VIOLÊNCIAS LUSÓFONAS: ANGOLA, MOÇAMBIQUE
Presente desde o século XV nas costas africanas, Portugal só tardiamente
empreendeu a colonização do imenso império (vinte e cinco vezes a sua super-fície...) que as rivalidades europeias lhe permitiram talhar no continente negro.
Esta tardia e superficial ocupação do espaço não facilitou certamente a difusão de
um sentimento de dependência homogénea no interior dos territórios. As
organizações que se lançaram na luta armada no início dos anos sessenta tiveram
de apoiar-se, no seio das populações não brancas, num sentimento anticolonial
certamente mais virulento do que as suas eventuais aspirações nacionais
47
.
Conscientes dos obstáculos com os que se deparava o seu jacobinismo, as
direcções nacionalistas concederam rapidamente uma forte atenção ao inimigo
interno48 — chefes tradicionais, colaboradores do colonizador, dissidentes
políticos — acusado de prejudicar a pátriaem perigo. Estes traços característicos
de uma cultura política que o duplo código genético salazarista e estalinista não
predispunha ao culto da democracia representativa iam acentuar-se a despeito da
partida precipitada da potência tutelar.
A REPÚBLICA POPULAR DE ANGOLA
No momento em que, para grande fúria da população branca, os oficiais no
poder em Lisboa se manifestam a favor da independência das colónias a 27 de
Julho de 1974, o exército português continua senhor do terreno angolano. O seu
descomprometimento precipitado abre caminho às três organizações
independentistas: Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), Frente
Nacional de Libertação de Angola (FNLA) e União para a Independência Total
de Angola (UNITA). A 15 de Janeiro de 1975, a nova República Portuguesa
reconhece-os, quando da assinatura dos acordos de Alvor sobre a independência,
como «os únicos representantes legítimos do povo angolano». O calendário é
prometedor: eleições para a Constituinteno prazo de nove meses; proclamação
da independência a 11 de Novembro de 1975. Todavia, enquanto o êxodo de 400
000 portugueses se acelera de Fevereiro a Junho de 1975, a viabilidade da
coligação governamental (na qual o MPLA
47
Consultar sobre este ponto os trabalhos de Michel Cahen, e nomeadamente a sua polémica
com Elísio M. Macamo in Lusotopie, 1996, pp. 365-378.
48
Alex Vines, Renamo, Terrorism in Mozambique, Centre for Southern African Studies, Uni-versity of York, 1991, p. 5.
789
se instalou na Informação, na Justiça e nas Finanças) aparece rapidamente como
um logro. Os incidentes sangrentos multiplicam-se e o cessar-fogo de Nakuru, a
14 de Junho, é somente uma trégua aproveitada por cada movimento para
acumular forças e preparar a intervenção dos seus aliados estrangeiros.
Desde Outubro de 1974, as armas soviéticas vêm aumentar o potencial das
milícias do MPLA, que beneficiavam também do apoio da ala esquerda do
exército português, reagrupado no Movimento das Forças Armadas (MFA).
Influenciados pelo Partido Comunista Português, estes sectores podem então
contar com a presença em Luanda, desde Maio de 1974, do «almirante vermelho»
Rosa Coutinho. No mês de Março de 1975, os primeiros elementos cubanos e
soviéticos desembarcam em Angola. Fidel Castro explicará a posteriori a
decisão: «A África é hoje o nó fraco do imperialismo. É lá que existem
perspectivas excelentes para se poder passar do tribalismo ao socialismo sem ter
de percorrer as várias etapas que tiveram de atravessar algumas outras regiões do
mundo
49
.» Depois da dissolução do governo (8-11 de Agosto), o Vietnam
Heróico acosta a Luanda: a bordo, várias centenas de soldados (negros, na sua
maioria). Já são 7000 quando, a 23 de Outubro, a União Sul-Africana intervém
maciçamente ao lado da UNITA, doravante relegada pelo Pravda para o estatuto
de «força fantoche, armada pelos mercenários da China e da CIA com o auxílio
dos racistas sul-africanos e rodesianos»
50
. A análise não é, certamente, destituída
de pertinência. Modelada no torno maoísta, a direcção da UNITA tem
efectivamente um agudo sentido de pacto com o diabo. Na circunstância, o
bricabraque do inventário dos apoios da UNITA vem inscrever-se no panteão do
realismo lenino-estalinista; o caminho que havia de conduzir Savimbi até junto de
Pick Botha nada teve que possa desorientar os defensores do pacto germano-soviético de 1939. De momento, porém, a logística aeronaval sovieto-cubana
revela-se determinante para a sobrevivência do regime. A 11 de Novembro de
1975, MPLA e UNITA proclamam cada um pelo seu lado a independência do
país
51
, enquanto se desenha um novo mapa daquela que era a pérola do Ultramar
português: o MPLA domina os portos, o petróleo e os diamantes, isto é, grosso
modo, o litoral; os seus rivais (entre os quais a UNITA conquista em breve a
supremacia) apoiam-se no Norte e, sobretudo, nos planaltos centrais.
A identificação dos protagonistas torna-se a partir de então mais fácil aos
olhos dos Ocidentais, como aliás dos comunistas da Africa austral. Para
49
Entrevista à Afrique Asie, n.° 135, 16 de Maio de 1977. In Pietre Beaudet (dir.), Angola, bilan
d'un socialisme de guerre, Paris, 1'Harmattan, 1992.
50'Pravda, 5 de Novembro de 1975. In Branko Lazitch, Pierre Rigoulot, «Angola 1974-1988.
Un échec du communisme en Afrique», suplemento de Est et Ouest, n.° 54, Maio de 1988.
51
A denominação «República Popular de Angola», única reconhecida por Portugal em 1976, a
UNITA e a FNLA juntam o adjectivo «Democrática».
790
o dirigente moçambicano Samora Machel, o carácter implacável da luta inscreve-se na configuração das forças: «Em Angola,há duas partes que se confrontam:
por um lado, o imperialismo e os seus aliados e fantoches; por outro, as forças
progressistas que apoiam o MPLA. Nada mais
52
.» Líder incontestado do
Movimento, Agostinho Neto é negro, antigo assimilado, proveniente de uma
família de pastores protestantes e «organizado» pelo PC Português, de pró-sovietismo comprovado, desde os anos cinquenta. Fundado em 1956, o MPLA
fundiu, no decurso das estadas que se multiplicaram na URSS ao longo dos anos
sessenta, um bom número dos seus quadros dirigentes (como J. Mateus Paulo ou
A. Domingos Van Dunem) no molde marxista-leninista que então vigorava. Ao
estudo do socialismo científico juntava-se, para alguns deles (J. Njamba
Yemina), uma formação militar adequada, na União Soviética ou nas escolas de
guerrilha de Cuba. É na sequência da tomada do poder que o Congresso de
Luanda (4-10 de Dezembro de 1977) compreende a necessidade da passagem de
um movimento de tipo frentista para uma estrutura de vanguarda decalcada do
modelo bolchevique e apta a assumir o estatuto de «partido irmão» no
movimento comunista internacional. Com efeito, o novo «MPLA-Partido do
Trabalho» foi de imediato reconhecido por Raul Castro, presente no Congresso,
como o único «capaz de exprimir correctamente os interesses do povo
trabalhador».
A concepção de um Estado «instrumento capaz de aplicar as orientações
definidas pelo Partido único» implicava para o novo partido uma vigilância
acrescida relativamente às formações rivais, prontas a camuflar a sua natureza
contra-revolucionária por detrás de uma fraseologia esquerdista, bem como um
centralismo democrático a toda a prova. Não é de espantar, pois, que se assista ao
ressurgimento nas latitudes austrais de práticas anti-desviacionistas até então
reservadas ao hemisfério norte. Antes mesmo da oficialização do bolchevismo
angolano, Neto já tinha uma considerável experiência nesta área. Quando, em
Fevereiro de 1975, subjugou (com o apoio das tropas portuguesas) a facção
«Revolta do Leste» animada pelo quadro ovimbundu Daniel Chipenda, o
episódio permitiu a este último uma denúncia das liquidações perpetradas contra
dissidentes do MPLA desde 1967. Decifra-se então melhor o comunicado
publicado pelo Movimento em Fevereiro de 1974, segundo o qual este tinha
«frustrado e neutralizado» a conspiração da contra-revolução interna que «visava
a eliminação física do seu presidente e de muitos dos seus quadros»
53
.
