Estaca VII – Primeira “chicotada” política: arrogância ou irreverência, e “o mal que veio pelo bem”
Roberto Tibana
07-03-2918
Roberto Tibana
07-03-2918
N.B.: Esta ESTACA é muito longa e retrospetivamente penso que ela poderia ter sido dividida em três (tanto pelos temas como pela extensão). Mas como assim já estava programado (quando comecei a “falar comigo proprio” só falei!), e para garantir que a série termina mesmo no dia 8 de Março, vou deixa-la como está. No entanto, para guiar o leitor, tentei encontrar os lugares de corte com os seguintes subtitulos:
A. TRABALHANDO NA REDE ESCOLAR RURAL E AS ALDEIAS COMUNAIS
B. GIS COM UM COMANDANTE TANQUISTA SEM GPS NEM COMPUTADORES
C. A MINHA PRIMEIRA CHICOTADA POLÍTICA
Dito isto, eu aconselhei os meus netos que quando forem a ler isto daqui a alguns anos o façam na ordem em que vem!
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No MEC, como eu continuasse a fazer “barulho” não entendendo o que estava a fazer numa Comissão de Formação de Quadros e andando a inspecionar serviços da educação sem nunca ter sido professor formado, fui transferido para o Gabinete de Estudos. Na mesma altura veio um outro jovem bom professor de matemática (e também bom jogador de futebol), o Gil Gideão da Silva, que até era mais novo (mas não muito) em relação a mim.
No Gabinete de estudos eu e o Gil iríamos ser “ajudantes e aprendizes” de planificação da educação. Lá trabalharíamos com técnicos estrangeiros, entre os quais estava um espanhol (Júlio) e dois alemães do Leste: o Spetar (pelo menos assim se pronunciava, não me recordo da ortografia), que com o Julio fazia programação de modelos matemáticos de educação e a quem o Gil iria se agregar; e o Klein, que trabalharia no planeamento do desenvolvimento da rede escolar, comigo. Estes alemães do Leste foram o primeiro contingente que chegou na sequência de uma solicitação que a delegação que foi a Roménia em 1977 (e da qual fiz parte e falei numa Estaca anterior) levou à Alemanha do Leste, país por onde passamos depois da Roménia.
Foi nos dito (a mim e ao Gil) que essa seria uma missão temporária até o MEC receber os primeiros técnicos nacionais qualificados na planificação da educação, altura em que então poderíamos ir continuar os nossos estudos. Esses outros eram dois indivíduos que haviam saído da Faculdade de Educação e depois de uma curta passagem pelo ministério foram enviados a especializar-se em planificação e estatística da educação na França. Faziam parte daqueles que foram para a UEM aquando das decisões do 8 de Março de 1977, quando nós outros fomos mandados “fazertudo”. Primeiro prometeram-nos que nós teríamos a nossa vez quando eles terminasses os cursos na UEM. Mas depois disseram que só quando eles regressassem da especialização na França é que essa nossa vez chegaria.
A. TRABALHANDO NA REDE ESCOLAR RURAL E AS ALDEIAS COMUNAIS
A passagem ao Gabinete e a tarefa de me preocupar com o desenvolvimento da rede escolar rural marcaram uma nova fase da minha carreira de “faztudo”. Inicialmente (antes da chegada dos técnicos alemães) isto envolvia arrumar informações específicas, e usá-las para monitorar em que medidos os vários serviços estavam de facto a priorizar a educação tanto formal com de alfabetização e educação de adultos nas zonas rurais.
A juntar a isto, a ministra deu-me um “chapéu” que emprestou uma certa “autoridade” a essa minha tarefa: designou-me representante do Ministério da Educação e Cultura no Conselho Coordenador (CC) da Comissão Nacional das Aldeias Comunais (CNAC). O CC era mesmo o que diz o nome (coordenador), enquanto a CNAC se pretendia acima deste, mais ou menos como a nível decisório.
A CNAC tinha um diretor, e o primeiro foi o João Baptista Cosme (outro maconde vindo da luta armada de libertação e formado no Leste Europeu, que teve como seu adjunto o Embaixador Lopes Tembe). O João Baptista Cosme era um dos poucos quadros com formação qualificada em planificação de tipo socialista (formado num dos países socialistas, creio que na Checoslovákia como o havia sido o Sr. Gideon Ndobe em pedagogia).
