo, a grande maioria ou beneficiou diretamente do colonialismo ou, pelo menos, aceitou silenciosamente as práticas coloniais.
O bem-estar de que muitos brancos usufruíram e a riqueza que muitos brancos acumularam só foram possíveis graças às relações políticas, sociais e económicas que existiam entre a minoria branca e a maioria negra. Se em Moçambique não houve apartheid formal, a separação das raças estava institucionalizada a todos os níveis: nas zonas residenciais, no acesso à educação e à saúde, no acesso aos serviços e ao emprego. Para não falar do poder político, claro!
Quem achar que isto é um exagero é só consultar as centenas de álbuns fotográficos da época, que tantos orgulhosamente têm compartilhado aqui na internet, e ver quão branca era a vida social e económica de Moçambique na época. Ou ler os relatos do trabalho forçado, das palmatoadas, dos insultos racistas, etc, etc.
Entre 1974 e 1976, mais de 90% dos brancos residentes em Moçambique abandonaram o país. O mesmo aconteceu nas outras colónias portuguesas. A esmagadora maioria foi para Portugal e constituíu a chamada comunidade dos retornados. Outros foram para a África do Sul e para o Brasil.
Desde essa altura até hoje, desenvolveu-se e cristalizou-se uma "narrativa retornada" sobre a vida colonial e sobre o período 1974/75. É uma narrativa ao mesmo tempo romantizada e amarga, saudosista e reivindicativa, seletiva e manipuladora. O principal fio dessa narrativa, independentemente de se aplicar a Angola, Moçambique ou Guiné-Bissau, é que os brancos nas colónias desenvolveram e civilizaram as colónias, criaram e deixaram riqueza, trataram bem os pretos e tiveram que fugir porque os pretos (comunistas) os iam matar e roubar. O outro fio entrelaçado desta narrativa é sobre a boa vida das colónias, onde todos tinham casas grandes, muitos criados, praias, boa comida, o Sol, etc.
Esta é sobretudo uma narrativa falaciosa, cega e filtrada. A vida de uns só era boa porque a vida de muitos era francamente má. Esta é uma correlação indissociável. Os pretos nunca foram vistos como mais do que seres subordinados, por vezes "acarinhados", muitas vezes humilhados e violentados na sua dignidade humana. Esta frase que encontrei num depoimento é ilustrativa do pensamento dessa época e que está subjacente a toda a "narrativa retornada": "o branco com seu espírito empreendedor e conhecimento técnico, o negro como trabalho braçal".
É exactamente essa correlação e essa relação entre brancos e negros na sociadde colonial que a "narrativa retornada" ignora e rejeita. Esta narrativa tem sido reproduzida de pais para filhos, de geração para geração, ao ponto de influenciar os que nunca cá viveram, nem são descendentes de que cá viveu.
Hoje é comum ouvir: eu também sou moçambicana, também lá nasci e hoje estou de volta para ajudar esta terra que me viu nascer. A pergunta que falta fazer é: o que levou a sua família a abandonar Moçambique em 1974/75? A honestidade da resposta a esta pergunta é crucial para começarmos a curar os pecados do colonialismo e o veneno da "narrativa retornada". A verdade é que a esmagadora maioria dos retornados de Moçambique abandonaram o país porque não queria ser "governada por pretos"! Porquê? Aqui encontramos uma mistura de racismo, medo de represálias (se eram todos tão bons para com os pretinhos, tinham medo de quê?) e pavor do chamado comunismo. A resposta mais usada em geral é que os "turras" iam "matar-nos e violar as nossas mulheres, por isso tivemos que fugir e deixar tudo para trás".
A História mostra quão isto é falso. Talvez tenham ficado em Moçambique uns 20 mil brancos de origem portuguesa. Muitos tornaram-se ministros, diretores nacionais, diretores de escolas, diretores de hospitais, diretores de empresas, etc. Este não é, de certo, um quadro de vingança, retaliação, perseguição. Aliás, este "acarinhamento" dos "brancos que ficaram" veio criar problemas à liderança da FRELIMO, mais tarde, mas isso são outros quinhentos.
Posto isto tudo, vamos ser honestos: se os que agora chegam (ou regressam), não têm culpa dos que os seus antepassados fizeram, pelo menos reconheçam o que eles fizeram, que deixaram cicratizes, que nunca reconheceram o mal que fizeram e que, pelo contrário, até hoje acham-se injustiçados e incompreendidos. Sem isso, nunca haverá reconciliação. Pois é da necessidade de reconciliação que se trata. E como bons católicos, de certo a maioria dos portugueses está familiarizada com o conceito do perdão e da redenção com base na confissão.
 
