segunda-feira, 5 de março de 2018

Eu não sei em que ela me pode ajudar.

Sabrine

Canal de Opinião por Adelino Timóteo
Uma moça olha para mim e diz que me vê muito pensativo. Pergunta-me em que me pode ajudar.
Eu não sei em que ela me pode ajudar.
Eu não sei em que ela me pode ajudar. Eu não sei como ela me ajudaria, porque em coisas de ajuda e não ajuda eu não me compreendo.
Sou um ser de vagas ambições e poupado em esperanças.
A moça volta a olhar-me e diz que me vê muito pensativo.
Pergunta-me em que me pode ajudar, pela centésima vez.
Eu não sei em que ela pode ou não me ajudar. E para aceitar, antes eu teria de saber se necessito de ajuda. Coisa que eu não sei, apesar de necessitar de ajuda. Vivo na rua.
Debaixo de uma fonte. Não tenho o que comer. Mendigo. Ela fica quieta e me pergunta se lhe vou responder. Não sei se lhe vou responder, pois penso. Penso muito.
Sou pobre, mas a minha liberdade está acima de qualquer preço.
Talvez é a ajuda que está a precisar de mim.
A moça deve ser experiente.
Penso muito. Deve praticar certas caridades.
Eu penso. Penso muito. Há séculos que não durmo com uma mulher.
Pode ser que ela se refere a outro campo de ajuda. Não necessariamente o que o caro leitor deve estar a pensar. Não é pela primeira vez que me tropeço nessa pergunta.
Não é pela primeira vez que sou atropelado por uma mulher, com semelhante pergunta. Estou carente. Eu reconheço. Gostava que me beijasses, que me acarinhasses, que me tocasses nas partes mais íntimas. Gostava que me pusesses a gemer, que me levasses a subir contigo até às estrelas.
Isso eu suponho a falar-lhe, mas falo para os meus botões.
Não creio que esteja estremunhado.
Não creio que esteja triste.
Mas ela me diz que por certo o meu silêncio lhe faz o coração chorar. Respondo-lhe que estou muito preocupado contigo, minha querida. Diz-me, por favor, em que te posso ajudar, meu amor, agora que estás a chorar. Então me diz ela que procure palavras mais doces. Compreendo que posso ter transcendido ao chamá-la de meu amor, coisa que ela me não é. Deve ser tão sensível, que sente dores só de ouvir a palavra amor colada aos ouvidos.
Em todos os anos, não costumei ouvir uma tal costura.
Nunca ouvi palavras tão lindas.
Nunca. Diz-me ela. Digo-lhe eu que palavras lindas não são pão. Que sou pobre. Que o Homem não vive de palavras.
“Você tem família
Você tem amigos
Você pode escrever maravilhosamente bem
Você tem uma atitude positiva
Você pode ouvir
Você é sensível
Você é um homem maravilhoso
Você pode dar amor
Você pode dar conforto
Você tem tantas qualidades boas e lindas
Você é rico em coisas tão bonitas dentro de ti, que muitos não as vêem por incapazes, mas eu as capto”
Agora sou eu quem chora.
Ela saca um lenço e me enxuga o pranto. O amor me faz chorar.
Me faz tremer os lábios.
Pensar só atrapalha. Meu coração bombeia estranhamente, só de pensar nela. Há séculos que não o sentia existir em mim.
Uma pessoa também tem de desligar a ficha e voar. É o que penso.
Digo cá para os meus botões que não tenho problemas em que pensar.
Os problemas é que têm que pôr os pensamentos a virem ter comigo. Os sonhos é que têm que me levar à vida, pelas suas asas.
Ela parece adivinhar os meus pensamentos. Diz que tenho de aproveitar a vida. É muito curta para estar com divagações sobre o tema, sublinha ela. Não sei a que tema se refere. Me diz para esquecer dela, que sou um homem que não serve para pensar no passado, que provavelmente me deixa pensativo. Me diz mesmo que se estiver a pensar em quem passou por minha vida, que esquecesse, pois o passado não devia atropelar a “nossa felicidade”. Fosse eu separado ou divorciado ou viúvo, que mandasse os problemas para o hospício. Que nós os dois juntos podemos ir em frente.
Não fiques atormentado, sem resposta. Ela insiste. Insiste. Entretanto, a conversa decorre debaixo da noite fria, de inverno rigoroso. A temperatura a menos quinze graus sobre a cidade de Hannover. Ela tem uns lábios finos, pintados em batôn rosa.
Não é a primeira vez que uma mulher tropeça em minha vida. Não é a primeira vez que eu me vejo mudo.
Na boîte Havana Club de Viena passou-se-me o mesmo. O ar frio deve ter uma substância muito boa, que desperta sentimentos há muito adormecidos. Aquele ar cortava-me o coração. Há muito que eu o não sentia. Há muito que uma conversa como essa não me acontecia. Esse tipo de conversa desperta uma áurea de calor de verão, ao coração.
Porém, como a moça de Viena, a minha interlocutora persiste, à espera da resposta. Posso confessar-me:
Já tive mil e quinhentas mulheres e a nenhuma delas eu pretendi. Pelo contrário, foram elas a declararem-me. Eu sou tímido. Reservado.
Perdi a virgindade não porque o desejava, mas porque uma mulher decidiu fazê-lo por mim, porque era impróprio da minha idade. Estava então na casa dos cinquenta.
Na verdade não sei o que dizer. Há sentimentos tão belos, que mesmo que não celebrados, vivem incólumes na memória, como os intensamente vividos. São momentos perfeitos, adormecidos na recordação.
Não a toquei, para não estragar a perfeição do momento e da conversa.
Não a toquei, porque por vezes o tacto destrói a beleza do sentimento.
“Ich liebe dich” (Eu te amo), foram estas as últimas palavras de Sabrine.
Ela é gira. Cabelos loiros até ao cú. Olhos azuis esmeralda, como a água do mar das Caraíbas.
A luminosidade dos olhos, dos cabelos, todos juntos, me sequestrara. Me matara.
É, pois, disso que lhe queria falar, pedir-lhe ajuda de um beijo.
Um sopro de carinho, entre um lábio dela e o outro, meu.
Foi neste sonhar que nunca mais acordei. Nunca mais acordei para manter a ilusão, em Hannover.
Ela é gira. Cabelos loiros até ao cú. Olhos azuis esmeralda, como a água do mar das Caraíbas.
Pelo menos, em meus sonhos. É uma colmeia. Um favo de abelha.
Sinto borboletas em meu estômago.
Peço só que não me acordem.
Não me belisquem, por favor.
Estou muito feliz. E de bem com a vida. Escrevo só porque tenho leitores. Aliás, para mim, escrever é como amar.
Absolutamente, amar é a única coisa que sei fazer na vida. (Adelino Timóteo)
CANALMOZ – 05.03.2018

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