É POSSÍVEL QUE O
“PAI” DA DEMOCRACIA NÃO CONHEÇA SUA FILHA?
Em tom de celebração de vitória, começando por recordar os
principais passos que marcaram o percurso das negociações entre os presidentes
da República e da Renamo, Filipe Nyusi anunciou, no dia 7 do mês em curso, os
consensos alcançados no domínio da descentralização.
Considerando as mediocridades que desde o princípio marcaram
a nossa história democrática e, julgando que as reivindicações da Renamo e de Afonso Dhlakama
visavam corrigir tais mediocridades através de um acordo sobre novas regras e
práticas sobre a conquista e manutenção de poder político, quando o Presidente
da República lia solenemente os conteúdos dos consensos alcançados, me questionava
se o “Pai” da democracia não estaria equivocado sobre o seu “Filho”.
É indiscutível que sem o sistema dos partidos políticos não
há possibilidade do exercício do regime democrático: são os partidos políticos
que recrutam e preparam os dirigentes políticos que, depois, os apresentam para
serem eleitos dirigentes máximos da nação, ou para assumirem outras funções
públicas; os partidos políticos são a “caixa negra” de David Easton, onde os
cidadãos, as organizações não governativas e os outros vários grupos sociais
colocam as suas manifestações de apoio ou de contestação (inputs) que serão, depois, transformados em programa político (outputs) a ser apresentado na altura dos partidos políticos pedir o voto,
ou em políticas públicas (outcomes),
no curso da governação.
Todavia, para merecer a designação de democrático, no
verdadeiro sentido da palavra, um sistema político, além de garantir a
existência e funcionamento adequado do jogo dialéctico entre as várias
formações políticas, deve também criar espaço para o exercício da dialéctica
entre os partidos políticos e os eleitores, garantindo que o papel do
eleitorado não se limite apenas em chancelar os interesses dos partidos
políticos, algumas vezes resultantes de concertações perversas, mas sirva de
contrapeso quando, por equívoco, os políticos perdem a vereda do interesse
colectivo e focalizam as próprias atenções nos interesses partidários. A
eliminação da eleição directa dos presidentes dos Municípios e o consenso que
impede a eleição directa dos Governadores e Administradores tira do pouco ou do
quase nada que existia da possibilidade do eleitorado opor-se aos interesses
exclusivos dos partidos políticos, em detrimento do interesse comum.
Por sua vez, a descentralização visa, em sistemas
democráticos, não à partilha de poder entre partidos políticos, nem a uma
subordinação hierárquica, de baixo para cima da pirâmide, mas à devolução aos
poderes locais da autonomia nas decisões sobre certas matérias políticas,
administrativas e económicas, de forma a garantir uma relação dialéctica de
pesos e contrapesos entre o governo central e os governos locais. A eliminação
da eleição directa do Presidente do Município diminui ainda mais a precária autonomia que as autoridades
locais tinham e, por conseguinte, a chefia da Província “por um Governador nomeado pelo Presidente da República, sob proposta
apresentada pelo partido político, coligação de partidos políticos
ou grupo de cidadãos eleitores que obtiver maioria de votos nas eleições
para a assembleia provincial” não trás nenhum progresso institucional na política moçambicana.
O Moçambique que o Presidente da Renamo diz que “vai ser
diferente de Moçambique de hoje”, claro que vai ser deferente porque, além dos
lugares que a Renamo e Afonso Dhlakama sempre esperam obter na Assembleia da
República, o novo consenso assegura-lhes outras posições. A Frelimo, cuja
agenda é ainda aquela de excluir todos aqueles que não se deixam condicionar
mostrou-se, por enquanto, disposta a ceder algumas migalhas do poder à Renamo porque
se não Dhlakama vai bloquear as vias de comunicação e atacar os civis.
Ao dizer que o acordo conseguido com a Frelimo “vai permitir
mesmo que um partido não consiga chegar ao poder central, pequenos partidos
terão oportunidade de governar províncias” (Savana, nº 1257/2018), Dhlakama
mostra claramente que a sua agenda nas correntes negociações não tem nada a ver
com o seu “Filho”, mas com a “oportunidade de governar”, mesmo que isso
implique sacrificar o seu “Filho”.