Ministro da Administração Interna, rival de Neto, Nito Alves encon-trava-se em Luanda quando dos acontecimentos de 25 de Abril de 1974,
52B. Lazitch, P. Rigoulot, op. cit., p. 33.
53Líbération-Afrique, n.° 9, Março de 1974.
791
que significaram o dobre de finados do regime colonial. Na ausência da direcção
exterior, conseguiu conquistar uma audiência não neglicenciável junto dos negros
urbanizados, negando nomeadamente aos brancos a nacionalidade angolana,
salvo comportamento anticolonialista confirmado. Apoiou-se numa rede de
comités de bairro, em nome de um «Poder popular» para cuja conquista não
recuou perante as práticas mais estalinistas, pouco susceptíveis, aliás, de
surpreender as suas vítimas, geralmente de obediência maoísta
54
. Seguro das
garantias que certamente lhe foram dadas pelos Soviéticos, pelos Cubanos e
pelos comunistas portugueses, ensaiou um golpe de força a 27 de Maio de 1977
para tentar evitar a depuração desencadeada pouco T:empo antes contra os seus
partidários. Enquanto o fracasso da operação se tornava patente (nomeadamente
em virtude da política de espera dos conselheiros estrangeiros de Nito Alves),
Neto tomou a palavra na rádio: «Penso que o nosso povo irá compreender as
razões pelas quais estamos a actuar com uma certa dureza contra aqueles que
estão relacionados com estes acontecimentos.» Acusados de «racismo, de
tribalismo e de regionalismo», os desviacionistas foram objecto de uma
depuração radical. Enquanto o Comité Central e o aparelho eram profundamente
remodelados
55
e os confrontos ensanguentavam a capital, a repressão alargava-se
às capitais provinciais: em Ngunza (Cuanza Sul), 204 desviacionistas teriam sido
abatidos apenas na noite de 6 de Agosto
56
, o que iria dar alguma credibilidade aos
números avançados depois de 1991 pelos sobreviventes, segundo os quais o
MPLA teria realizado uma depuração de vários milhares dos seus membros nessa
altura. Os comissários políticos das FAPLA (Forças Armadas) foram igualmente
alvo da vigilância de Sapilinia, membro do Comité Central que chefiou
pessoalmente a respectiva liquidação em Luena (Moxico)
57
.
A relativa popularidade de Nito Alves era mantida pela denúncia, nas
colunas do Diário de Luanda e nos programas de rádio «Kudibanguela» e «Povo
em Armas», da degradação das condições de vida. Estas fontes deixam entrever a
existência de penúrias alimentares cruéis (a expressão «fome» é utilizada pelos
nitistas) em certas regiões. As mesmas fontes denunciam um estado de
esgotamento dos assalariados urbanos ainda em actividade e controlados pelo
regime: uma lei de Novembro de 1975 e um decreto de Março de 1976 tinham
vindo garantir a disciplina no aparelho produtivo;
54
Ver um ponto de vista trotskista informado in Claude Gabriel, Angola, le tournant africain?,
Paris, La Brèche, 1978.
55
Em trinta membros, cinco foram fuzilados (como Nito Alves), três desapareceram em cir
cunstâncias pouco claras e dois foram excluídos. Cf. Lazitch, Rigoulot, op. cit., p. 21.
56
Segundo a revista trotskista portuguesa Acção Comunista, citada por C. Gabriel, op. cit.,
p. 329.
57
Ibid.
792
a greve extra-sindical (ou seja, antipartido) é equiparada a um crime em virtude
das palavras de ordem «produzir e resistir». Aparecem, pois, (apesar da sua
instrumentalização burocrática) formas decontestação que já não se satisfazem
com a denúncia ritual da desorganização provocada pelo êxodo branco e pela
guerra. Próspera desde os anos sessenta, a economia angolana desmoronou-se
literalmente a partir de 1975, e o controlo estatal do sistema esconde cada vez
mais dificilmente uma dolarização generalizada: monopólio partidário e
capacidade de acesso a uma divisa que senegoceia a cinquenta vezes o seu curso
oficial conjugam os seus efeitos no aparecimento de uma nomenklatura bastante
indiferente às condições de existência do «povo trabalhador». Ninguém tem
capacidade, durante cerca de uma dezena de anos, para avaliar a situação
alimentar em imensas zonas do território. Enquanto o governo consegue desligar
o mercado urbano — alimentado pelo rendimento petrolífero — dos produtores
locais, o Estado descura os campos afectados pela guerra e pressionados pelos
dois lados na medida das necessidades de recrutamento. O termo «fome»,
cuidadosamente afastado até então pelos meios oficiais, ressurgiu em 1985 sob a
forma de um aviso da FAO. Quando das grandes autocríticas desencadeadas pela
perestroika soviética, o governo angolano reconhecerá então a gravidade de uma
situação que culminava na conclusão formulada pela UNICEF no início de 1987
segundo a qual várias dezenas de milharesde crianças haviam morrido de fome
no decurso do ano anterior.
Rico graças ao domínio do enclave petrolífero de Cabinda
58
, mas pobre em
recursos administrativos, militares e militantes, o regime pôde dedicar poucos
recursos aos seus projectos de colectivização e de aldeamento rurais. Tal como se
apresentavam, foram sentidos como uma ameaça por importantes sectores
campesinos. Principalmente as colectas fiscais, a insuficiência dos investimentos
públicos, os entraves à comercialização, o encerramento dos pontos de
escoamento urbanos provocaram um recuo rural. Treze anos depois da
independência, o Estado angolano publicou num relatório oficial
59
a posição do
agrónomo René Dumont, que denunciava em linguagem compreensível para os
seus interlocutores a «troca desigual» que espolia os camponeses das suas «mais-valias». Esta situação transformou-se rapidamente em hostilidade contra um
mundo litoral dominado pela cultura (marxizante no caso) dos assimilados e
mestiços, muito presentes no topo do MPLA.
58
Anexada a Angola em 1956 por Portugal, Cabindaestá separada do resto do país pela foz
(zairense) do Congo. A sua população (baconga), aliciada pela ideia de uma independência baeada nas
royalties do petróleo, é mantida em respeito, a partir de 1975, por 10 000 homens das FAPLA e 2000
cubanos.
59
Síntese do plano de recuperação económica a nível global para o biénio 1989-90, República
Popular de Angola, 1988. In P. Baudet, op. cit., p. 64.
793
Foi nesta base, reforçada por um ódio ao estrangeiro cubano, russo, leste--alemão
ou norte-coreano
60
, que a UNITA de Jonas Savimbi pôde — apesar de os seus
homens praticarem sem moderação a arte de viver à custa do habitante —
beneficiar de um apoio crescente muito para além das terras dos Ovimbundos
que representavam a sua base étnica à partida. Nestas condições, mais do que
uma guerra de tipo estalinista conduzida pelo MPLA contra o campesinato, seria
mais rigoroso referir, no caso angolano, uma «guerra camponesa», noção que
coloca os protagonistas em posição simétrica mais em conformidade com a
relação de forças existentes no terreno.Apoiados pela administração Reagan mas
impregnados de cultura maoísta, os dirigentes da UNITA servem-se, aliás,
alegremente da retórica da oposição cidade/campo, denunciando em nome do
«povo africano» a «aristocracia mestiça» do MPLA
61
. Torna-se no entanto difícil
avaliar a dimensão, em vésperas das convulsões no Leste, da ligação camponesa
a Savimbi. No seguimento do descomprometimento sul-africano e cubano que se
seguiu aos acordos de Nova Iorque de 22 de Dezembro de 1988, a conversão do
MPLA produziu os efeitos esperados. A adopção pela sua direcção, em Julho de
1990, da economia de mercado, bem comoa aceitação do pluralismo partidário
implicaram, quando das eleições de 1992, a derrota da UNITA.
O inegável desenvolvimento desta organização no decurso dos quinze
primeiros anos de independência era essencialmente o sintoma de uma reacção de
rejeição face ao Estado-MPLA, ela mesma mais fruto do traumatismo provocado
por quinze anos de desestruturação das trocas, de recrutamentos forçados e de
deslocações maciças de populações, do que da ausência de garantias judiciais que
presidiu à repressão maciça dos opositores. O período de transição para o
pluripartidarismo foi, aliás, pouco propício à investigação das responsabilidades
em matéria de violação dos direitos humanos, e os membros da polícia política
— com frequência provenientes, como na URSS, de etnias minoritárias — nunca
tiveram de responder pelas suas actividadesanteriores, em razão da continuidade
governamental. Com excepção das pequenas formações em que se agrupavam os
que tinham escapado às depurações, nenhum dos dois grandes partidos julgou
oportuno exigir que fosse feita luz sobre as dezenas de milhares de vítimas cujo
destino não estivera, para manter a sobriedade própria dos relatórios da Amnistia
Internacional, «em conformidade com as normas de equidade internacionalmente
reconhecidas».
"' Como faz notar Jean-François Revel no seu prefácio ao texto de B. Lazitch e P. Rigoulot (op.
cit.), «os sovieto-cubanos estão lá para impor a Angola o sistema comunista, ao passo que não se põe
a questão, e isso seria inconcebível, de a Africa do Sul exportar para Angola o sistema do apartheid».
61
Christine Messiant, «Angola, les vois del'éthnisation et de la décomposition», Lusotopie 1-2,
1994.
794
MOÇAMBIQUE
A 25 de Setembro de 1974, os militares portugueses ainda não tinham
instituído o pluripartidarismo em Lisboa quando confiaram os destinos de
Moçambique exclusivamente à Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo).
Fundada em Junho de 1962
62
, a Frente soubera, sob a autoridade do doutor (em
antropologia) Eduardo Chivambo Mondlane, conquistar as simpatias da
comunidade internacional e beneficiar do apoio militar tanto da China como da
URSS. Ao contrário do que acontecera em Angola, a Frelimo tinha conseguido,
antes da «revolução dos cravos» portuguesa(25 de Abril de 1974), colocar em
dificuldade as tropas coloniais, aliás maioritariamente compostas por africanos
63
.
Agrupando uma parte notável das elites intelectuais nacionalistas, a Frente
reflecte as divisões ideológicas que a atravessam. Em 1974, porém, já não é
possível ocultar a impregnação mar-xista-leninista da sua direcção. Depois do seu
II Congresso (1968), o significado do combate anti-imperialista, desenvolvido
por Samora Machel segundo a lógica chinesa das «zonas libertadas», aparecia
cada dia mais conforme à afirmação feita, pouco antes do seu desaparecimento
(1969), pelo próprio Mondlane: «Concluo hoje que a Frelimo é mais socialista,
revolucionária e progressista do que nunca e que a nossa linha é diariamente mais
orientada para o socialismo marxista-leninista.» E, interrogando-se sobre as
razões desta evolução, explicava: «Porque, nas condições de vida em
Moçambique, o nosso inimigo não nos deixa escolha.»
A seguir à independência, o inimigo pareceu querer conceder uma certa
pausa aos novos senhores. Estes últimos, em que o elemento urbano assimilado,
branco, mestiço ou indiano, era hegemónico, lançaram-se com entusiasmo na
obstetrícia nacional. Num país rural, a invenção da nação pressupunha, a seus
olhos, um enquadramento do Partido-Estado, única forma de garantir uma
política de «aldeamento» consequente, capaz, além disso, de engendrar o homem
novo, tão caro ao poeta Sérgio Vieira
64
. Já iniciada no começo dos anos setenta
nas «zonas libertadas», com resultados diversos, esta política foi sistematizada no
conjunto do território. Todos os rurais, a saber 80%
62 Em síntese, a Frelimo é o produto da fusão de organizações nacionalistas constituídas entre
os moçambicanos emigrados no Tanganica, na Rodésia e na Niassalândia. Consultar Luís de Brito,
«Une relecture nécessaire: la genèse du Parti-État Frelimo», Politique africaine, n.° 29, Março de
1988.
63 Acerca da fraqueza do nacionalismo moçambicano, ver Claude Cahen, «Sur quelques
mythes et quelques réalités de la colonisation etde la décolonisation portugaise», comunicação no
colóquio Décolonisations comparées, Aix-en-Provence, 30 de Setembro-3 de Outubro de 1993.
64Chrisrian Geffray, La Cause des armes au Mozambique. Anthropologie d'une guerre civile,
Paris, Karthala, 1990, p. 27.
795
da população, eram supostos abandonar o seu habitat tradicional a fim de se
reagruparem em aldeias. No entusiasmo da independência, as populações
responderam favoravelmente às solicitações da administração, cultivando cam-pos colectivos rapidamente abandonados nos anos seguintes, participando por
vezes na edificação das construções exigidas, sem contudo concordarem em lá
residir. No papel, porém, o país estava coberto por uma administração
hierarquizada, teoricamente sob controlo das células de um partido que, em
1977, tinha claramente reivindicado a herança bolchevique e apelado ao desen-volvimento da colectivização das terras e ao reforço dos laços com o movimento
comunista internacional. Tinham sido assinados diversos tratados com o Leste, e
o fornecimento de armamento e de instrutores parecia autorizar um apoio
acrescido aos nacionalistas rodesianos do Zimbabwe African National Union
(ZANU).
Numa altura em que Moçambique se associava ao bloqueio que ameaçava
estrangulá-la, foi como represália que a Rodésia branca de Ian Smith decidiu dar o
seu apoio à resistência que começava a aparecer nos campos. Sob a direcção de
Afonso Dhlakama, a Resistência NacionalMoçambicana (Renamo) beneficiou de
um apadrinhamento estreito dos serviços especiais rodesianos até à independência
do Zimbabwe, data a partir da qual a tutela logística passou a ser assegurada pela
África do Sul (1980). Para surpresa de numerosos observadores, a adesão à
resistência das populações aldeãs foi crescendo, a despeito dos métodos bárbaros
da Renamo, cuja acção assustava até os seus protectores rodesianos. Os fugidos
dos «campos de reeducação» que se tinham multiplicado a partir de 1975
65
sob a
férula do Serviço Nacional de Segurança Popular (SNASP) não eram os menos
violentos. Na falta de adesão, o controlo das populações tornava-se uma parada
vital para ambas as partes, e os raros estudos no terreno confirmam as observações
do Human Rights Watch66 quanto à amplitude e à bestialidade das exacções
cometidas pelos dois campos contra as populações civis. Menos enquadrada do
que a violência de Estado da Frelimo, a exercida pela Renamo não se resumiu a
acções contra as “grandes comoanhias” doravente entregues a si mesmas depois da
deserção dos seus responsáveis. O apoio que apesar de tudo lhe é concedido
exprime um ódio ao Estado cuja dimensão testemunha violências justificadas pela
Frelimo, numa linguagem estrangeira, em nome da luta contra o «tribalismo», de
um apego a práticas religiosas qualificadas de «obscurantistas», de uma fidelidade
continuada relativamente
b5
Um dos mais importantes agrupou dez mil testemunhas de Jeová emMalange, perto da
fronteira com o Malawi.
Conspicuous Desctruction. War, Famine & the Reform Process in Mozambique, Human Rights
Watch, Nova Iorque, 1992.
796
a linhagens de chefias tradicionais rejeitadas em bloco pelo regime depois da
independência sob o rótulo de «feudalismo»
67
.
As prerrogativas do SNASP tinham sido bastante aumentadas antes mesmo
de a amplitude da ameaça constituída pela Renamo ter sido percebida pelas
autoridades de Maputo. Criada em Outubro de 1975, a Segurança Popular estava
efectivamente habilitada a prender e deter qualquer pessoa suspeita de «ataque à
Segurança do Estado», noção que incluía os delinquentes económicos. O SNASP
fora fundado para levar essas pessoas a tribunal, e nesses casos encarregava-se da
instrução. Podia igualmente enviá-las directamente para um «campo de
reeducação». Negado aos detidos pelo artigo 115 do Código de Processo Penal, o
habeas corpus era só uma recordação (admitindo que a sua aplicação tenha sido
efectiva nos tempos salazaristas...) quandoo primeiro ataque de envergadura da
Resistência visou, em 1977, o campo dereeducação de Sacuze. As «ofensivas
pela legalidade», periodicamente conduzidas por Samora Machel, não limitaram
as prerrogativas do SNASP. Visavam pôr em concordância o facto com o direito;
tal foi a lógica da Lei 2/79 de 28 de Fevereiro de 1979 sobre os crimes contra a
segurança do povo e do Estado Popular, restabelecendo a pena de morte, abolida
em Portugal e em todas as suas colónias desde 1867. O castigo supremo não era,
aliás, sempre aplicado dentro das regras, e nomeadamente quando se tratava de
eliminar os dissidentes daFrelimo. Foi esse em especial o destino de Lázaro
Nkavandame, Joana Simião e Uria Simango, liquidados quando da sua detenção
em 1983 e cujo destino foi mantido secreto até que o Partido riscou o marxismo-leninismo da sua agenda
68
. Esse mesmo ano de 1983 foi igualmente marcado no
plano jurídico pelo encerramento da Faculdade de Direito Eduardo Mondlane, em
Maputo; a acreditar nos considerandos apresentados pelo governo, era
efectivamente claro que esse estabelecimento não preparava os juristas para
defenderem os direitos do povo mas unicamente os dos exploradores
69
. De um
modo geral, a intelligentsia caiu muito rapidamente num desencanto discreto,
tingido de servilismo relativamente à Associação dos Escritores Moçambicanos,
entregando-se em privado a comparações iconoclastas entre KGB, CIA e
SNASP
70
. Mais raros foram aqueles que, como o poeta Jorge Viegas, pagaram a
sua dissidência com o hospital psiquiátrico e depois com o exílio.
O endurecimento político então verificado andava a par, segundo uma
lógica já comprovada quando dos primeiros passos da Rússia soviética, de uma
67
Michel Cahen, «Check on Socialism in Mozambique. What Check? What Socialism?»,
Review ofAfrican Politicai Economy, n.° 57, 1993, p. 54.
68
V Congresso da Frelimo, Julho de 1989.
69 Moçambique, independência e direitos humanos, Amnesty International, 1990, p. 24.
70 Michel Laban, «Écrivains et pouvoir politiqueau Mozambique après 1'indépendance»,
Lusotopie, 1995.
797
abertura económica. Indubitavelmente, esta não tinha necessidade de uma maior
abertura face ao estrangeiro, uma vez que os investimentos ocidentais foram
sempre bem recebidos, como convém a um país de «orientação socialista» ao
qual a URSS recusou a entrada no Comecon
71
. O IV Congresso (1983) voltou a
sua atenção para a população rural, pondo fim à política de colectivização, de
efeitos desastrosos. Ao fazer uma das denúncias de que tanto gostava, Samora
Machel deixou as coisas muito claras: «Não esqueçamos o facto de que o nosso
país é antes de mais constituído por camponeses. Nós persistimos em falar da
classe operária e relegamos para segundo plano a maioria da população
72
.» Cada
incêndio de palhotas pelas milícias governamentais, por ordens (teóricas) de
superiores hierárquicos preocupados com as quotas de aldeamento, reforçava
automaticamente a Renamo. Além disso, a desestruturação dos sistemas de
cultivo, a degradação das condições de troca bens de consumo/culturas
alimentares e a desorganização do comércio concorriam para um agravamento
das dificuldades de alimentação.
Não parece que a arma da fome tenha sido utilizada de forma sistemática,
tanto pelas autoridades como pela Renamo. No entanto, o controlo do auxílio
alimentar representou para a Frelimo um trunfo essencial para o reagrupamento
das populações que os dois campos disputavam. Por este facto, a concentração
improdutiva de agricultores colocados perante a impossibilidade de regressarem
às suas terras era ela mesma geradora dedificuldades alimentares futuras. No
total, segundo a Human Rights Watch, a insuficiência das rações globalmente
disponíveis durante o período de 1975-1985 esteve na origem de uma quantidade
de mortos superior à causada pela violência armada
73
. A avaliação é confirmada
pela UNICEF, que estima em seiscentos mil o número de vítimas da fome no
decurso da década em causa e não hesita em esboçar uma comparação com a
Etiópia. A ajuda internacional traduziu--se para muitos na sobrevivência das
populações expostas. Em Janeiro de 1987, o embaixador dos Estados Unidos em
Maputo enviou ao Departamento de Estado um relatório que quantificava em três
milhões e meio o número de moçambicanos ameaçados pela fome
7
^,
desencadeando um auxílio imediato de Washington e de várias organizações
internacionais. No entanto, as zonas mais isoladas e expostas às instabilidades
climatéricas foram vítimas de fomes
71
Ver Michel Cahen, Mozarnbique, la révolution implosée, Paris, CHarmattan, 1987, pp. 152-
-154.
72
Discurso do presidente Samora Machel nasessão de Dezembro de 1985 da Assembleia
Popular. In M. Cahen, Mozarnbique, la révolution implosée, op. cit., p. 163.
73
Conspicuous Destruction, op. cit., p. 4. A UNICEF estima em 600 000 o número de víti
mas da fome para a década considerada e considera esta quantidade comparável à da Etiópia,
somente no período de 1984-1985.
74Jean-François Revel, «Au Mozarnbique aussi, lemarxisme-léninisme engendre la famine»,
Est & Ouest, n.° 40, Março de 1987.
798
brutalmente mortíferas de amplitude dificilmente estimável, como a região de
Memba, onde, segundo as organizações humanitárias, oito mil pessoas morreram
de fome na Primavera de 1989.
75
Nas áreas abrangidas pela solidariedade
estrangeira, o mercado retomou rapidamente os seus direitos. É, em todo o caso,
uma das ilações de um relatório da Comunidade Europeia
76
de 1991, do qual
ressalta que somente 25% da ajuda alimentar eram vendidos ao preço acordado,
ficando 75% nas mãos do aparelho político-administrativo o qual, depois da
punção de rigor, negociava os excedentes no mercado paralelo. O homem novo
que Samora Machel e os seus teimavam em construir era bem «o produto
patológico deste compromisso, o qual, no sujeito individual, é vivido como
desonra, mentira, loucura esquizofrénica. Quer viver, mas para isso tem de
dividir-se, levar uma vida escondida e verdadeira e uma vida pública e falsa,
querer a segunda para proteger a primeira, mentir incessantemente para guardar
algures um cantinho de verdade»
77
.
O repentino desmoronamento dos Partidos-Estado de Leste levou, num
movimento muito natural, a prestar maisatenção à sua fraqueza e a acentuar a
resistência das sociedades civis. Embora, no decorrer dos quinze anos consi-derados, a caracterização pública do comunismo africano como «legitimação
política moderna»
78
pudesse ter tido consequências dolorosas para um uni-versitário autóctone, esta percepção nem por isso deixa de concervar a sua carga
explicativa. A pouca duração da experiência africana, conjugada com a
percepção dominante de uma Africa tautologicamente votada à violência em
razão da sua própria africanidade, poderia levar a esbater — a despeito das
nossas precauções iniciais — os contornos do nosso tema. A fim de resistir à
tentação, não é sem dúvida inútil invertera perspectiva. Se é verdade que a
especificidade da violência observada nos Estados de obediência mar-xista-leninista dificilmente sobressai num continente marcado pelo partido único, as
chacinas e a fome não serão devidos, como escrevia A. Mbembe, ao facto de que,
embora os países africanos «tenham sido colonizados e conduzidos à
independência pelas potências ocidentais, foram definitivamente os regimes de
tipo soviético que lhes serviram de modelo», não tendo os esforços de
democratização «modificado a natureza profundamente leninista dos Estados
africanos»?
75 C. Geffray, La Cause des armes, op. cit., p. 209.
76H. Gebaver, «The Subsiddized Food Distribution System in Mozambique and its Socio-Economic Impact», Technical Assistance, EC Food Security Department, Maputo, 1991. In Con-spicuous Destruction, op. cit., p. 120.
77 Alain Besançon, «La normalité du communisme selon Zinoviev», Pouvoirs, n.° 21, 1982.
78 Jean Leça, in C. Cahen, Mozambique, la révolution implosée, op. cit., p. 161.
799
Presente desde o século XV nas costas africanas, Portugal só tardiamente
empreendeu a colonização do imenso império (vinte e cinco vezes a sua super-fície...) que as rivalidades europeias lhe permitiram talhar no continente negro.
Esta tardia e superficial ocupação do espaço não facilitou certamente a difusão de
um sentimento de dependência homogénea no interior dos territórios. As
organizações que se lançaram na luta armada no início dos anos sessenta tiveram
de apoiar-se, no seio das populações não brancas, num sentimento anticolonial
certamente mais virulento do que as suas eventuais aspirações nacionais
47
.
Conscientes dos obstáculos com os que se deparava o seu jacobinismo, as
direcções nacionalistas concederam rapidamente uma forte atenção ao inimigo
interno48 — chefes tradicionais, colaboradores do colonizador, dissidentes
políticos — acusado de prejudicar a pátriaem perigo. Estes traços característicos
de uma cultura política que o duplo código genético salazarista e estalinista não
predispunha ao culto da democracia representativa iam acentuar-se a despeito da
partida precipitada da potência tutelar.
A REPÚBLICA POPULAR DE ANGOLA
No momento em que, para grande fúria da população branca, os oficiais no
poder em Lisboa se manifestam a favor da independência das colónias a 27 de
Julho de 1974, o exército português continua senhor do terreno angolano. O seu
descomprometimento precipitado abre caminho às três organizações
independentistas: Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), Frente
Nacional de Libertação de Angola (FNLA) e União para a Independência Total
de Angola (UNITA). A 15 de Janeiro de 1975, a nova República Portuguesa
reconhece-os, quando da assinatura dos acordos de Alvor sobre a independência,
como «os únicos representantes legítimos do povo angolano». O calendário é
prometedor: eleições para a Constituinteno prazo de nove meses; proclamação
da independência a 11 de Novembro de 1975. Todavia, enquanto o êxodo de 400
000 portugueses se acelera de Fevereiro a Junho de 1975, a viabilidade da
coligação governamental (na qual o MPLA
47
Consultar sobre este ponto os trabalhos de Michel Cahen, e nomeadamente a sua polémica
com Elísio M. Macamo in Lusotopie, 1996, pp. 365-378.
48
Alex Vines, Renamo, Terrorism in Mozambique, Centre for Southern African Studies, Uni-versity of York, 1991, p. 5.
789
se instalou na Informação, na Justiça e nas Finanças) aparece rapidamente como
um logro. Os incidentes sangrentos multiplicam-se e o cessar-fogo de Nakuru, a
14 de Junho, é somente uma trégua aproveitada por cada movimento para
acumular forças e preparar a intervenção dos seus aliados estrangeiros.
Desde Outubro de 1974, as armas soviéticas vêm aumentar o potencial das
milícias do MPLA, que beneficiavam também do apoio da ala esquerda do
exército português, reagrupado no Movimento das Forças Armadas (MFA).
Influenciados pelo Partido Comunista Português, estes sectores podem então
contar com a presença em Luanda, desde Maio de 1974, do «almirante vermelho»
Rosa Coutinho. No mês de Março de 1975, os primeiros elementos cubanos e
soviéticos desembarcam em Angola. Fidel Castro explicará a posteriori a
decisão: «A África é hoje o nó fraco do imperialismo. É lá que existem
perspectivas excelentes para se poder passar do tribalismo ao socialismo sem ter
de percorrer as várias etapas que tiveram de atravessar algumas outras regiões do
mundo
49
.» Depois da dissolução do governo (8-11 de Agosto), o Vietnam
Heróico acosta a Luanda: a bordo, várias centenas de soldados (negros, na sua
maioria). Já são 7000 quando, a 23 de Outubro, a União Sul-Africana intervém
maciçamente ao lado da UNITA, doravante relegada pelo Pravda para o estatuto
de «força fantoche, armada pelos mercenários da China e da CIA com o auxílio
dos racistas sul-africanos e rodesianos»
50
. A análise não é, certamente, destituída
de pertinência. Modelada no torno maoísta, a direcção da UNITA tem
efectivamente um agudo sentido de pacto com o diabo. Na circunstância, o
bricabraque do inventário dos apoios da UNITA vem inscrever-se no panteão do
realismo lenino-estalinista; o caminho que havia de conduzir Savimbi até junto de
Pick Botha nada teve que possa desorientar os defensores do pacto germano-soviético de 1939. De momento, porém, a logística aeronaval sovieto-cubana
revela-se determinante para a sobrevivência do regime. A 11 de Novembro de
1975, MPLA e UNITA proclamam cada um pelo seu lado a independência do
país
51
, enquanto se desenha um novo mapa daquela que era a pérola do Ultramar
português: o MPLA domina os portos, o petróleo e os diamantes, isto é, grosso
modo, o litoral; os seus rivais (entre os quais a UNITA conquista em breve a
supremacia) apoiam-se no Norte e, sobretudo, nos planaltos centrais.
A identificação dos protagonistas torna-se a partir de então mais fácil aos
olhos dos Ocidentais, como aliás dos comunistas da Africa austral. Para
49
Entrevista à Afrique Asie, n.° 135, 16 de Maio de 1977. In Pietre Beaudet (dir.), Angola, bilan
d'un socialisme de guerre, Paris, 1'Harmattan, 1992.
50'Pravda, 5 de Novembro de 1975. In Branko Lazitch, Pierre Rigoulot, «Angola 1974-1988.
Un échec du communisme en Afrique», suplemento de Est et Ouest, n.° 54, Maio de 1988.
51
A denominação «República Popular de Angola», única reconhecida por Portugal em 1976, a
UNITA e a FNLA juntam o adjectivo «Democrática».
790
o dirigente moçambicano Samora Machel, o carácter implacável da luta inscreve-se na configuração das forças: «Em Angola,há duas partes que se confrontam:
por um lado, o imperialismo e os seus aliados e fantoches; por outro, as forças
progressistas que apoiam o MPLA. Nada mais
52
.» Líder incontestado do
Movimento, Agostinho Neto é negro, antigo assimilado, proveniente de uma
família de pastores protestantes e «organizado» pelo PC Português, de pró-sovietismo comprovado, desde os anos cinquenta. Fundado em 1956, o MPLA
fundiu, no decurso das estadas que se multiplicaram na URSS ao longo dos anos
sessenta, um bom número dos seus quadros dirigentes (como J. Mateus Paulo ou
A. Domingos Van Dunem) no molde marxista-leninista que então vigorava. Ao
estudo do socialismo científico juntava-se, para alguns deles (J. Njamba
Yemina), uma formação militar adequada, na União Soviética ou nas escolas de
guerrilha de Cuba. É na sequência da tomada do poder que o Congresso de
Luanda (4-10 de Dezembro de 1977) compreende a necessidade da passagem de
um movimento de tipo frentista para uma estrutura de vanguarda decalcada do
modelo bolchevique e apta a assumir o estatuto de «partido irmão» no
movimento comunista internacional. Com efeito, o novo «MPLA-Partido do
Trabalho» foi de imediato reconhecido por Raul Castro, presente no Congresso,
como o único «capaz de exprimir correctamente os interesses do povo
trabalhador».
A concepção de um Estado «instrumento capaz de aplicar as orientações
definidas pelo Partido único» implicava para o novo partido uma vigilância
acrescida relativamente às formações rivais, prontas a camuflar a sua natureza
contra-revolucionária por detrás de uma fraseologia esquerdista, bem como um
centralismo democrático a toda a prova. Não é de espantar, pois, que se assista ao
ressurgimento nas latitudes austrais de práticas anti-desviacionistas até então
reservadas ao hemisfério norte. Antes mesmo da oficialização do bolchevismo
angolano, Neto já tinha uma considerável experiência nesta área. Quando, em
Fevereiro de 1975, subjugou (com o apoio das tropas portuguesas) a facção
«Revolta do Leste» animada pelo quadro ovimbundu Daniel Chipenda, o
episódio permitiu a este último uma denúncia das liquidações perpetradas contra
dissidentes do MPLA desde 1967. Decifra-se então melhor o comunicado
publicado pelo Movimento em Fevereiro de 1974, segundo o qual este tinha
«frustrado e neutralizado» a conspiração da contra-revolução interna que «visava
a eliminação física do seu presidente e de muitos dos seus quadros»
53
.
Ministro da Administração Interna, rival de Neto, Nito Alves encon-trava-se em Luanda quando dos acontecimentos de 25 de Abril de 1974,
52B. Lazitch, P. Rigoulot, op. cit., p. 33.
53Líbération-Afrique, n.° 9, Março de 1974.
791
que significaram o dobre de finados do regime colonial. Na ausência da direcção
exterior, conseguiu conquistar uma audiência não neglicenciável junto dos negros
urbanizados, negando nomeadamente aos brancos a nacionalidade angolana,
salvo comportamento anticolonialista confirmado. Apoiou-se numa rede de
comités de bairro, em nome de um «Poder popular» para cuja conquista não
recuou perante as práticas mais estalinistas, pouco susceptíveis, aliás, de
surpreender as suas vítimas, geralmente de obediência maoísta
54
. Seguro das
garantias que certamente lhe foram dadas pelos Soviéticos, pelos Cubanos e
pelos comunistas portugueses, ensaiou um golpe de força a 27 de Maio de 1977
para tentar evitar a depuração desencadeada pouco T:empo antes contra os seus
partidários. Enquanto o fracasso da operação se tornava patente (nomeadamente
em virtude da política de espera dos conselheiros estrangeiros de Nito Alves),
Neto tomou a palavra na rádio: «Penso que o nosso povo irá compreender as
razões pelas quais estamos a actuar com uma certa dureza contra aqueles que
estão relacionados com estes acontecimentos.» Acusados de «racismo, de
tribalismo e de regionalismo», os desviacionistas foram objecto de uma
depuração radical. Enquanto o Comité Central e o aparelho eram profundamente
remodelados
55
e os confrontos ensanguentavam a capital, a repressão alargava-se
às capitais provinciais: em Ngunza (Cuanza Sul), 204 desviacionistas teriam sido
abatidos apenas na noite de 6 de Agosto
56
, o que iria dar alguma credibilidade aos
números avançados depois de 1991 pelos sobreviventes, segundo os quais o
MPLA teria realizado uma depuração de vários milhares dos seus membros nessa
altura. Os comissários políticos das FAPLA (Forças Armadas) foram igualmente
alvo da vigilância de Sapilinia, membro do Comité Central que chefiou
pessoalmente a respectiva liquidação em Luena (Moxico)
57
.
A relativa popularidade de Nito Alves era mantida pela denúncia, nas
colunas do Diário de Luanda e nos programas de rádio «Kudibanguela» e «Povo
em Armas», da degradação das condições de vida. Estas fontes deixam entrever a
existência de penúrias alimentares cruéis (a expressão «fome» é utilizada pelos
nitistas) em certas regiões. As mesmas fontes denunciam um estado de
esgotamento dos assalariados urbanos ainda em actividade e controlados pelo
regime: uma lei de Novembro de 1975 e um decreto de Março de 1976 tinham
vindo garantir a disciplina no aparelho produtivo;
54
Ver um ponto de vista trotskista informado in Claude Gabriel, Angola, le tournant africain?,
Paris, La Brèche, 1978.
55
Em trinta membros, cinco foram fuzilados (como Nito Alves), três desapareceram em cir
cunstâncias pouco claras e dois foram excluídos. Cf. Lazitch, Rigoulot, op. cit., p. 21.
56
Segundo a revista trotskista portuguesa Acção Comunista, citada por C. Gabriel, op. cit.,
p. 329.
57
Ibid.
792
a greve extra-sindical (ou seja, antipartido) é equiparada a um crime em virtude
das palavras de ordem «produzir e resistir». Aparecem, pois, (apesar da sua
instrumentalização burocrática) formas decontestação que já não se satisfazem
com a denúncia ritual da desorganização provocada pelo êxodo branco e pela
guerra. Próspera desde os anos sessenta, a economia angolana desmoronou-se
literalmente a partir de 1975, e o controlo estatal do sistema esconde cada vez
mais dificilmente uma dolarização generalizada: monopólio partidário e
capacidade de acesso a uma divisa que senegoceia a cinquenta vezes o seu curso
oficial conjugam os seus efeitos no aparecimento de uma nomenklatura bastante
indiferente às condições de existência do «povo trabalhador». Ninguém tem
capacidade, durante cerca de uma dezena de anos, para avaliar a situação
alimentar em imensas zonas do território. Enquanto o governo consegue desligar
o mercado urbano — alimentado pelo rendimento petrolífero — dos produtores
locais, o Estado descura os campos afectados pela guerra e pressionados pelos
dois lados na medida das necessidades de recrutamento. O termo «fome»,
cuidadosamente afastado até então pelos meios oficiais, ressurgiu em 1985 sob a
forma de um aviso da FAO. Quando das grandes autocríticas desencadeadas pela
perestroika soviética, o governo angolano reconhecerá então a gravidade de uma
situação que culminava na conclusão formulada pela UNICEF no início de 1987
segundo a qual várias dezenas de milharesde crianças haviam morrido de fome
no decurso do ano anterior.
Rico graças ao domínio do enclave petrolífero de Cabinda
58
, mas pobre em
recursos administrativos, militares e militantes, o regime pôde dedicar poucos
recursos aos seus projectos de colectivização e de aldeamento rurais. Tal como se
apresentavam, foram sentidos como uma ameaça por importantes sectores
campesinos. Principalmente as colectas fiscais, a insuficiência dos investimentos
públicos, os entraves à comercialização, o encerramento dos pontos de
escoamento urbanos provocaram um recuo rural. Treze anos depois da
independência, o Estado angolano publicou num relatório oficial
59
a posição do
agrónomo René Dumont, que denunciava em linguagem compreensível para os
seus interlocutores a «troca desigual» que espolia os camponeses das suas «mais-valias». Esta situação transformou-se rapidamente em hostilidade contra um
mundo litoral dominado pela cultura (marxizante no caso) dos assimilados e
mestiços, muito presentes no topo do MPLA.
58
Anexada a Angola em 1956 por Portugal, Cabindaestá separada do resto do país pela foz
(zairense) do Congo. A sua população (baconga), aliciada pela ideia de uma independência baeada nas
royalties do petróleo, é mantida em respeito, a partir de 1975, por 10 000 homens das FAPLA e 2000
cubanos.
59
Síntese do plano de recuperação económica a nível global para o biénio 1989-90, República
Popular de Angola, 1988. In P. Baudet, op. cit., p. 64.
793
Foi nesta base, reforçada por um ódio ao estrangeiro cubano, russo, leste--alemão
ou norte-coreano
60
, que a UNITA de Jonas Savimbi pôde — apesar de os seus
homens praticarem sem moderação a arte de viver à custa do habitante —
beneficiar de um apoio crescente muito para além das terras dos Ovimbundos
que representavam a sua base étnica à partida. Nestas condições, mais do que
uma guerra de tipo estalinista conduzida pelo MPLA contra o campesinato, seria
mais rigoroso referir, no caso angolano, uma «guerra camponesa», noção que
coloca os protagonistas em posição simétrica mais em conformidade com a
relação de forças existentes no terreno.Apoiados pela administração Reagan mas
impregnados de cultura maoísta, os dirigentes da UNITA servem-se, aliás,
alegremente da retórica da oposição cidade/campo, denunciando em nome do
«povo africano» a «aristocracia mestiça» do MPLA
61
. Torna-se no entanto difícil
avaliar a dimensão, em vésperas das convulsões no Leste, da ligação camponesa
a Savimbi. No seguimento do descomprometimento sul-africano e cubano que se
seguiu aos acordos de Nova Iorque de 22 de Dezembro de 1988, a conversão do
MPLA produziu os efeitos esperados. A adopção pela sua direcção, em Julho de
1990, da economia de mercado, bem comoa aceitação do pluralismo partidário
implicaram, quando das eleições de 1992, a derrota da UNITA.
O inegável desenvolvimento desta organização no decurso dos quinze
primeiros anos de independência era essencialmente o sintoma de uma reacção de
rejeição face ao Estado-MPLA, ela mesma mais fruto do traumatismo provocado
por quinze anos de desestruturação das trocas, de recrutamentos forçados e de
deslocações maciças de populações, do que da ausência de garantias judiciais que
presidiu à repressão maciça dos opositores. O período de transição para o
pluripartidarismo foi, aliás, pouco propício à investigação das responsabilidades
em matéria de violação dos direitos humanos, e os membros da polícia política
— com frequência provenientes, como na URSS, de etnias minoritárias — nunca
tiveram de responder pelas suas actividadesanteriores, em razão da continuidade
governamental. Com excepção das pequenas formações em que se agrupavam os
que tinham escapado às depurações, nenhum dos dois grandes partidos julgou
oportuno exigir que fosse feita luz sobre as dezenas de milhares de vítimas cujo
destino não estivera, para manter a sobriedade própria dos relatórios da Amnistia
Internacional, «em conformidade com as normas de equidade internacionalmente
reconhecidas».
"' Como faz notar Jean-François Revel no seu prefácio ao texto de B. Lazitch e P. Rigoulot (op.
cit.), «os sovieto-cubanos estão lá para impor a Angola o sistema comunista, ao passo que não se põe
a questão, e isso seria inconcebível, de a Africa do Sul exportar para Angola o sistema do apartheid».
61
Christine Messiant, «Angola, les vois del'éthnisation et de la décomposition», Lusotopie 1-2,
1994.
794
MOÇAMBIQUE
A 25 de Setembro de 1974, os militares portugueses ainda não tinham
instituído o pluripartidarismo em Lisboa quando confiaram os destinos de
Moçambique exclusivamente à Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo).
Fundada em Junho de 1962
62
, a Frente soubera, sob a autoridade do doutor (em
antropologia) Eduardo Chivambo Mondlane, conquistar as simpatias da
comunidade internacional e beneficiar do apoio militar tanto da China como da
URSS. Ao contrário do que acontecera em Angola, a Frelimo tinha conseguido,
antes da «revolução dos cravos» portuguesa(25 de Abril de 1974), colocar em
dificuldade as tropas coloniais, aliás maioritariamente compostas por africanos
63
.
Agrupando uma parte notável das elites intelectuais nacionalistas, a Frente
reflecte as divisões ideológicas que a atravessam. Em 1974, porém, já não é
possível ocultar a impregnação mar-xista-leninista da sua direcção. Depois do seu
II Congresso (1968), o significado do combate anti-imperialista, desenvolvido
por Samora Machel segundo a lógica chinesa das «zonas libertadas», aparecia
cada dia mais conforme à afirmação feita, pouco antes do seu desaparecimento
(1969), pelo próprio Mondlane: «Concluo hoje que a Frelimo é mais socialista,
revolucionária e progressista do que nunca e que a nossa linha é diariamente mais
orientada para o socialismo marxista-leninista.» E, interrogando-se sobre as
razões desta evolução, explicava: «Porque, nas condições de vida em
Moçambique, o nosso inimigo não nos deixa escolha.»
A seguir à independência, o inimigo pareceu querer conceder uma certa
pausa aos novos senhores. Estes últimos, em que o elemento urbano assimilado,
branco, mestiço ou indiano, era hegemónico, lançaram-se com entusiasmo na
obstetrícia nacional. Num país rural, a invenção da nação pressupunha, a seus
olhos, um enquadramento do Partido-Estado, única forma de garantir uma
política de «aldeamento» consequente, capaz, além disso, de engendrar o homem
novo, tão caro ao poeta Sérgio Vieira
64
. Já iniciada no começo dos anos setenta
nas «zonas libertadas», com resultados diversos, esta política foi sistematizada no
conjunto do território. Todos os rurais, a saber 80%
62 Em síntese, a Frelimo é o produto da fusão de organizações nacionalistas constituídas entre
os moçambicanos emigrados no Tanganica, na Rodésia e na Niassalândia. Consultar Luís de Brito,
«Une relecture nécessaire: la genèse du Parti-État Frelimo», Politique africaine, n.° 29, Março de
1988.
63 Acerca da fraqueza do nacionalismo moçambicano, ver Claude Cahen, «Sur quelques
mythes et quelques réalités de la colonisation etde la décolonisation portugaise», comunicação no
colóquio Décolonisations comparées, Aix-en-Provence, 30 de Setembro-3 de Outubro de 1993.
64Chrisrian Geffray, La Cause des armes au Mozambique. Anthropologie d'une guerre civile,
Paris, Karthala, 1990, p. 27.
795
da população, eram supostos abandonar o seu habitat tradicional a fim de se
reagruparem em aldeias. No entusiasmo da independência, as populações
responderam favoravelmente às solicitações da administração, cultivando cam-pos colectivos rapidamente abandonados nos anos seguintes, participando por
vezes na edificação das construções exigidas, sem contudo concordarem em lá
residir. No papel, porém, o país estava coberto por uma administração
hierarquizada, teoricamente sob controlo das células de um partido que, em
1977, tinha claramente reivindicado a herança bolchevique e apelado ao desen-volvimento da colectivização das terras e ao reforço dos laços com o movimento
comunista internacional. Tinham sido assinados diversos tratados com o Leste, e
o fornecimento de armamento e de instrutores parecia autorizar um apoio
acrescido aos nacionalistas rodesianos do Zimbabwe African National Union
(ZANU).
Numa altura em que Moçambique se associava ao bloqueio que ameaçava
estrangulá-la, foi como represália que a Rodésia branca de Ian Smith decidiu dar o
seu apoio à resistência que começava a aparecer nos campos. Sob a direcção de
Afonso Dhlakama, a Resistência NacionalMoçambicana (Renamo) beneficiou de
um apadrinhamento estreito dos serviços especiais rodesianos até à independência
do Zimbabwe, data a partir da qual a tutela logística passou a ser assegurada pela
África do Sul (1980). Para surpresa de numerosos observadores, a adesão à
resistência das populações aldeãs foi crescendo, a despeito dos métodos bárbaros
da Renamo, cuja acção assustava até os seus protectores rodesianos. Os fugidos
dos «campos de reeducação» que se tinham multiplicado a partir de 1975
65
sob a
férula do Serviço Nacional de Segurança Popular (SNASP) não eram os menos
violentos. Na falta de adesão, o controlo das populações tornava-se uma parada
vital para ambas as partes, e os raros estudos no terreno confirmam as observações
do Human Rights Watch66 quanto à amplitude e à bestialidade das exacções
cometidas pelos dois campos contra as populações civis. Menos enquadrada do
que a violência de Estado da Frelimo, a exercida pela Renamo não se resumiu a
acções contra as “grandes comoanhias” doravente entregues a si mesmas depois da
deserção dos seus responsáveis. O apoio que apesar de tudo lhe é concedido
exprime um ódio ao Estado cuja dimensão testemunha violências justificadas pela
Frelimo, numa linguagem estrangeira, em nome da luta contra o «tribalismo», de
um apego a práticas religiosas qualificadas de «obscurantistas», de uma fidelidade
continuada relativamente
b5
Um dos mais importantes agrupou dez mil testemunhas de Jeová emMalange, perto da
fronteira com o Malawi.
Conspicuous Desctruction. War, Famine & the Reform Process in Mozambique, Human Rights
Watch, Nova Iorque, 1992.
796
a linhagens de chefias tradicionais rejeitadas em bloco pelo regime depois da
independência sob o rótulo de «feudalismo»
67
.