Apesar de ser uma pessoa tipicamente entusiástica e na minha opinião muito inteligente, acho que o João Baptista Cosme na CNAC era um peixe for a da água. Não me parece que tenha gostado nada daquela tarefa que parecia lhe ter afastado do centro da Planificação da Economia, na altura a Comissão Nacional do Plano. Além do mais, na CNAC rapidamente ele ficou ensardinhado entre o comando político do processo das Aldeias Comunicais que lhe vinha de cima e do Partido, e o argumento técnico que pouco a pouco se desenvolveu no Conselho Coordenador e que mostrava as dificuldades da estratégia. Em debates dava a sensação que ele entendia o argumento técnico, mas no seu modo de atuar estava politicamente amarrado. Ainda por cima a CNAC e o seu CC não eram organismos executivos das políticas do governo. As políticas do Governo eram executadas pelos ministérios, e a CNAC foi pouco a pouco se mostrando incapaz de “forçar” os ministérios a implementar tudo o que era a doutrina das aldeias comunais. De facto ele (o Cosme) foi pouco a pouco caindo nas margens ou alheando-se daquele processo, até um dia ir dar a Presidente da Câmara Municipal de Maputo, e a uma certa altura Embaixador em Portugal (não me recordo se por esta ordem).
No Conselho Coordenador eu era o mais novo de todos (outra vez!), e sem nenhuma posição de chefia no Ministério de onde provinha. Todos os restantes Ministérios eram representados por quadros sénior, entre Diretores Nacionais ou Chefes de Departamentos. Diziam que assim o exigia o Presidente Samora Machel, dada a importância que a estratégia das Aldeias Comunais tinha na sua agenda governativa. Não sei como é que a ministra da educação e cultura (que era esposa do Presidente da República) conseguiu escapar de uma “tareia” por mandar para lá um “miúdo’. Não era possível que Samora não tivesse sabido disso, porque um dos membros do CC vinha mesmo do Gabinete da Presidência e acho que deve ter reportado isso ao “boss”. Mas pronto, lá fiquei eu, e com esse chapéu tive ainda mais outras aventuras.
Foi no Conselho Coordenador da CNAC onde entre outros conheci o arquiteto José Forjaz (que era Diretor Nacional no Ministério das Obras Públicas, lou foi quando ele era Secretário de estado, já nãa me recordo) e Arquitecta Maria da Assunção (que vinha com o artquiteto Forjaz), a Dra. Isabel Munguambe e a Ana Margarida Ribeiro (espero não estar a trocar o nome desta última) do Comércio Interno, Externo e AGRICOM (a empresa de comercialização agrícola), entre outros quadros de tarimba daqueles tempos. Do Ministério da Agricultura (um ministério chave para o processo) vinha um senhor que sempre teve alguns problemas de ser levado a sério no CC, não ser porquê. D o Ministério da saúde vinha uma senhora a quem eu me encostava ficamos amigos (acho que o nome era Margarida Silva).
O jornalista e escritor Albino Magaia e o Pintor Malangatana muitas vezes estavam presentes nas discussões do Conselho Coordenador, como quadros agregados à CNAC, juntamente com outros antigos presos políticos pela PIDE, a secreta de Portugal colonial fascista. Estes homens haviam sido “desterrados” nas províncias, junto das CPACs, e lá ligados ao movimento das aldeias comunais, num processo que foi percebido como de “reeducação”, precedido do seu tratamento humilhante pela FRELIMO. Com efeito apesar do seu contributo nacionalista na clandestinidade, a FRELIMO nunca os considerou 100% nacionalistas e foram sempre sujeitos a insinuações quanto a mim injustas porque nunca com factos provados, de terem sido “fracos” nas masmorras da PIDE. Muitas vezes estive com alguns deles nas províncias onde trabalhavam. Com o Pintor Malangatana viajei extensivamente em Nampula e há historias interessantes e ao mesmo tempo comovedoras da vida dele lá, e de que não posso falar sem pedir autorização a família. O dia em que essas histórias viessem a público dariam uma imagem triste de como alguns dos homens mais valiosos deste país foram tratados pela FRELIMO, mas também de como ele era realmente um “monstro da cultura” e como ele teve a força de viver e sobrevier com estoicismo e graça invulgares a injustiça a que foi sujeito. Há várias outras pessoas que sabem bem o que quero dizer com isto e em relação em particular ao Malangatana. E mais não vou falar.