Enquanto a maioria dos Moçambicanos esperava que fosse desta
vez em que se ia corrigir aquela redundância de ter na mesma cidade um
presidente do Município e um Administrador, os quais só passam a vida a
atropelar-se um ao outro (enquanto o Estado vai gastando por eles os recursos
que não os temos), a Renamo e Afonso Dhlakama ―
impedindo qualquer forma de debate público ― condenaram as províncias a
um desagradável casamento entre a nova figura de Secretariado de Estado e o
Governador.
As províncias que terão a “desgraça” de ser governadas por
um partido de oposição, poderão testemunhar o fenómeno do ensombramento da figura do Governador, e a emergência da
figura do Secretário de Estado, o qual, além do apoio político, poderá contar
também com o controlo dos recursos económicos e os meios de produção.
Ampliar-se-á, assim, o número de chorões que passarão o tempo todo a cantar a
ladainha da lamentação porque o governo central congela os recursos operativos.
Como bem disse o Presidente da República no seu anúncio do
consenso “o Governador responderá diretamente à Assembleia Provincial”. Além de
pecar pela ineficiência ― como acima demonstramos ―, este sistema contém também
um elevado potencial de instabilidade política. Os governadores que não tiverem
maiorias absolutas nas Assembleias Províncias e, por isso, precisarem de coligações
com outros partidos para serem propostos à nomeação, da parte do Presidente da República,
poderão estar constantemente sob pressão de ameaças de retirada da coligação, o
que poderá ditar a paralisação da governação ou a queda do governo provincial,
por falta de apoio dos partidos de coligação.
Dhlakama e a Renamo deveriam ter já aprendido que o papel
que acreditam que a história lhes reserva, de serem os catalisadores da
resistência contra a constante tentação que o partido no poder tem, de esvaziar
os ganhos democráticos e reconsolidar o autoritarismo e o absolutismo, não se
compadece com o vício ― copiado da Frelimo ― de julgar que o simples facto de
terem empunhado em armas (as quais eram muitas vezes utilizadas para roubar e
destruir bens alheios, ou para ceifar vidas inocentes), automaticamente conquistaram
o direito exclusivo de baratar os destinos do país a seu bel prazer.
Percebe-se perfeitamente porquê é que o Presidente Nyusi leu
o anúncio dos consensos como se estivesse a fazer uma narrativa de vitória. O
regresso de Dhlakama às matas de Gorongosa, que parecia ter o potencial para forçar
a Frelimo a redimensionar a sua nociva governação de tipo absolutista,
revelou-se ser uma boa oportunidade para a Frelimo capitalizar. Doravante não
será só o ex-presidente Joaquim Chissano a orgulhar-se de ter enganado Dhlakama.
Terminado o seu mandato, Nyusi também tem de que orgulhar-se: aquele mesmo
homem e as suas reivindicações que pareciam o maior desafio da sua carreira
política e do seu predomínio no seio do próprio partido, tornaram-se o seu
trampolim. Ao narrar esta peripécia dirá que a sua astúcia consistiu em
negociar e conseguir o afastamento da Sociedade Civil, dos Religiosos, da
mediação nacional e internacional, para depois defraudar o ingénuo Dhlakama.
Quando Dhlakama diz que “outras coisas poderão ser corrigidas
no futuro” mostra apenas que ainda não percebeu a agenda da Frelimo, que
enquanto todos os moçambicanos, pacientemente, esperam um progresso
institucional, o partido no poder está empenhado na reconsolidação do absolutismo e, muitas vezes, usando as
próprias reivindicações de Dhlakama e da Renamo para formalizar os passos do
seu programa.
O Documento do consenso Frelimo-Renamo sobre a
descentralização já está na Assembleia da República, onde os senhores marionetes,
enriquecidos pelo sangue e suor dos moçambicanos, estão à espera para discutir
e decidir o que já foi discutido e decidido. O que gostaria de ver – embora
saiba que estou proibido de ver – era uma enorme moldura de gente em frente da
Assembleia da República e das Assembleias Provinciais a dizer “NÃO” aos
consensos anunciados, e “NÃO”, não
queremos ser representados por fantoches.
Alfredo
Manhiça
FUNCIONÁRIOS FANTASMAS, SIM!
E AS CONTABILIDADES, OS PAGADORES E OS SECTORES DE RECURSOS HUMANOS, TAMBÉM
FANTASMAS?
