sábado, 3 de março de 2018

É POSSÍVEL QUE O “PAI” DA DEMOCRACIA NÃO CONHEÇA SUA FILHA? - Por Alfredo Manhiça


É POSSÍVEL QUE O “PAI” DA DEMOCRACIA NÃO CONHEÇA SUA FILHA?

Em tom de celebração de vitória, começando por recordar os principais passos que marcaram o percurso das negociações entre os presidentes da República e da Renamo, Filipe Nyusi anunciou, no dia 7 do mês em curso, os consensos alcançados no domínio da descentralização.

Considerando as mediocridades que desde o princípio marcaram a nossa história democrática e, julgando que as  reivindicações da Renamo e de Afonso Dhlakama visavam corrigir tais mediocridades através de um acordo sobre novas regras e práticas sobre a conquista e manutenção de poder político, quando o Presidente da República lia solenemente os conteúdos dos consensos alcançados, me questionava se o “Pai” da democracia não estaria equivocado sobre o seu “Filho”.

É indiscutível que sem o sistema dos partidos políticos não há possibilidade do exercício do regime democrático: são os partidos políticos que recrutam e preparam os dirigentes políticos que, depois, os apresentam para serem eleitos dirigentes máximos da nação, ou para assumirem outras funções públicas; os partidos políticos são a “caixa negra” de David Easton, onde os cidadãos, as organizações não governativas e os outros vários grupos sociais colocam as suas manifestações de apoio ou de contestação (inputs) que serão, depois, transformados em programa político (outputs) a ser apresentado na altura dos partidos políticos pedir o voto, ou em políticas públicas (outcomes), no curso da governação.

Todavia, para merecer a designação de democrático, no verdadeiro sentido da palavra, um sistema político, além de garantir a existência e funcionamento adequado do jogo dialéctico entre as várias formações políticas, deve também criar espaço para o exercício da dialéctica entre os partidos políticos e os eleitores, garantindo que o papel do eleitorado não se limite apenas em chancelar os interesses dos partidos políticos, algumas vezes resultantes de concertações perversas, mas sirva de contrapeso quando, por equívoco, os políticos perdem a vereda do interesse colectivo e focalizam as próprias atenções nos interesses partidários. A eliminação da eleição directa dos presidentes dos Municípios e o consenso que impede a eleição directa dos Governadores e Administradores tira do pouco ou do quase nada que existia da possibilidade do eleitorado opor-se aos interesses exclusivos dos partidos políticos, em detrimento do interesse comum.   

Por sua vez, a descentralização visa, em sistemas democráticos, não à partilha de poder entre partidos políticos, nem a uma subordinação hierárquica, de baixo para cima da pirâmide, mas à devolução aos poderes locais da autonomia nas decisões sobre certas matérias políticas, administrativas e económicas, de forma a garantir uma relação dialéctica de pesos e contrapesos entre o governo central e os governos locais. A eliminação da eleição directa do Presidente do Município diminui ainda mais  a precária autonomia que as autoridades locais tinham e, por conseguinte, a chefia da Província “por um Governador nomeado pelo Presidente da República, sob proposta apresentada pelo partido político, coligação de partidos políticos ou grupo de cidadãos eleitores que obtiver maioria de votos nas eleições para a assembleia provincial” não trás nenhum progresso institucional na política moçambicana.

O Moçambique que o Presidente da Renamo diz que “vai ser diferente de Moçambique de hoje”, claro que vai ser deferente porque, além dos lugares que a Renamo e Afonso Dhlakama sempre esperam obter na Assembleia da República, o novo consenso assegura-lhes outras posições. A Frelimo, cuja agenda é ainda aquela de excluir todos aqueles que não se deixam condicionar mostrou-se, por enquanto, disposta a ceder algumas migalhas do poder à Renamo porque se não Dhlakama vai bloquear as vias de comunicação e atacar os civis.

Ao dizer que o acordo conseguido com a Frelimo “vai permitir mesmo que um partido não consiga chegar ao poder central, pequenos partidos terão oportunidade de governar províncias” (Savana, nº 1257/2018), Dhlakama mostra claramente que a sua agenda nas correntes negociações não tem nada a ver com o seu “Filho”, mas com a “oportunidade de governar”, mesmo que isso implique sacrificar o seu “Filho”.