Foi nestes ambientes que eu assisti a discussões fortes entre estes especialistas e homens da cultura que andavam no campo com olhos de ver e que denunciavam o falhanço da estratégia de Aldeias Comunais. Para além das reuniões regulares do CC da CNAC, participei no processo de duas reuniões nacionais as quais foram enviados membros do Bureau Político da FRELIMO para dirigir os debates e deliberações. Isto mostrava a importância estratégica que a FRELIMO dava a este processo. Mas também notei que uma das preocupações de alguns desses dirigentes era abafar as “tendência revisionistas ou contra revolucionárias” que se considerava que se estavam a gerar com vista contestar a estratégia das aldeias comunais. O objetivo político sobrepunha-se a todas as considerações de natureza técnica, social, cultural e antropológica que se não atendidas inviabilizariam o processo como uma estratégia de transformação social.
Lembro-me de numa dessas reuniões nacionais das aldeias comuniais o Malangatana ter sido mandado calar e sentar-se (literalmente) antes de acabar a sua intervenção. A razão disso é que ele estava (mais uma vez) a levantar a questão dos desafios culturais que o arrebanhamento das pessoas rurais em “Aldeias Comunais” representava. Os arquitetos e agrónomos levantavam problemas sérios de planeamento físico e gestão dos recursos naturais e que por não serem adequadamente atendidos inviabilizavam o processo como projeto social.
Mas o programa das aldeias comunais tinha uma dimensão política que nos escapava, e paradoxalmente quanto mais ele mostrava fraquezas, mais pressão dessa dimensão política crescia para a sua expansão e aceleração. As cheias na Província de Gaza nesses anos aceleraram o processo nessa zona porque era preciso mover as populações das zonas baixas, donde elas eram imediatamente agrupadas em aldeias comunais. Eu andei muito lá nessa altura, a fazer o mapeamento das facilidades de educação. Mas em muitas partes do país parecia que o ritmo do programa estava a ser determinado pelo ritmo de expansão da “guerra dos 16 anos” que já se fazia sentir e que finalmente daria o golpe final ao processo. Aquí mesmo no Boquisso, onde a uma certa fase da minha juventude eu residi, quando a “guerra dos 16 anos” chegou os meus pais foram arrebanhados e colocados numa “aldeia comunal”, por sinal num sítio próximo do quartel das FPLM. Naturalmente que eles nunca fixaram residência efetiva lá!
Mas o programa das aldeias comunais tinha uma dimensão política que nos escapava, e paradoxalmente quanto mais ele mostrava fraquezas, mais pressão dessa dimensão política crescia para a sua expansão e aceleração. As cheias na Província de Gaza nesses anos aceleraram o processo nessa zona porque era preciso mover as populações das zonas baixas, donde elas eram imediatamente agrupadas em aldeias comunais. Eu andei muito lá nessa altura, a fazer o mapeamento das facilidades de educação. Mas em muitas partes do país parecia que o ritmo do programa estava a ser determinado pelo ritmo de expansão da “guerra dos 16 anos” que já se fazia sentir e que finalmente daria o golpe final ao processo. Aquí mesmo no Boquisso, onde a uma certa fase da minha juventude eu residi, quando a “guerra dos 16 anos” chegou os meus pais foram arrebanhados e colocados numa “aldeia comunal”, por sinal num sítio próximo do quartel das FPLM. Naturalmente que eles nunca fixaram residência efetiva lá!
