quinta-feira, 3 de novembro de 2016

„Titafa titxuvuken“, ou o masoquismo d(n)a crise



Ocorre-me esta expressão idiomática da minha língua materna – xangan – quando vejo o aparente masoquismo com que alguns faceamigos vão compartilhando notícias que dão conta de quão má é a situação do país. A Pérola do Índico está de tangas, os gatunos devem ser presos e seus bens confiscados, somos piores do que a Venezuela, os preços disto mais daquilo vão subir, etc. E eu pergunto-me, sem querer ofender, em que país viveu todo este pessoal até agora? Alguma vez a nossa vida foi normal? Quando é que nunca estivemos perante a difícil tarefa de fazer essa viragem fundamental, mas sempre adiamos porque é mais fácil gastar energia a identificar os culpados? E a viver disso?
“Titafa titxuvuken” traduz-se literalmente por “vão morrer a olhar uma para a outra”. Refere-se ao comportamento de cobras que, no entendimento dos falantes da minha língua materna, preferem, por teimosia, morrer olhando para a outra só para mostrarem coragem do que cederem caminho. Sempre que duas pessoas preferem a teimosia à resolução dum assunto qualquer, empregamos essa expressão. Vejo os cidadãos da Pérola do Índico numa competição fútil com a crise, mas essa crise é, no fundo, uma ilusão fruto duma certa incapacidade em nos questionarmos a nós próprios. Há algo de masoquista nisto que me leva a tentar identificar as suas várias manifestações.
A chamada crise dramatiza apenas algo que todos deviam saber, nomeadamente que o país em que vivem não é aquilo que eles pensam ser, nem nunca foi. Moçambique é potencialmente rico, mas enquanto essa riqueza não for potenciada, Moçambique será um país pobre. Pode ser culpa do governo não conseguir potenciar essa riqueza, mas se você só reclama isso quando tem de apertar o cinto está a ser hipócrita. Se você pensa que a crise é algo em que alguns “gatunos” gananciosos nos meteram você arranjou uma boa maneira de continuar a fingir que vive num país normal.
Se você pensa que os seus problemas começaram no dia em que alguém contraíu dívidas em seu nome sem o seu aval, você anda equivocado em várias coisas: primeiro, você não entende muito bem a estrutura económica do mundo em que vive; segundo, você tem uma relação religiosa com a sua abordagem económica que o leva a pensar que só aquela soluçãozinha que você consegue pensar é a única salvação para o país; terceiro, você não entende lá muito bem o tipo de sistema político em que vive (deve até ser daqueles que acham que o país estaria em melhores mãos com Samora Machel...) e, por isso, não tem sensibilidade para o facto de que quando alguém recebe o mandato do eleitorado para governar ele recebe também, dentro dos limites constitucionais, o direito e a obrigação de agir no interesse do país segundo o seu entendimento disso e, por conseguinte, tomar as medidas que achar necessárias na prossecução desses interesses.
Para mim, a maior crise reside no masoquismo, razão pela qual gostaria, para encerrar, de tentar descrever as suas manifestações na Pérola do Índico. São basicamente quatro essas manifestações:
Masoquismo hipocondríaco – Há gente à quem a crise dá um prazer genuino. São os que pela sua postura intelectual e política sempre questionaram a forma como o país era, é e será gerido, desde o momento que não seja por eles. Não é que eles tenham necessariamente razão. Têm um outro entendimento de como as coisas devem ser feitas baseado em slógans tipo “corrupção”, “bolha” ou “exclusão”. A sua atitude, na verdade, é mais religiosa do que racional. Têm a sua visão do mundo, não arredam pé e ficam basicamente à espera de verem as coisas a andarem mal para poderem dizer “não disse?”. Chamo a isto de masoquismo hipocondríaco porque me lembra a história do hipocondríaco que mandou colocar os seguintes dizeres na sua sepultura: “não vos disse que estava doente?”.
Masoquismo impotente – Este é o prazer que não sente, o prazer dos governantes. Herdaram, acham eles, os males cometidos pelos outros e sentem-se hoje obrigados a gerir uma situação que não é da sua responsabilidade. Dizem eles. É uma atitude tipicamente pérola indiana. O poder atraiu mais do que o sentido de responsabilidade. A Pátria chamou, eles responderam ao chamamento, mas não faziam ideia do que lhes esperava, nem do que iam fazer. Pensavam que fosse ser “business as usual”. Governar, para muitos, é fazer aquilo que sempre se fez. Não é diagnosticar o país e ver o que ele precisa. É apenas governar. A crise aqui é a crise da perplexidade.
Masoquismo oportunista – Há os que durante anos a fio viveram bem – a julgar pelas fotos das viagens, das refeições, das bebedeiras e das mansões que construíram – sem nenhum ideia do país em que realmente vivem. Sentiram-se como se fossem Portugal, França ou Suíça em Moçambique. Nunca quiseram saber donde vinha o dinheiro que lhes permitia tal vida num país com baixos níveis de produtividade, com pouco emprego e vivendo da caridade doadora. Acharam, como todo o afortunado, que eles fossem pessoas especiais e acima da média. Crise para este pessoal é a dor de regressar à realidade e constatar que se calhar o seu próprio bem-estar, ainda que instável, faz parte do problema, não da solução.
Masoquismo lúdico – Há gente que se diverte com tudo isto. É gente a quem a precariedade da vida ensinou a ser cínica como forma de se proteger das decepções que ser pérola indiano e africano traz consigo. Cada novo sinal de desaire ou decepção é a confirmação de quão prudente é ser cínico. Há algo profundamente “africano” neste tipo de masoquismo, pois revela esta capacidade única, e ímpar, de se rir de si próprio. Não é resignação, nem fatalismo. É uma mistura do “carpe diem” romano, do hedonismo grego acrescido de traços da divindade “Dionísio” sob o pano de fundo daquela característica bem africana descrita por Ahmadou Kourouma (em “Quando on refuse on dit non”) em referência ao filho da esposa preferida do polígamo. O africano sabe que é enteado da História e vive só para a irritar.
Masoquismo imbecil – Por último tem o masoquismo imbecil. Este descreve o prazer daqueles que não sabem porque esta crise é necessariamente pior do que a crise que toda a sua vida tem sido. Acham que pelo facto de outros reclamarem da vida eles também devem reclamar. Para eles ter acesso à electricidade significou sempre fazer um sacrifício suplementar que deixava sempre aquele sabor amargo na boca no fim do mês, pois perguntavam-se de que maneira é que os seus níveis de consumo teriam contribuído para a melhoria das suas próprias vidas. A crise para estes é apenas a oportunidade de reclamarem em côro.
Uma grande incógnita, mas algo profundamente sintomático, é que neste momento de “crise” nenhum partido de oposição apareceu com um programa (mesmo mal desenhado) sobre como salvar o país, ou alguém viu isso? Nem mesmo os críticos de plantão que só se limitam a exigir a responsabilização dos gatunos ou a repetir aquilo que devia ter sido feito, mas não foi... curioso! É mesmo: titafa titxuvuken. É caso para cantar com Zahara para os céus “Phendula” (responda-me)...
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