Quando, no dia 1 de Março de 2014, a III Sessão Ordinária do Comité Central (CC) do partido Frelimo
elegeu Filipe Jacinto Nyusi para candidato do partido na corrida à Presidência da República e,
Armando Guebuza, exuberantemente, exultou de alegria, a imprensa nacional (Cfr. SAVANA, 1052,
de 7 de Março de 2014) e muitos analistas da política moçambicana, “ingenuamente”, acreditaram
que Guebuza estava satisfeito porque via na vitória de Nyusi, face aos outros pré-candidatos – José
Pacheco e Alberto Vaquina – propostos pela Comissão Política, e os outros dois – Luísa Diogo e Aires
Ali – que apareceram no decurso do CC, a materialização da sua alocução feita no lançamento do
processo eleitoral, um dia antes.
Nesse discurso, Guebuza dissera que o acto eleitoral tinha a ver com “a capacidade da
cinquentenária Frelimo de selecionar democraticamente aquele que, dentre os melhores, oferecia
garantias efectivas de encarnar o espírito por detrás de 25 de Junho”, data da fundação da Frelimo,
em 1962. E, dado que Nyusi foi aluno da Escola Primária da Frelimo em Tunduru (Tanzânia), da Escola
Secundária da Frelimo em Mariri (Cabo Delgado), e teve a sua formação militar no Centro de
Preparação Político-Militar de Nachingwea, era percebido como o melhor garante da continuidade
que Guebuza, supostamente, procurava.
Depois da descoberta e do conhecimento mínimo dos contornos que tiveram as avultadas dívidas
ocultas a favor das empresas EMATUM (Empresa Moçambicana de Atum), Proindicus (criada para
actividades de protecção costeira) e MAM (Mozambique Asset Management), avalizadas pelo
Governo de Armando Guebuza, à revelia da Assembleia da República (AR), dos organismos
financeiros internacionais e dos doadores, ficou claro que a exuberância de Guebuza, a quando da
eleição de Nyusi, tinha outras motivações.
Aquela eleição marcava um momento significativo para a história da política moçambicana, não
tanto porque dava a conhecer o candidato que tornar-se-ia, depois, o vencedor das V Eleições
Presidenciais, na história do país, mas porque colocava no sistema a peça que faltava para desnudar
as possíveis remanescentes dúvidas sobre a atipicidade do Estado moçambicano. Fazendo eleger
Nyusi para candidato do seu partido, nas eleições presidenciais, Armando Guebuza tinha conseguido
unir, na mesma pessoa de Filipe Nyusi, as figuras de mais alto Magistrado e de réu, no caso das
“dívidas ocultas”, onde aquele (Guebuza) figuraria como o principal arguido.
Nesta linha de raciocínio, a importante nota de imprensa do Fundo Monetário Internacional (FMI),
emitida no dia 24 de Junho de 2016, que exige uma auditoria internacional e independente às
empresas que se beneficiaram das dívidas ocultas e avalizadas pelo governo, à revelia da AR e das
organizações financeiras internacionais, poderia ser lida, não só como uma indicação clara da
desconfiança em relação ao sistema judiciário nacional, mas também uma denúncia da
impossibilidade do mais alto Magistrado moçambicano - por ser cúmplice - de sindicar os actos
executados pela precedente administração pública.
Guebuza devia, efectivamente, rejubilar pela eleição de Nhysi para candidato da presidência da
República porque tinha conseguido, graças à associação da figura do réu-cúmplice à figura do mais
alto Magistrado, bloquear qualquer possível responsabilização pelo crime que, com certeza,
suspeitava ser o mais difícil de ocultar, sobretudo depois de terminar o seu mandato na presidência
da República.
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Com a sua astúcia, Guebuza coagiu o “Empregado Filipe Nyusi” a transferir o ônus de pagar as
dívidas ocultas, de todos os seus contraentes e beneficiários – contra a sua vontade, segundo alguns
– para o seu “Patrão Povo”.
Todavia, para os moçambicanos, a importância deste episódio, não deve ser vista unicamente a
partir do prisma da insustentabilidade das dívidas ocultas, que se tornaram públicas mas, sobretudo,
por ser uma macro-manifestação do fracasso do ideal de Estado e, portanto, do ideal de sociedade
humana; uma macro-manifestação de uma generalizada anormalidade do funcionamento do Estado
e das respectivas instituições públicas.