A minha tarefa no MEC e na ligação que fazia com a CNAC era garantir a coordenação do desenvolvimento da rede rural de educação com esse processo das aldeias comunais, e dos grandes projetos de desenvolvimento que na altura se desenhavam no quadro do Plano Prospetivo e Indicativo (o famoso PPI) de 10 anos que o governo desenhou e que nunca chegou a ser completamente implementado. Tudo isso ainda coisa de “faztudo” mas já com um pouco de enfoque. Chegui a criar um sistema de cartões indexados com os dados estatísticos de educação cobrindo quase todas as aldeias que na altura existiam no país (comuniais e não comuniais, desde que eu de lá pudesse obter informaço), enquanto se organizavam os serviços de estatistica da eduaçao e depois em colaboração com ests. Tudo feito a mão. Não havia computadores para isso. Durante estes anos voltei a viajar extensivamente pelo país, vivendo nas aldeias, trabalhando com as escolas e professores na experimentação e implememtação das orientações de organizaço das escolas e do relacionamento com as comunidades principalmente no campo, com enfoque na alfabetização e educaço de adultos.
O processo das aldeias comunais ajudou na expansão do acesso a educação, pois de uma ou outra maneira, e com uma ou outra motivação, aglomerava as populações, e aonde havia esses aglomerados surgia sempre uma sala de aulas “debaixo do cajueiro”. Assim a demanda do professor e do quadro preto e giz também aumentava. O que criava outros problemas porque a economia ainda não era capaz de garantir essas infraestruturas e capacidade humana para responder em professores. Uma faca de dois gumes!
Ainda no quadro desse ”faztudo” assisti a outros debates no quadro da preparação do tal PPI que se pretendia que iria tirar Moçambique do subdesenvolvimento num prazo de 10 anos entre 1980 a 1990. O tal plano que deu os nossos primeiros “elefantes brancos”, de entre eles o de Mocuba (a têxtil que alguns dizem que nunca teria algodão nacional suficiente para alimentar a capacidade de processamento projetada) e Chókwe (o complexo agroindustrial onde as auto-combinadas trazidas da Bulgária viravam sucata depois de uma campanha agrícola ou mesmo antes), e outros lugares. Fomos sempre bons a criar “elefantes brancos” como o fazemos ainda hoje (veja o Aeroporto de Nacala e ourtas iniciatives recentes), o que reforça a noção de que aqueles primeiros não falharam necessariamente por causa da “guerra dos 16 anos” como alguns gostam de argumentar.
B. GIS COM UM COMANDANTE TANQUISTA E SEM GPS NEM COMPUTADORES
Uma das experiências mais interessantes foi quando chegou o tal velho Alemão (da Alemanha do Leste) para trabalhar na planificação da rede escolar. Era mesmo um velhote. Mas bem saudável e robusto. Ele tinha participado na IIa Guerra Mundial ao lado dos Aliados, como Comandante de uma Unidade de Tanques. O tal a quem eu fui agregado como “ajudante e aprendiz” de planificação da educação. E ficamos muito amigos. Além do mais, éramos vizinhos num prédio que se chamou “prédio do MEC” por nele viverem muitos quadros da Educação, alí no Alto-Maé em Maputo.
DETOUR: [Houve muitos alemões que participaram ao lado dos Aliados na luta contra o Hitler, e que depois da guerra foram treinados e convertidos em professores e quadros da educação, bem como de outras esferas civis, na então Republica Democratica Alema (RDA). Este era um deles. O MEC havia feito um pedido para que fosse enviado pessoal com esse tipo de perfil, precisamente para dar experiência e ajudar na conversão dos nossos antigos guerrilheiros da luta de libertação nacional em pessoal civil. Lembro-me de ter assistido a essa converasaç ão da tal delegação que saiu da Roménia para a RDA em 1977, como mencionei numa das minhas Estacas anteriores].
BACK TO MAIN TRACK: Eu acho que o “Mr. Klein” (como lhe chamávamos) não tinha ideia clara em que se metia. Mas chegado a Moçambique e olhando para a tarefa em mão, ele puxou pelo seu passado de comandante de unidades de tanques e trabalhador da educação para realizar essa tarefa específica de planificar a rede escolar. Com efeito, essa tarefa implicava alinhar a rede escolar com o desenvolvimento económico e a dinâmica da população num quadro geográfico claro, e isto exigia uma técnica que hoje se chama Geographic Information Systems – GIS, ou Sistemas de Informação Geográfica em português. Hoje isso faz-’se com computadores, GPS e software próprio, coisas que não tínhamos naqueles anos.