(*) Por Miguel de Brito, Académico moçambicano
Imagem de Ricardo Rangel: Menino guardador de gado no sul de Moçambique, a quem chamavam “o oito” porque tinha uma marca na testa com a forma de um 8 deitado. Um dia, Ricardo Rangel soube que um criador de gado colonialista tinha marcado o seu jovem guardador de gado com o ferro em brasa, que usava para marcar o seu gado, por ele ter perdido um dos seus bois. Então, Rangel foi para Changalane e procurou o jovem durante dois dias até finalmente o encontrar. Fotografou-o. O patrão do menino queria dar-lhe um tiro, mas Rangel, armado com a sua máquina fotográfica, não teve medo das armas do patrão daquele menino.Como Ricardo Rangel disse, a fotografia foi sempre a sua arma para defender, dignificar e eternizar o povo.


Hoje é comum ouvir: eu também sou moçambicana, também lá nasci e hoje estou de volta para ajudar esta terra que me viu nascer. A pergunta que falta fazer é: o que levou a sua família a abandonar Moçambique em 1974/75?
See translation
Like · · · · 3 hours ago
  • José de Matos Vivemos na era da globalizaçao e da livre circulaçao, irrelevante porque sairam ou regressam a terra, cada um tem as suas opçoes e razoes, existem centenas de milhares de moçambicanos em toda a parte, uns regressam, outrs nao e outros so visitam, sao escolhas pessoais. Certamente que muitos sairam por motivos bem fortes, nao tem nada a ver com o amor a Patria!
  • Jorge David Alves Duarte Claro, nao e porque se sai do seu pais de origem que hoje nao pode dizer que nao e da terra.... houve muita gente que saiu, por obrigacao dos pais....
    houve diversas razoes.... Nao e por isso que agora nao pode dizer que nao e mocambicana!!!
  • Nuria Waddington Negrao José de Matos e Jorge David Alves Duarte leiam o artigo antes de comentarem. A tese do autor não é que uns são moçambicanos e outros não, a tese do autor é:

    "Posto isto tudo, vamos ser honestos: se os que agora chegam (ou regressam), não têm culpa do
    s que os seus antepassados fizeram, pelo menos reconheçam o que eles fizeram, que deixaram cicratizes, que nunca reconheceram o mal que fizeram e que, pelo contrário, até hoje acham-se injustiçados e incompreendidos. Sem isso, nunca haverá reconciliação. Pois é da necessidade de reconciliação que se trata. E como bons católicos, de certo a maioria dos portugueses está familiarizada com o conceito do perdão e da redenção com base na confissão."