Enquanto a maioria dos Moçambicanos esperava que fosse desta vez em que se ia corrigir aquela redundância de ter na mesma cidade um presidente do Município e um Administrador, os quais só passam a vida a atropelar-se um ao outro (enquanto o Estado vai gastando por eles os recursos que não os temos), a Renamo e Afonso Dhlakama ―  impedindo qualquer forma de debate público ― condenaram as províncias a um desagradável casamento entre a nova figura de Secretariado de Estado e o Governador.

As províncias que terão a “desgraça” de ser governadas por um partido de oposição, poderão testemunhar o fenómeno do ensombramento  da figura do Governador, e a emergência da figura do Secretário de Estado, o qual, além do apoio político, poderá contar também com o controlo dos recursos económicos e os meios de produção. Ampliar-se-á, assim, o número de chorões que passarão o tempo todo a cantar a ladainha da lamentação porque o governo central congela os recursos operativos.

Como bem disse o Presidente da República no seu anúncio do consenso “o Governador responderá diretamente à Assembleia Provincial”. Além de pecar pela ineficiência ― como acima demonstramos ―, este sistema contém também um elevado potencial de instabilidade política. Os governadores que não tiverem maiorias absolutas nas Assembleias Províncias e, por isso, precisarem de coligações com outros partidos para serem propostos à nomeação, da parte do Presidente da República, poderão estar constantemente sob pressão de ameaças de retirada da coligação, o que poderá ditar a paralisação da governação ou a queda do governo provincial, por falta de apoio dos partidos de coligação.

Dhlakama e a Renamo deveriam ter já aprendido que o papel que acreditam que a história lhes reserva, de serem os catalisadores da resistência contra a constante tentação que o partido no poder tem, de esvaziar os ganhos democráticos e reconsolidar o autoritarismo e o absolutismo, não se compadece com o vício ― copiado da Frelimo ― de julgar que o simples facto de terem empunhado em armas (as quais eram muitas vezes utilizadas para roubar e destruir bens alheios, ou para ceifar vidas inocentes), automaticamente conquistaram o direito exclusivo de baratar os destinos do país a seu bel prazer.

Percebe-se perfeitamente porquê é que o Presidente Nyusi leu o anúncio dos consensos como se estivesse a fazer uma narrativa de vitória. O regresso de Dhlakama às matas de Gorongosa, que parecia ter o potencial para forçar a Frelimo a redimensionar a sua nociva governação de tipo absolutista, revelou-se ser uma boa oportunidade para a Frelimo capitalizar. Doravante não será só o ex-presidente Joaquim Chissano a orgulhar-se de ter enganado Dhlakama. Terminado o seu mandato, Nyusi também tem de que orgulhar-se: aquele mesmo homem e as suas reivindicações que pareciam o maior desafio da sua carreira política e do seu predomínio no seio do próprio partido, tornaram-se o seu trampolim. Ao narrar esta peripécia dirá que a sua astúcia consistiu em negociar e conseguir o afastamento da Sociedade Civil, dos Religiosos, da mediação nacional e internacional, para depois defraudar o ingénuo  Dhlakama.

Quando Dhlakama diz que “outras coisas poderão ser corrigidas no futuro” mostra apenas que ainda não percebeu a agenda da Frelimo, que enquanto todos os moçambicanos, pacientemente, esperam um progresso institucional, o partido no poder está empenhado na reconsolidação  do absolutismo e, muitas vezes, usando as próprias reivindicações de Dhlakama e da Renamo para formalizar os passos do seu programa.

O Documento do consenso Frelimo-Renamo sobre a descentralização já está na Assembleia da República, onde os senhores marionetes, enriquecidos pelo sangue e suor dos moçambicanos, estão à espera para discutir e decidir o que já foi discutido e decidido. O que gostaria de ver – embora saiba que estou proibido de ver – era uma enorme moldura de gente em frente da Assembleia da República e das Assembleias Provinciais a dizer “NÃO” aos consensos anunciados, e “NÃO”,  não queremos ser representados por fantoches.


                                                                                         Alfredo Manhiça

FUNCIONÁRIOS FANTASMAS, SIM! E AS CONTABILIDADES, OS PAGADORES E OS SECTORES DE RECURSOS HUMANOS, TAMBÉM FANTASMAS? 

Quando, no dia 1 de Março de 2014, a III Sessão Ordinária do Comité Central (CC) do partido Frelimo elegeu Filipe Jacinto Nyusi para candidato do partido na corrida à Presidência da República e, Armando Guebuza, exuberantemente, exultou de alegria, a imprensa nacional (Cfr. SAVANA, 1052, de 7 de Março de 2014) e muitos analistas da política moçambicana, “ingenuamente”, acreditaram que Guebuza estava satisfeito porque via na vitória de Nyusi, face aos outros pré-candidatos – José Pacheco e Alberto Vaquina – propostos pela Comissão Política, e os outros dois – Luísa Diogo e Aires Ali – que apareceram no decurso do CC, a materialização da sua alocução feita no lançamento do processo eleitoral, um dia antes. Nesse discurso, Guebuza dissera que o acto eleitoral tinha a ver com “a capacidade da cinquentenária Frelimo de selecionar democraticamente aquele que, dentre os melhores, oferecia garantias efectivas de encarnar o espírito por detrás de 25 de Junho”, data da fundação da Frelimo, em 1962. E, dado que Nyusi foi aluno da Escola Primária da Frelimo em Tunduru (Tanzânia), da Escola Secundária da Frelimo em Mariri (Cabo Delgado), e teve a sua formação militar no Centro de Preparação Político-Militar de Nachingwea, era percebido como o melhor garante da continuidade que Guebuza, supostamente, procurava. Depois da descoberta e do conhecimento mínimo dos contornos que tiveram as avultadas dívidas ocultas a favor das empresas EMATUM (Empresa Moçambicana de Atum), Proindicus (criada para actividades de protecção costeira) e MAM (Mozambique Asset Management), avalizadas pelo Governo de Armando Guebuza, à revelia da Assembleia da República (AR), dos organismos financeiros internacionais e dos doadores, ficou claro que a exuberância de Guebuza, a quando da eleição de Nyusi, tinha outras motivações. Aquela eleição marcava um momento significativo para a história da política moçambicana, não tanto porque dava a conhecer o candidato que tornar-se-ia, depois, o vencedor das V Eleições Presidenciais, na história do país, mas porque colocava no sistema a peça que faltava para desnudar as possíveis remanescentes dúvidas sobre a atipicidade do Estado moçambicano. Fazendo eleger Nyusi para candidato do seu partido, nas eleições presidenciais, Armando Guebuza tinha conseguido unir, na mesma pessoa de Filipe Nyusi, as figuras de mais alto Magistrado e de réu, no caso das “dívidas ocultas”, onde aquele (Guebuza) figuraria como o principal arguido. Nesta linha de raciocínio, a importante nota de imprensa do Fundo Monetário Internacional (FMI), emitida no dia 24 de Junho de 2016, que exige uma auditoria internacional e independente às empresas que se beneficiaram das dívidas ocultas e avalizadas pelo governo, à revelia da AR e das organizações financeiras internacionais, poderia ser lida, não só como uma indicação clara da desconfiança em relação ao sistema judiciário nacional, mas também uma denúncia da impossibilidade do mais alto Magistrado moçambicano - por ser cúmplice - de sindicar os actos executados pela precedente administração pública. Guebuza devia, efectivamente, rejubilar pela eleição de Nhysi para candidato da presidência da República porque tinha conseguido, graças à associação da figura do réu-cúmplice à figura do mais alto Magistrado, bloquear qualquer possível responsabilização pelo crime que, com certeza, suspeitava ser o mais difícil de ocultar, sobretudo depois de terminar o seu mandato na presidência da República. 2 Com a sua astúcia, Guebuza coagiu o “Empregado Filipe Nyusi” a transferir o ônus de pagar as dívidas ocultas, de todos os seus contraentes e beneficiários – contra a sua vontade, segundo alguns – para o seu “Patrão Povo”. Todavia, para os moçambicanos, a importância deste episódio, não deve ser vista unicamente a partir do prisma da insustentabilidade das dívidas ocultas, que se tornaram públicas mas, sobretudo, por ser uma macro-manifestação do fracasso do ideal de Estado e, portanto, do ideal de sociedade humana; uma macro-manifestação de uma generalizada anormalidade do funcionamento do Estado e das respectivas instituições públicas. De facto, em vários aspectos da sua micro-administração ordinária, o governo do Presidente Nyusi revela uma acentuada falta de legitimidade para sindicar, não só os actos da administração precedente, mas também os da actual. Quando na Terça-feira, dia 5 do Mês em curso, o porta-voz do Conselho de Ministros, Mouzinho Saíde, apareceu em público a anunciar que a XXII Sessão Ordinária daquele organismo tinha decidido suspender os salários dos 26467 funcionários e agentes do Estado que não fizeram a prova de vida, no ano passado, certamente que muitos moçambicanos - sobretudo os que se submeteram a esta prova –, além do anúncio de uma ulterior chance para quem não o tivesse feito, esperavam ouvir, do porta-voz do Conselho de Ministro, as medidas que o Governo iria tomar depois de determinar o número definitivo dos “funcionários e agentes do Estado fantasmas”, visto que os Sectores de contabilidade, os contabilistas que pagam tais “indivíduos” e os respectivos sectores dos Recursos Humanos (responsáveis pela contratação), não são fantasmas. É pouco provável pensar que o Conselho de Ministros não tenha anunciado tais medidas por estar convencido que, uma vez congelados os vencimentos, os 26467 faltosos iriam, efectivamente, apresentar-se para fazer a prova. Pode ser que um e outro funcionário ou agente do Estado não tenha feito a prova no tempo útil, por negligência, simplesmente porque foi habituado a não ver e a não sentir as vantagens da observação das normas/leis, ou as desvantagens da inobservância. Aliás, muitas vezes parece que os inobservantes é que são premiados, enquanto os observantes são punidos. O mais provável, portanto, é que o Conselho de Ministros tenha, deliberadamente, omitido a questão sobre as medidas a serem tomadas depois da determinação do número definitivo dos “trabalhadores fantasmas” porque, na maioria dos casos, os vencimentos dos “trabalhadores fantasmas” são canalizados para os bolsos dos altos dirigentes da função pública, como autocompensação pelo “excelente trabalho” que estes têm sempre feito (prejudicando o “patrão” de Filipe Nyusi) em favor do partido no governo, nos próprios locais de trabalho. Se se considerasse o modo como a Comissão Nacional de Eleições, a Polícia da República de Moçambique, o Conselho Constitucional e todas as outras instituições públicas que estiveram envolvidas no processo eleitoral, conduziram o processo eleitoral de 2014, poder-se-ia concluir que, em certa medida, Nyusi é criação também dos altos dirigentes que, no exercício das próprias funções, contribuíram para a vitória do partido no poder e, por isso, estes têm a máxima certeza de poderem, impunemente, se auto-remunerarem, por exemplo, com os vencimentos dos ditos “trabalhadores fantasmas”. A situação da ilegitimidade na qual se encontra o governo de Nyusi, obriga-o a sanar como legal o ilegal. Esta é, por conseguinte, a missão a que foi confiado o primeiro-ministro, Carlos Agostinho do Rosário que, depois de apresentar a Conta Geral do Estado referente ao Exercício Económico de 2014, pediu à AR que aprovasse a inclusão, naquele dispositivo do exercício económico de 2014, as dívidas de cerca de 1.4 mil milhões de dólares, independentemente do desenvolvimento que o caso poderia conhecer, resultante da auscultação em curso (pela Procuradoria-Geral da República) dos 3 representantes das empresas EMATUM, Proindicus e MAM, e outros arquitectos da contratação e posterior ocultação das dívidas em causa. A bancada do partido no poder, que sempre considerou normal a anormal situação política caracterizada pela sujeição do Parlamento, por parte do Executivo, não só não sente o próprio orgulho ferido por um Governo que ousa contrair dívidas avultadas sem o seu aval (na qualidade de representantes dos eleitores), mas também acha normal incluir na Conta do Estado as tais dívidas cujos contornos ainda não são totalmente conhecidos. Até onde iremos chegar com a nossa anormalidade? O professor José Jaime Macuane foi indicado para ser posto coxo, depois de alertar sobre a impossibilidade de perpetuar o modelo anormal do funcionamento do Estado e, depois disso, talvez ninguém esteja disposto a ter a sua sorte, mas, até quanto resistiremos o isolamento? Até quando continuaremos a sobreviver à margem do sistema, num mundo cada vez mais integrado?

Alfredo Manhiça 


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