Acontece porém que um comandante de uma unidade de tanques tem que dominar precisamente este tipo de técnicas, que durante a IIa Guerra Mundial eles tiveram que implementar sem o GPS e computadores de hoje. Nessa altura os comandantes de tanques localizavam objetos e planeavam e dirigiam os movimentos das suas unidades e armamento móvel usando mapas em papel, compassos e bússolas de mão. E foi isso que ele pôs em prática para começar a desenhar a rede escolar de Moçambique. Um dia, umas semans depois de se ambientar, ele pediu-me para lhe acompanhar a uma papelaria pra comprarmos compassos, réguas, esquadros, e muito papel vegetal e cartonlina. Bússola ele deer ter mandado vir da Alemanha. Como eu na minha de ”faztudo” já havia arrumado um bom monte de estatísticas de escolas primárias do campo, ele teve um ponto de partida. E assim começou a fazer o seu trabalho: localizar e projetar de uma maneira muito detalhada escolas e objetos económicos e aglomerados populacionais, e assim mapear e projetar a rede escolar de acordo com a dinâmica projetada da população e dos planos económicos.
Viajamos muito juntos nesse exercício, para quase todas as províncias do país (só não posso dizer todos os distritos, mas se não todos, quase todos).
Uma vez fomos a Gaza fazer esse trabalho. Um dia demos uma incursão para Chibuto e ficamos lá todo o dia fazer o trabalho no campo. Mas havia a “guerra de Ian Smith”. A saída de regresso para Xai-Xai, atravessamos uma ponte. Passados alguns minutos ouvimos estrondos, seguidos de um uivar de aviões. Não os tínhamos ouvido a virem. Não sabíamos bem o que se passou. Eu fiquei muito preocupado. Mas ele nem pareceu perturbado. Experimentado que era, ele só disse que esse havia sido um bombardeamento “localizado” (isto é a um objeto específico). Saiu do carro e olhou para cima, colocou a mão ao ouvido em jeito de escuta atenta. Voltou a entrar e disse que podíamos seguir a marcha, pois os aviões tinham ido. Quando chegamos a Xai-Xai soubemos que tinha sido bombardeada e destruída a ponte que havíamos atravessado. Se tivesse acontecido minutos antes teríamos ficado do outro lado da ponte. Ainda fizemos muitas mais viagens por outras províncias, mas felizmente incidentes semelhantes não aconteceram.
Até que finalmente regressaram da França os quadros que haviam ido especializar-se na planificação e estatística da educação.
Até que finalmente regressaram da França os quadros que haviam ido especializar-se na planificação e estatística da educação.
Mais uma vez pedi para me deixarem ir estudar. O mesmo fez o Gil Gedeão da Silva. A nossa maior deceção foi constatar que desta vez de entre as pessoas que resistiram a nossa saída para continuar os estudos estavam exatamente aquelas pessoas que haviam beneficiado dessa oportunidade enquanto nós havíamos ficado todos esses anos a aguentar o barco como rapazes “faztudo”. São os tais que são muitas vezes considerados a “geração 8 de Março”.
Não valeu mesmo nada a minha “rebelião” para continuar os estudos. E aí continuei nessa de “faztudo”. Até apanhar a minha primeira chicotada política.
C. A MINHA PRIMEIRA CHICOTADA POLÍTICA
A minha primeira (e até agora única!) “chicotada política” veio em 1979 (creio). O Partido-FRELIMO (então auto-proclamado partido marxista-Leninista, não mais a Frente de Libertação de Moçamnbique que havíamos recebido com entusiasmo e da qual ”naturalmente” fomos parte através dos seus Grupos Dinamizadores), começou a organize-se como tal. O processo envolvia uma seleção rigorosa de quem poderia ser membro da agora FRELIMO-Partido. Nós que havíamos sido membros ou colaboradores nos GDs fomos encorajados a candidatar-nos. Candidatei-me.
O processo de seleção de membros era rigoroso. As qualidades para se ser membro do partido eram outras, diferentes das da FRENTE. Já não era qualquer que entrava, como acontecia na FRENTE. Era preciso ser mais “puro”. O processo tinha aspetos mais ou menos públicos que todos conhecíamos, mas outros que não conhecíamos. Alguns aspetos do processo estavam envoltos mesmo de um certo secretismo. Por exemplo, houve brigadas nos locais onde se iriam criar as células do partido, incluindo nos ministérios. Não sei como se chegou a isso, mas houve pessoas que aparentemente já estavam certificadas como tendo essas qualidades novas exigidas par se ser membro do partido. Essas pessoas foram encarregadas de organizar o processo de seleção. Lembro-me que de repente vi envolvidos nesse processo antigos colegas meus de escola, mas que apareciam fardados, fardas tipo militar, e já tinham outro tipo de comportamento, ostensivamente a mostrar que estavam a recolher e a transportar informações sobre nós os candidatos ainda não admitidos ao partido. Já nem conversávamos com essas pessoas. Mais tarde soube que houve pessoas que visitaram a minha casa na minha ausência e sem avisar e até conseguiram entrar lá (creio que a empregada ficou intimidada e lhes admitiu). Também entrevistavam vizinhos. Isso aconteceu também com outras pessoas com que falei na altura. Aprentemente o novo partido estava a fazer o seu “due diligence!” a volta dos candidatos, num processo semi-transparente (muito provavelmente com assistência do SNASP… essas pessoas fardadas!...).
Não me recordo de ter havido espaço para algum “contraditório” sobre todas as informações que recolhiam sobre nós. Pelo menos certamente não comigo, disso bem me recordo.
Fomos encorajados a escrever e juntar autobiografias às fichas de candidatura. Uma das coisas que eramos “encorajados” a escrever era sobre as nossas origens sociais e étnicas. Para mim a parte étnica foi a mais difícil de escrever. Pelas seguintes razões: meu pai nunca me conseguiu explicar e provar exatamente qual era a etnia da família. Eu não conheci os meus avos paternos. Meu pai e minha mãe falavam-nos deles, mas não havia fotografias. Uma das coisas que ele nos dizia é que somos Ndaus. Mas nós havíamos todos (nove irmãos) nascido em Lourenço Marques (Maputo), no Chinhambanine (agora Luís Cabral), e as nossas ligações familiares foram sempre em volta de Lourenço Marques. Meu pai não teve irmãos. Os primos dele eram-no de uma maneira estranha, pois eles não tinham o mesmo apelido. Mais tarde eu soube que quando os pais dele (meus avos) faleceram ele foi adoptado. Não tínhamos “aldeia de origem”.
A explicação que meu pai me deu para isto de sermos Ndaus era que os seus avós ou bisavós (meus bisavós ou trisavós) tinham imigrado de uma região chamada Ussapa (não sei se assim se escreve, mas assim se pronuncia), lá do centro de Moçambique, e chegados a zona de ka-Mpfumo (Lourenço Marques, agora Maputo), foram subjugados aos “rongas”. Assim a nossa língua era ronga, mas o nosso sangue era o Ndau, dizia ele. Ele próprio não falava nem entendia Ndau.
Com todas estas referências, na infância acompanhei uma ocrença, que me fazia ter um certo “orgulho” de ser Ndau. É que cresci a saber que você não pode matar ou roubar coisa de um Ndau pois ele pode te “pfukelar” (isto é, pode mandar ou vir como um espírito de fazer muito mal, e trazer muita desgraça para ti e a tua família toda). Assim, no bairro onde eu cresci (Chinhambanine, hoje Luís Cabral), as pessoas conheciam-nos de sermos Ndaus, e “cuidado com aqueles, eles são ndaus, não se pode brincar com eles, feiticeiro tem que andar longe, ai daquele que enfeitiçar a eles, a família vai pagar caro…”.
Assim, quando na minha autobiografia de candidatura a membro do partido chegou essa parte de me localizar etnicamente e dizer as línguas que falo, acho que escrevi qualquer coisa como “Mandau; lingua changane-ronga…”. O que (retrospetivamente) me parece ter sido uma confusão danada! Mais tarde alguém me disse que eu podia ter dito tsonga, falante de ronga, ou coisa do género, porque os etnógrafos dizem que rongas, shanganes e mandaus são todos parte do grande grupo Tsonga. Mas de facto nunca mais me interessei nisto tudo. Vou pedir aos meus netos para investigarem bem antes de terem que escrever biografias que lhes peçam essa informação.
Assim, quando na minha autobiografia de candidatura a membro do partido chegou essa parte de me localizar etnicamente e dizer as línguas que falo, acho que escrevi qualquer coisa como “Mandau; lingua changane-ronga…”. O que (retrospetivamente) me parece ter sido uma confusão danada! Mais tarde alguém me disse que eu podia ter dito tsonga, falante de ronga, ou coisa do género, porque os etnógrafos dizem que rongas, shanganes e mandaus são todos parte do grande grupo Tsonga. Mas de facto nunca mais me interessei nisto tudo. Vou pedir aos meus netos para investigarem bem antes de terem que escrever biografias que lhes peçam essa informação.
Assim, foi. Submetemos as candidaturas. Um processo longo e penoso. Creio que levou meses. Houve muitas ansiedades.
O dia de anúncio dos resultados foi uma sessão pública, com a participação de toda comunidade de trabalhadores do Ministério da educação e Cultura (tanto os que se haviam candidatado como os que não). Foi num salão muito amplo (creio que um ginásio) do edifício do que hoje é a Universidade de S. Tomás (ou ao lado), alí na Av. Ahmed Sekou Touré.
O dia de anúncio dos resultados foi uma sessão pública, com a participação de toda comunidade de trabalhadores do Ministério da educação e Cultura (tanto os que se haviam candidatado como os que não). Foi num salão muito amplo (creio que um ginásio) do edifício do que hoje é a Universidade de S. Tomás (ou ao lado), alí na Av. Ahmed Sekou Touré.
Acho que houve três candidatos rejeitados dos quais um deles fui eu. A justificação pública que se deu foi que eu era arrogante. Isso mesmo, arrogante. Choque! E disseram mais uma coisa qualquer de que não prestei atenção, tal foi o choque e a humilhação. A reunião terminou. E claro, depois disso, nesse dia ninguém fala contigo. Tu estavas deixado contigo próprio para digerir aquilo tudo.
Seria muito falso se não reconhecesse que na sequência disso passei muitos dias de depressão, particularmente pela humilhação pública e pela mentira que se forjou a minha volta. Eu até admito que na minha juventude fosse de certo modo “arrogangte”. E se calhar algumas pessoas agora também diriam que o sou. Mas não acredito que tenha sido isso a razão principal da rejeição da minha candidatura. Nunca foi! Mas ser catalogado de arrogante nessa altura era grande coisa. Entre os vários slogans da FREELIMO que gritávamos naquela altura um deles era "ABAIXO A ARROGÂNCIA!” E naquele dia eu fui abaixo mesmo com ela!
Muitas vezes leva muito tempo para uma pessoa compreender (ou até a chegar a ter factos e evidências) que explicam certos acontecimentos na sua vida. E neste caso, os factos vieram mais tarde (e ainda continuam a vir!), alguns mesmos depois de duas décadas, e pouco a pouco. E a medida que os fui conhecendo, ganhei mais conforto, pois soube que tudo aquilo havia sido teatro, outras razões mais ridículas existiram. E paradoxalmente, a medida qiue eu ia crescendo, algumas pessoas vieram ter que conheciam as motivações e os factos (algumas pessoas mesmo que tinham sido parte da “trama”, vindo tentar “limpar a sua cara e consciência” e a tentar culpar outros). Paradoxalmente, apesar do trauma, uma pequena depressão e vergonha que se segui nos dias imediatos, de repente comecei a sentir como que se aquela rejeição da minha entrada no Partido FRELIMO me tivessem tirado uma pedra muito pesada dos ombros. E isso permitiu-me caminhar reto durante esse tempo todo até agora.
***
Foi ainda depois de tudo isto que a ministra me vestiu o tal “chapéu” de ir ser representante do MEC no Conselho Copordendor da CNAC, e a que me referi acima. E foi quando eu estava nessas andanças que mais uma vez escalei a minha “rebelião” para ir continuar os meus estudos.
Foi ainda depois de tudo isto que a ministra me vestiu o tal “chapéu” de ir ser representante do MEC no Conselho Copordendor da CNAC, e a que me referi acima. E foi quando eu estava nessas andanças que mais uma vez escalei a minha “rebelião” para ir continuar os meus estudos.
E FINALMENTE a ministra, sempre sensata e contra a vontade de alguns, me autorizou a ir continuar os meus estudos. E instruiu que devia ir com o meu salário por inteiro até concluir os estudos universitários e regressar ao Ministério (ao qual não regressei mais pois findo o curso fiquei docente na UEM, também contra a vontade de alguns no MEC, mas com a anuência dela ao pedido do Reitor Ganhão para eu ser docente naquela instituiçao).
Ao retomar os estudos decidi que não iria procurar entrar na universidade pela “via rápida” dos cursos para “trabalhadores de vanguarda” (veja Estaca I). De resto eu não era dos tais, e até tinha qualificações académicas que se eu quisesse ir pelas engenharias até poderia me candidatar a uma Faculdade e possivelmente entrar.
Tendo me rendido que havia perdido a pedalada com a electrotecnia, e tendo ganho novas paixões a partir das vivências que tive pelo país real, o meu coração havia morrido de amores com assuntos de economia e desenvolvimento rural. Decidi que iria voltar ao ensino secundário pré-universitário e começar tudo de novo sem corta-matos, constuir bases académicas sólidas, e ir fazer um curso de economia. Retomei a partir da 11a Classe do ensino geral na escola Francisco Manyanga (adorei esse tempo) e depois segui para o curso de economia na UEM pela via normal.
Estamos em 1980. E aquí termina o “meu 8 de Março” que havia começado em 1977.
Portanto, excluindo so ‘flashbakcs” e “detours”, o “meu 8 de Março”, todo esse detas sete Esyacas durou somente 3 anos (três, não treze!).
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[POSTSCRIPT] Mais tarde, cerca de dez anos depois, já eu tinha ido a UEM, feito o Bacharelato em economia, e me especializado na Inglaterra como economista agrário, e já na ponta final da minha parte de assistente na UEM, veio uma “delegação” do partido FRELIMO para minha casa. Não vou mencionar nomes pois são pessoas ativas na FRELIMO e o meu objetivo não é criar controvérsia. Creio que foi em 1990. Um havia sido meu colega na Escola Industrial 1º de Maio nos anos 70. Esses visitantes disseram na altura (não sei se verdade ou não), que haviam sido enviados por “alguém da direção máxima do partido FRELIMO” para me convidar a ser membro daquela organização. Eu já nunca mais vinha pensando em política partidária, apesar de permanecer um “irrequieto” como economista. Eu estava concentrado nas minhas atividades académicas e no desenvolvimento da minha carreira como economista, depois dessas peripécias todas das sete Estacas. Em resposta lembrei-lhes os eventos de 1978-79, e disse-lhes que desde essa altura nunca mais voltei a pensar em pertencer ao partido FRELIMO ou a qualquer outro partido político, e que fossem dizer isso a tal “alguém da direção máxima do partido”. Sairam cabisbaixos.
[POSTSCRIPT] Mais tarde, cerca de dez anos depois, já eu tinha ido a UEM, feito o Bacharelato em economia, e me especializado na Inglaterra como economista agrário, e já na ponta final da minha parte de assistente na UEM, veio uma “delegação” do partido FRELIMO para minha casa. Não vou mencionar nomes pois são pessoas ativas na FRELIMO e o meu objetivo não é criar controvérsia. Creio que foi em 1990. Um havia sido meu colega na Escola Industrial 1º de Maio nos anos 70. Esses visitantes disseram na altura (não sei se verdade ou não), que haviam sido enviados por “alguém da direção máxima do partido FRELIMO” para me convidar a ser membro daquela organização. Eu já nunca mais vinha pensando em política partidária, apesar de permanecer um “irrequieto” como economista. Eu estava concentrado nas minhas atividades académicas e no desenvolvimento da minha carreira como economista, depois dessas peripécias todas das sete Estacas. Em resposta lembrei-lhes os eventos de 1978-79, e disse-lhes que desde essa altura nunca mais voltei a pensar em pertencer ao partido FRELIMO ou a qualquer outro partido político, e que fossem dizer isso a tal “alguém da direção máxima do partido”. Sairam cabisbaixos.
Esta série de Estacas fecha amanhão com a Estaca VIII – Em jeito de uma não-conclusão: a ponta inicial do fio conductor (08-03-2018).
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