De facto, em vários aspectos da sua micro-administração ordinária, o governo do Presidente Nyusi
revela uma acentuada falta de legitimidade para sindicar, não só os actos da administração
precedente, mas também os da actual. Quando na Terça-feira, dia 5 do Mês em curso, o porta-voz do
Conselho de Ministros, Mouzinho Saíde, apareceu em público a anunciar que a XXII Sessão Ordinária
daquele organismo tinha decidido suspender os salários dos 26467 funcionários e agentes do Estado
que não fizeram a prova de vida, no ano passado, certamente que muitos moçambicanos -
sobretudo os que se submeteram a esta prova –, além do anúncio de uma ulterior chance para quem
não o tivesse feito, esperavam ouvir, do porta-voz do Conselho de Ministro, as medidas que o
Governo iria tomar depois de determinar o número definitivo dos “funcionários e agentes do Estado
fantasmas”, visto que os Sectores de contabilidade, os contabilistas que pagam tais “indivíduos” e os
respectivos sectores dos Recursos Humanos (responsáveis pela contratação), não são fantasmas.
É pouco provável pensar que o Conselho de Ministros não tenha anunciado tais medidas por estar
convencido que, uma vez congelados os vencimentos, os 26467 faltosos iriam, efectivamente,
apresentar-se para fazer a prova. Pode ser que um e outro funcionário ou agente do Estado não
tenha feito a prova no tempo útil, por negligência, simplesmente porque foi habituado a não ver e a
não sentir as vantagens da observação das normas/leis, ou as desvantagens da inobservância. Aliás,
muitas vezes parece que os inobservantes é que são premiados, enquanto os observantes são
punidos.
O mais provável, portanto, é que o Conselho de Ministros tenha, deliberadamente, omitido a
questão sobre as medidas a serem tomadas depois da determinação do número definitivo dos
“trabalhadores fantasmas” porque, na maioria dos casos, os vencimentos dos “trabalhadores
fantasmas” são canalizados para os bolsos dos altos dirigentes da função pública, como autocompensação
pelo “excelente trabalho” que estes têm sempre feito (prejudicando o “patrão” de
Filipe Nyusi) em favor do partido no governo, nos próprios locais de trabalho.
Se se considerasse o modo como a Comissão Nacional de Eleições, a Polícia da República de
Moçambique, o Conselho Constitucional e todas as outras instituições públicas que estiveram
envolvidas no processo eleitoral, conduziram o processo eleitoral de 2014, poder-se-ia concluir que,
em certa medida, Nyusi é criação também dos altos dirigentes que, no exercício das próprias
funções, contribuíram para a vitória do partido no poder e, por isso, estes têm a máxima certeza de
poderem, impunemente, se auto-remunerarem, por exemplo, com os vencimentos dos ditos
“trabalhadores fantasmas”.
A situação da ilegitimidade na qual se encontra o governo de Nyusi, obriga-o a sanar como legal o
ilegal. Esta é, por conseguinte, a missão a que foi confiado o primeiro-ministro, Carlos Agostinho do
Rosário que, depois de apresentar a Conta Geral do Estado referente ao Exercício Económico de
2014, pediu à AR que aprovasse a inclusão, naquele dispositivo do exercício económico de 2014, as
dívidas de cerca de 1.4 mil milhões de dólares, independentemente do desenvolvimento que o caso
poderia conhecer, resultante da auscultação em curso (pela Procuradoria-Geral da República) dos
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representantes das empresas EMATUM, Proindicus e MAM, e outros arquitectos da contratação e
posterior ocultação das dívidas em causa.
A bancada do partido no poder, que sempre considerou normal a anormal situação política
caracterizada pela sujeição do Parlamento, por parte do Executivo, não só não sente o próprio
orgulho ferido por um Governo que ousa contrair dívidas avultadas sem o seu aval (na qualidade de
representantes dos eleitores), mas também acha normal incluir na Conta do Estado as tais dívidas
cujos contornos ainda não são totalmente conhecidos.
Até onde iremos chegar com a nossa anormalidade? O professor José Jaime Macuane foi indicado
para ser posto coxo, depois de alertar sobre a impossibilidade de perpetuar o modelo anormal do
funcionamento do Estado e, depois disso, talvez ninguém esteja disposto a ter a sua sorte, mas, até
quanto resistiremos o isolamento? Até quando continuaremos a sobreviver à margem do sistema,
num mundo cada vez mais integrado?
Alfredo Manhiça
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