    Ignorar as realidades do passado e não reconhecer que as vitimas foram realmente vitimas é renovar a violência contra as mesmas.
  • José de Matos Nuria Waddington Negrao, eu li o artigo todo ontem, em diferentes sitios, e a minha posiçao é sempre a mesma , nunca alinharei com generalizaçoes, os que nao reconhecem os males e as injustiças que reconheçam, eu fui contra o colonialismo, o fascismo e o racismo, eu tenho gritado bem alto contra esses cancros, nao vejo porque tenha de carregar culpas que nao sao minhas.
    Nuria, o mote deste artigo é este:
    "Hoje é comum ouvir: eu também sou moçambicana, também lá nasci e hoje estou de volta para ajudar esta terra que me viu nascer. A pergunta que falta fazer é: o que levou a sua família a abandonar Moçambique em 1974/75?"
    A minha resposta tem a ver com esta parte, cada um tem as suas razoes para sairem ou regressarem, o curioso é que quem fez esta postagem tambem numa determinada fase da sua vida, saiu e regressa quando entender, é a sua casa, nao tem de justificar!
  • Nuria Waddington Negrao Ok José de Matos, então estamos na mesma onda.
  • José de Matos Estamos sim, Nuria Waddington Negrao nao tenho a minima duvidas, so que estamos a ler o texto de perspectivas diferentes. Eu estou ciente de muitos cancros que corroeram o Povo moçambicano, a escravatura, o colonialismo-fascismo, etc., foram horriveis, possivelmente tambem fui beneficiado pelo sistema, mas nao podemos carregar todos essas culpas, é impensavel culpar os joovens alemaes pelo Holocausto, os japoneses pelas barbaridades da Grande Guerra, os portugueses e espanhois pela longa noite fascista, etc. Agora, se muitos ainda teem ideias retrogradas e nao querem mudar, entao esses sim, devem ser desmascarados. Nao podemos é por todos debaixo de suspeita so porque sairam, regressam ou nao regressam. Um pensamento final: Moçambique hoje é muito diferente do Moçambique dos anos 70.
  • Nelinha Santos Miranda Brito Inacio Mandlate,és muito novo.Aprende a amar a tua terra e o teu povo e só assim compreenderás os outros.Queres saber porque me vim embora?Porque tinha 14 anos quando se deu o 25 de Abril(era menor) e a tropa da Frelimo que entrou na zambézia era constituída maioritáriamente por cubanos,muitos deles tendo a minha idade e outros mais novos.Todos eles se faziam acompanhar por Kalashnikov.Um dia,ía eu com a minha mãe e uma sobrinha de 3 anos,quando um nos apontou a arma e disse que brevemente nós(eu e minha sobrinha) seríamos dele.O QUE FARIAS TU COMO PAI?NÃO PODIAS FAZER QUEIXA,NÃO PODIAS FAZER NADA.O QUE FARIAS?ESPERAVAS QUE ABUSASSEM DAS TUAS FILHAS???????????????Perante isto a minha mãe trouxe-nos para Portugal,mas o meu pai ficou aí.Condenei-a muitos anos por me ter afastado da minha terra,dos meus amigos,do povo que eu amava e amo.Com o tempo fui entendendo a sua acção.Segui aqui os estudos,porque na minha terra deixou de haver ensino e aqui fiz a minha vida.Todos os dias recordo as minhas origens,todos os dias eu sei que amo Moçambique e sofro com certas notícias,muitos dias choro de saudades.LÊ COM ATENÇÃO O PORQUÊ DE EU NÃO TER CONTINUADO AÍ E VÊ SE AMAS MOÇAMBIQUE TANTO OU MAIS QUE EU.Já aí não vou há 38 anos e espero ir de férias visitar o meu Moçambique.Espero descalçar-me e pisar esse chão(não tenho medo das matacanhas),espero entrar numa palhota e sentar-me a comer com as mãos.Espero abraçar as crianças da minha terra,crianças que continuo a ajudar para que tenham possibilidades de estudar.CRESCE Miranda Brito Inacio Mandlate,CRESCE E PENSA QUE TODOS TEMOS QUE PERDOAR A TODOS,ATÉ AOS NOSSOS PAIS.
  • Miranda Brito Inacio Mandlate Nelinha Santos agradeco por partilhares connosco a sua historia mas aqui a minha intencao nao e provocar inimizade. Aqui so partilhei uma das noticias da RM e fiz o copy paste de um parte do contesto. Nao ha motivos de estar magoada, esse e so um tipico e e para ser debatido como todos topicos partilhados aqui no grupo.
  • Antonio Carlos Pinto Ferreira O problema Nelinha e que o Mandlate e de outra geracao . O que nos temos e um conflito de geracoes e portanto dificuldade de comunicacao. Ele aprendeu a ler por textos revolucionarios que so condenavam o colono. O que me admira agora e quem tem culpa do que sucede? Ha quem pense que os brancos nascidos em Mocambique nao podem ser mocambicanos. Mas outros nascidos na Tanzania, China , Russia, Argelia e Franca podem ser. Faz algum sentido?

Sem comentários: