Roberto Tibana
04-03-2018
Já estamos em 1978. A completar vinte anos de idade. A eletrotecnia ficou lá para a Central de Comunicações e Sinalização dos CFM Sul, o Romeno lá em Bucareste, e a saga dos estudantes Moçambicanos na Roménia e a zanga (que não assisti diretamente) de Samora Machel ficaram para trás. Continuo um “faztudo” no Ministério da Educação e Cultura.
Um dia sou chamado (creio que pelo Diretor Nacional da Educação) para me comunicar uma missão incumbida pela ministra de então: ir por quase todas as províncias (exceto Manica e Niassa) e nelas localizar instalações que pudessem ser adaptadas para criar Centros de Formação de Professores Primários. O Governo havia decidido acelerar a formação e reciclagem de professores primários para atender a explosão de procura da educação e a necessidade de aumentar a qualidade do ensino.
Não fui sozinho. Disseram-me que embora eu fosse responsável por essa tarefa, por ser jovem demais e nunca ter viajado pelo país, para a missão havia de ir acompanhado por um adulto. E que havíamos de nos completar. O tal adulto seria uma pessoa “calejada” de andar no mato, e eu que tinha uma vivência urbana. Fui com um antigo combatente da luta de libertação nacional, que mais tarde viria ele próprio ser parte do primeiro corpo de instrutores dos CFPP, talvez nos seus 25-30 anos de idade. A ministra e o diretor nacional de educação deram-nos as recomendações finais. Tínhamos que visitar todos os distritos onde tais instalações pudessem ser “descobertas”: antigas missões que na altura haviam sido “nacionalizadas”, instalações fabris ou acampamentos de trabalhadores rurais abandonados ou nacionalizados, tudo o que pudesse dar ou ser facilmente adaptado para alojamento de 30-50 pessoas e onde se pudessem criar facilidades de formação pedagógica.
A nossa tarefa era encontrar dois ou três lugares desse tipo, fazer uma descrição como pudéssemos, e mandar essa informação para as estruturas centrais em Maputo. Em cada província iríamos trabalhar com os serviços provinciais de educação. Em Maputo se iria fazer a avaliação preliminar, e se enviaria uma equipa de arquitetos e engenheiros para fazer a verificação e avaliação detalhada dos locais sugeridos considerando aspetos de arquitetura e engenharia, e esboçar os projetos de reabilitação e equipamento. Esses engenheiros e arquitetos eram jovens oriundos dos países nórdicos, em particular da Holanda e Noruega, países que vinham apoiando os programas educacionais da FRELIMO desde o tempo da luta de libertação nacional. Os jovens profissionais vinham a Moçambique em regime de trabalho voluntário e de solidariedade internacional para ajudar o governo emergente. Trabalhavam ligados ao Gabinete de Projetos de Obras do Ministério da Educação e Cultura. Bastava nós acabarmos de “bater” a província e mandar a informação para Maputo, e eles lá vinham atrás, enquanto nós seguíamos para a outra província.
Para a peripecia deram-nos um Land Rover novinho em folha financiado pelo UNICEF, um motorista e uma soma de dinheiro em numerário. Também recebemos as “guias de marcha”, na altura muito importantes e necessárias para atravessar limites entre províncias e distritos (ou qualquer outro ponto que tivesse um posto de controlo, usualmente das FPLM ou milicianos). Essas “guias de marcha” também serviam de credencial para sermos atendidos pelas autoridades.
Começamos em Gaza (Maputo tinha o Magistério Primário e haveria ainda a Namaacha que já tinha sido considerada candidata para o CFPP). Em Gaza dentre os lugares inicialmente considerados o centro acabou ficando em Inhamissua. Atravessamos para Inhambane e Homoine foi um dos candidatos que depois ficou. Batemos Sofala, Tete, Nampula, onde Dondo, Zóbwe e Murrupula entraram na lista e acabaram sendo eleitos. Na Zambézia não me lembro bem o que ficou (acho que foi Mocuba), e em Cabo Delgado ficou Chiúre. Só Manica e Niassa não foram escaladas porque não eram objeto do plano na altura. Havia sido decidido que Manica e Sofala partilhariam um Centro que se localizou no Dondo, e Niassa e Cabo Delgado partilhariam o Centro que foi localizado em Chiúre.
Para mim esta foi a primeira grande aventura de descoberta do país, dentre várias que se seguiram e que foram das mais formativas atividades da minha juventude. Um privilégio único. Aos 20 anos tive o privilégio de conhecer uma grande extensão do território nacional, a sua diversidade florestal, social e cultural. Uma grande formatura da minha moçambicanidade. E foram seis meses de adrenalina em alta, com cada dia a trazer novas descobertas, levantar desafios, desde os mais mundanos a questões complexas relacionadas com a tarefa em causa. Em termos de formação como jovem foi superior a milhas da experiência que havia tido na Mocidade Portuguesa quando estava na Escola Secundária Joaquim de Araújo (hoje ‘Estrela Vermelha’) onde o meu Comandante de Bandeira foi o Aires Bonifácio Ali (este que na altura estudava num dos Liceus de Lourenço Marques, o tal que anos mais tarde se tornou Governador de Niassa e depois Primeiro Ministro).
O adulto colega com quem viajei contava-me algumas histórias da guerrilha mas uma boa parte deles eram de “segunda mão” pois tendo sido um agente de educação participara pouco na ação direta de guerrilha.
Uma das partes mais belas da viagem foi uma pausa na praia das Chocas, em Nampula e a minha primeira visita a Ilha de Moçambique. Depois foram as montanhas de Montepuez e a Praia do Wimbe em Pemba, lugares aos quais voltaria muitas mais vezes em missões subsequentes a Cabo Delgado e Nampula. Nas encostas das montanhas de Motepuez saboreei feijões de um tamanho, textura, sabor e valor nutritivo excecionais, e que em Moçambique somente só se encontravam naquela zona (tanto quanto me disseram os missionários lá da zona na altura). Andei em partes de Moçambique onde eu não conseguia acreditar que estivesse no mesmo planeta, continente ou país. Tal é a diversidade e beleza do nosso Moçambique!
Quando finalmente regressamos a Maputo, eu pensei que já havia feito tudo e tinha ganho o meu passaporte para a Universidade. Mas nada! Enquanto nós andávamos nas províncias a tratar da logística, atrás no MEC foi criada uma Comissão de Formação de Quadros (acho que na altura se chamou mesmo Comissão de Formação de Professores – se a memória não me falha), cuja tarefa era principalmente organizar a formação e reciclagem em massa de professores primários. Isso passava também pela formação e reciclagem regular dos instrutores dos Centros de Formação de Professores.
A Comissão era composta por professores formados e experientes, alguns com formação universitária e outros com formação e experiência de Magistério Primário. Havia também estrangeiros “cooperantes”. Estava lá o José Miguel (se não estou a confundir o nome) que ficou o chefe da Comissão, a Rachel Thompson (uma moçambicana que acho que tinha sangue liberiano e tinha cursado geografia na UEM), e a Frauke Draisman (espero estar a escrever bem o nome, esposa do Ian Draisman que tinha sido um dos membros do triunvirato diretor da Escola Industial 1o de Maio eu eu frequentaa anos atras), e mais duas senhores estrangeiras, a Marluza (uma Brasileira) e a Cristina (uma Chilena de quem também não me recordo o nome completo).
Regressado das províncias, o meu companheiro de viagem entrou num dos cursos de preparação de instrutores e depois foi colocado num dos centros de formação de professores primários. Eu fui colocado lá nessa Comissão de Formação de Quadros, mais uma vez como o “faztudo” da casa. Nessa altura começaram a organizar-se processos de regularização para efeitos de enquadramento nas folhas de salários e para ser registado como funcionário público. O meu primeiro cartão de trabalho diz que sou “Professor de Ensino Secundário”, mas na realidade isso só foi um expediente burocrático para eu poder entrar na folha e receber algum salário, pois eu nunca havia sido professor secundário. [Um dia vou contar a história da minha experiência de “explicador” de ensino primário ainda quando estudava na Escola Secundária Joaquim de Araújo – hoje ‘Estrela vermelha’, algo que criou em mim o gosto pelo ensino que depois vim a exercer na UEM. Mas não foi esta experiência que fez com que me dessem tarefas junto da Comissão de Formação de Quados. Aliás eu tenho a certeza que o Ministério nem sequer conhecia este meu passado ao qual nunca dei importância senão agora retrospetivamente, e alguns colegas meus desse tempo quando virem isto agora até vão ficar muito admirados].
Desta vez, na Comissão de Formação de Quadros, a minha tarefa era equipar todos os centros de formação de professores primários que fossem sendo criados e organizar a parte logística dos cursos de preparação dos instrutores que iriam lecionar nesses centros.
[DETOUR] Nessa altura tive outra vez o privilégio de voltar a trabalhar com o Sr. Gedeon Ndobe, que foi quem deu muitas das aulas de pedagogia ao primeiro corpo de instrutores dos centros de formação de professores primários, em cursos organizados pela Comissão de Formação de Quadros mas que tinham lugar nas instalações do Magistério Primário de Maputo (na altura dirigido pelo Professor Luís Filipe Pereira, outro grande pedagogo moçambicano que mais tarde se tornou Diretor do Instituto Nacional da Educação que esteve a frente do processo de concepção do Sistema Nacional de Educação). A minha tarefa era organizar a logística desses cursos, mas o Sr. Ndobe, notando a minha curiosidade pelas aulas que dava e necessitando de ajuda, usou-me como seu “tomador de notas”. Eu sentava-me lá no fundo, e tomava nota de tudo o que ele falava. Eu escrevia avidamente. Depois a noite dactilografava tudo e no dia seguinte lhe entregava e ele fazia as correções.
Eu nunca percebi por que razão aquelas aulas nunca se transformaram em livro. Acho que teria sido o primeiro tomo de pedagogia produzido por um Moçambicano, e tenho a certeza absoluta que ainda hoje seriam uma referência válida na formação de professores. Ele era um manancial de quase tudo. Sabia de filosofia e tinha estudado pedagogia. Conhecia a história e a cultura nacionais. Era de uma didática extraordinária. [Uma das coisa que ele gostava de fazer era desenhar num canto do quadro preto as várias fases em que passava o estado dos olhos dos instruendos a medida que as aulas decorriam, incluindo aquela fase em que os olhos de alguns se chegavam a fechar completamente – e assim conseguia manter os olhos de todos abertos!] Tinha um carisma e uma exposição cativantes. Ninguém queria que as aulas dele chegassem ao fim.
[BACK TO MAIN TRACK] A organização da logística dos centros de formação de professores primários incluía: elaborar e fazer aprovar listas de equipamentos - fogões, geleiras frigoríficos, catanas, enxadas, pás, motobombas, copos, talheres, camas, beliches, roupa de cama, giz para quadro preto, mapas, globos, compassos, etc. Tudo o necessário para equipar um centro de formação de professores primários a partir do nada.
Encomendar. Solicitar pagamentos. Organizar transporte para as províncias. Assegurar a instalação dos equipamentos. Eu comprava tudo diretamente das fabricas. Nessa altura conheci bem a zona industrial da Matola onde estavam os meus fornecedores. Penso que de tudo que adquirimos nessa altura, nada ou quase nada era importado. Tudo era fabricado ou montado localmente pelas nossas indústrias baseadas na Matola e Machava. Por isso hoje quando passo por esses lugares e vejo que alguns foram convertidos em igrejas onde se faz a extorsão dos pobres, fico mesmo… furioso.
Acho que depois de voltar das províncias fiquei mais uns seis ou nove meses nesta da logística dos centros de formação de professores primários e dos instrutores. Mas olhando para tudo, até parece terem sido anos, tal foi a intensidade da aprendizagem e interação que tive com pessoas diversas.
E quando tudo acabou quase fiz uma “rebelião” (mais um pedido) para ver se me deixavam ir a universidade continuar estudos. Ainda pensava em salvar a minha electrotecnia. Para mim tudo o resto que fazia ainda eram passagens. Gostei, fazia com entusiasmo, formou-me, mas o sonho da eletrotecnia não passava. Tanto mais que em tudo o que fazia não me estava a especializar em nada. Antes pelo contrário, ia a pouco e pouco perdendo os conhecimentos técnicos de especialidade que havia adquirido na Escola Industrial e na Central de Comunicações e Sinalização dos CFM Sul.
Mas mais uma vez a resposta foi não, ainda não chegou a tua vez!
(Continua Estaca V – Lidando com o “desastre” da Escola Secundária de Pemba)
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