As prerrogativas do SNASP tinham sido bastante aumentadas antes mesmo
de a amplitude da ameaça constituída pela Renamo ter sido percebida pelas
autoridades de Maputo. Criada em Outubro de 1975, a Segurança Popular estava
efectivamente habilitada a prender e deter qualquer pessoa suspeita de «ataque à
Segurança do Estado», noção que incluía os delinquentes económicos. O SNASP
fora fundado para levar essas pessoas a tribunal, e nesses casos encarregava-se da
instrução. Podia igualmente enviá-las directamente para um «campo de
reeducação». Negado aos detidos pelo artigo 115 do Código de Processo Penal, o
habeas corpus era só uma recordação (admitindo que a sua aplicação tenha sido
efectiva nos tempos salazaristas...) quandoo primeiro ataque de envergadura da
Resistência visou, em 1977, o campo dereeducação de Sacuze. As «ofensivas
pela legalidade», periodicamente conduzidas por Samora Machel, não limitaram
as prerrogativas do SNASP. Visavam pôr em concordância o facto com o direito;
tal foi a lógica da Lei 2/79 de 28 de Fevereiro de 1979 sobre os crimes contra a
segurança do povo e do Estado Popular, restabelecendo a pena de morte, abolida
em Portugal e em todas as suas colónias desde 1867. O castigo supremo não era,
aliás, sempre aplicado dentro das regras, e nomeadamente quando se tratava de
eliminar os dissidentes daFrelimo. Foi esse em especial o destino de Lázaro
Nkavandame, Joana Simião e Uria Simango, liquidados quando da sua detenção
em 1983 e cujo destino foi mantido secreto até que o Partido riscou o marxismo-leninismo da sua agenda
68
. Esse mesmo ano de 1983 foi igualmente marcado no
plano jurídico pelo encerramento da Faculdade de Direito Eduardo Mondlane, em
Maputo; a acreditar nos considerandos apresentados pelo governo, era
efectivamente claro que esse estabelecimento não preparava os juristas para
defenderem os direitos do povo mas unicamente os dos exploradores
69
. De um
modo geral, a intelligentsia caiu muito rapidamente num desencanto discreto,
tingido de servilismo relativamente à Associação dos Escritores Moçambicanos,
entregando-se em privado a comparações iconoclastas entre KGB, CIA e
SNASP
70
. Mais raros foram aqueles que, como o poeta Jorge Viegas, pagaram a
sua dissidência com o hospital psiquiátrico e depois com o exílio.
O endurecimento político então verificado andava a par, segundo uma
lógica já comprovada quando dos primeiros passos da Rússia soviética, de uma
67
Michel Cahen, «Check on Socialism in Mozambique. What Check? What Socialism?»,
Review ofAfrican Politicai Economy, n.° 57, 1993, p. 54.
68
V Congresso da Frelimo, Julho de 1989.
69 Moçambique, independência e direitos humanos, Amnesty International, 1990, p. 24.
70 Michel Laban, «Écrivains et pouvoir politiqueau Mozambique après 1'indépendance»,
Lusotopie, 1995.
797
abertura económica. Indubitavelmente, esta não tinha necessidade de uma maior
abertura face ao estrangeiro, uma vez que os investimentos ocidentais foram
sempre bem recebidos, como convém a um país de «orientação socialista» ao
qual a URSS recusou a entrada no Comecon
71
. O IV Congresso (1983) voltou a
sua atenção para a população rural, pondo fim à política de colectivização, de
efeitos desastrosos. Ao fazer uma das denúncias de que tanto gostava, Samora
Machel deixou as coisas muito claras: «Não esqueçamos o facto de que o nosso
país é antes de mais constituído por camponeses. Nós persistimos em falar da
classe operária e relegamos para segundo plano a maioria da população
72
.» Cada
incêndio de palhotas pelas milícias governamentais, por ordens (teóricas) de
superiores hierárquicos preocupados com as quotas de aldeamento, reforçava
automaticamente a Renamo. Além disso, a desestruturação dos sistemas de
cultivo, a degradação das condições de troca bens de consumo/culturas
alimentares e a desorganização do comércio concorriam para um agravamento
das dificuldades de alimentação.
Não parece que a arma da fome tenha sido utilizada de forma sistemática,
tanto pelas autoridades como pela Renamo. No entanto, o controlo do auxílio
alimentar representou para a Frelimo um trunfo essencial para o reagrupamento
das populações que os dois campos disputavam. Por este facto, a concentração
improdutiva de agricultores colocados perante a impossibilidade de regressarem
às suas terras era ela mesma geradora dedificuldades alimentares futuras. No
total, segundo a Human Rights Watch, a insuficiência das rações globalmente
disponíveis durante o período de 1975-1985 esteve na origem de uma quantidade
de mortos superior à causada pela violência armada
73
. A avaliação é confirmada
pela UNICEF, que estima em seiscentos mil o número de vítimas da fome no
decurso da década em causa e não hesita em esboçar uma comparação com a
Etiópia. A ajuda internacional traduziu--se para muitos na sobrevivência das
populações expostas. Em Janeiro de 1987, o embaixador dos Estados Unidos em
Maputo enviou ao Departamento de Estado um relatório que quantificava em três
milhões e meio o número de moçambicanos ameaçados pela fome
7
^,
desencadeando um auxílio imediato de Washington e de várias organizações
internacionais. No entanto, as zonas mais isoladas e expostas às instabilidades
climatéricas foram vítimas de fomes
71
Ver Michel Cahen, Mozarnbique, la révolution implosée, Paris, CHarmattan, 1987, pp. 152-
-154.
72
Discurso do presidente Samora Machel nasessão de Dezembro de 1985 da Assembleia
Popular. In M. Cahen, Mozarnbique, la révolution implosée, op. cit., p. 163.
73
Conspicuous Destruction, op. cit., p. 4. A UNICEF estima em 600 000 o número de víti
mas da fome para a década considerada e considera esta quantidade comparável à da Etiópia,
somente no período de 1984-1985.
74Jean-François Revel, «Au Mozarnbique aussi, lemarxisme-léninisme engendre la famine»,
Est & Ouest, n.° 40, Março de 1987.
798
brutalmente mortíferas de amplitude dificilmente estimável, como a região de
Memba, onde, segundo as organizações humanitárias, oito mil pessoas morreram
de fome na Primavera de 1989.
75
Nas áreas abrangidas pela solidariedade
estrangeira, o mercado retomou rapidamente os seus direitos. É, em todo o caso,
uma das ilações de um relatório da Comunidade Europeia
76
de 1991, do qual
ressalta que somente 25% da ajuda alimentar eram vendidos ao preço acordado,
ficando 75% nas mãos do aparelho político-administrativo o qual, depois da
punção de rigor, negociava os excedentes no mercado paralelo. O homem novo
que Samora Machel e os seus teimavam em construir era bem «o produto
patológico deste compromisso, o qual, no sujeito individual, é vivido como
desonra, mentira, loucura esquizofrénica. Quer viver, mas para isso tem de
dividir-se, levar uma vida escondida e verdadeira e uma vida pública e falsa,
querer a segunda para proteger a primeira, mentir incessantemente para guardar
algures um cantinho de verdade»
77
.
O repentino desmoronamento dos Partidos-Estado de Leste levou, num
movimento muito natural, a prestar maisatenção à sua fraqueza e a acentuar a
resistência das sociedades civis. Embora, no decorrer dos quinze anos consi-derados, a caracterização pública do comunismo africano como «legitimação
política moderna»
78
pudesse ter tido consequências dolorosas para um uni-versitário autóctone, esta percepção nem por isso deixa de concervar a sua carga
explicativa. A pouca duração da experiência africana, conjugada com a
percepção dominante de uma Africa tautologicamente votada à violência em
razão da sua própria africanidade, poderia levar a esbater — a despeito das
nossas precauções iniciais — os contornos do nosso tema. A fim de resistir à
tentação, não é sem dúvida inútil invertera perspectiva. Se é verdade que a
especificidade da violência observada nos Estados de obediência mar-xista-leninista dificilmente sobressai num continente marcado pelo partido único, as
chacinas e a fome não serão devidos, como escrevia A. Mbembe, ao facto de que,
embora os países africanos «tenham sido colonizados e conduzidos à
independência pelas potências ocidentais, foram definitivamente os regimes de
tipo soviético que lhes serviram de modelo», não tendo os esforços de
democratização «modificado a natureza profundamente leninista dos Estados
africanos»?
75 C. Geffray, La Cause des armes, op. cit., p. 209.
76H. Gebaver, «The Subsiddized Food Distribution System in Mozambique and its Socio-Economic Impact», Technical Assistance, EC Food Security Department, Maputo, 1991. In Con-spicuous Destruction, op. cit., p. 120.
77 Alain Besançon, «La normalité du communisme selon Zinoviev», Pouvoirs, n.° 21, 1982.
78 Jean Leça, in C. Cahen, Mozambique, la révolution implosée, op. cit., p. 161.
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