Opinião
A
fome e outras formas de insegurança alimentar e nutricional coexistem
em diversos contextos numa relação de cumplicidade viciosa. Embora a
realidade demonstre que nem todas as situações de insegurança alimentar
conduzam à emergência de conflitos (armados e não armados), há estudos
que revelam os indícios de uma relação íntima de retroalimentação: a
fome pode conduzir à guerra e outras formas de conflito, e estas por sua
vez destroem o tecido social e económico, enfraquecendo a capacidade
produtiva e a estabilidade da disponibilidade de alimentos.
A
miséria absoluta, aliada à descrença sobre o futuro, é um estimulante
de conflitualidade. Por isso, a maioria dos conflitos grassa em países
com baixos índices de desenvolvimento. É nestes países que vivem cerca
de 90% das pessoas que passam fome no mundo, estimado em perto de 800
milhões de pessoas.
Ao
analisar as regiões com as situações alimentares mais críticas - na
África Subsaariana, Sul da Ásia e certas regiões da América Latina -
facilmente se percebem os múltiplos mecanismos pelos quais a fome e a
guerra fazem vítimas entre adultos e crianças inocentes.
Desde
os conflitos latentes à escala mundial como a guerra fria que durou
décadas (entre 1945 até 1991), aos palcos de guerra na Síria e Iraque, e
ao espectro de violência que despoletou recentemente em algumas regiões
de Moçambique, encontramos situações que contribuem para a perpetuação
da pobreza e restrição de oportunidades nas camadas sociais mais
vulneráveis.
Consequências humanas, sociais e culturais
A
primeira grande consequência das guerras e conflitos são as perdas
humanas e a descaracterização do tecido social. Com elas também se
perdem os sistemas de valores, incluindo instituições, tradições, regras
e princípios que orientam e equilibram a vida das pessoas. Estes são
substituídos por regras rudimentares de sobrevivências que favorecem o
egoísmo, a ganância e o oportunismo.
Os
efeitos destes processos podem causar ondas que atravessam fronteiras. À
medida que os conflitos se agudizam, as rupturas sociais são
exacerbadas, multiplicando as vítimas e os fenómenos demográficos
adversos como os refugiados e os deslocados, que são uma expressão
dramática do desespero.
O
conflito que afectou a região do norte de África e Médio Oriente que é
vulgarmente conhecido como a Primavera Árabe desencadeou movimentos
migratórios transcontinentais de dimensões avassaladoras. Milhões de
pessoas foram deslocadas internamente ou migraram para países vizinhos.
Muitos arriscaram as suas vidas na travessia do mar Mediterrâneo em
busca de refúgio, e outros caíram na marginalidade ou nas malhas da
ilegalidade.
As
vítimas preferenciais, e muitas vezes invisíveis desta azáfama, são as
crianças e as mulheres. Ao causar a morte ou traumatizar crianças
compromete-se o futuro e as aspirações de continuidade de processos
sociais e económicos. No caso das mulheres, desestabiliza-se um pilar
fundamental da família, e também dos processos sociais, económicos e
culturais.
Para
além da destruição de empresas geradoras de oportunidades e empregos, a
formação dos jovens é muitas vezes comprometida porque as escolas são
destruídas e os professores desmotivados. Nos casos mais graves, os
jovens são arrastados para os campos de treino militar e paramilitar, e
não para a produção de riqueza e expressão do seu potencial criativo.
Choques económicos
As
guerras e outras formas de conflito causam a destruição de
infra-estruturas sociais e económicas e recursos naturais (floresta e
fauna). A destruição e pilhagem de lojas e empreendimentos
rurais tornam-se frequentes. Agudizam-se os factores de risco que
desencorajam os investimentos. As trocas comerciais são restringidas,
resultando na elevação exacerbada dos preços de mercadorias e serviços
(incluindo dos insumos agrícolas), e no abaixamento do valor comercial e
da competitividade da produção local.
Com
a baixa produção e produtividade agrava-se o espectro de miséria. O
acesso a electricidade, água, telefonia móvel e correios são seriamente
afectados. O serviço bancário é também atingido e o sector agrário
ressente-se da falta de crédito e seguro agrícolas.
Gera-se
assim uma economia de escassez, com repercussões vastas no rendimento
médio das famílias e no acesso aos bens e serviços, e no acesso à
alimentação adequada. Os problemas de subnutrição (particularmente em
crianças) agravam-se. A anemia, a diarreia, e as infecções oportunistas
tornam-se causas comuns de perdas de vidas. As pessoas são relegadas a
uma economia de subsistência e condições de vida degradantes e
desumanas.
Do
conflito armado que massacrou Moçambique ao longo de 16 anos, muitas
cicatrizes ainda sangram no tecido social e económico. Perdeu-se a
contabilidade de fábricas, estradas, pontes, barragens hidroeléctricas,
sistemas de regadio e represas que ficaram inactivos. Ainda hoje, os
efeitos deste conflito continuam estampados na pele, no sangue e nos
nervos de muitos moçambicanos.
Em
alguns casos, estes choques causados por guerras e conflitos violentos
podem ser agravados por desastres naturais. A região africana do Sahel é
um exemplo clássico. Aos elevados índices de pobreza juntam-se os
conflitos políticos e sociais, e a severidade de longos períodos de
seca.
Impacto na governabilidade e fiscalização
As
situações de guerra ou conflito levam ao enfraquecimento das
instituições governamentais e da sociedade civil. Desse vazio podem
resultar a anarquia total ou a imposição de regimes militarizados, com
recolher obrigatório e limitação de liberdades de opinião e movimento.
Os
governos centrais e locais tendem a canalizar as suas energias
(orçamentais, institucionais, e administrativas) para questões ligadas à
segurança. A educação, a saúde e outros serviços são reduzidos aos
mínimos, muitas vezes apoiados por organizações humanitárias nacionais e
internacionais.
Os
processos de planificação, orçamentação, diálogo e auscultação são
escamoteados. Os programas de interesse público como o controle de
pragas e doenças, vacinações, fiscalização e o controle de qualidade
também são eliminados ou reduzidos por falta de recursos.
Com
a diluição da responsabilidade das entidades governamentais para
salvaguardar o interesse público, o bem comum e os direitos elementares
de cidadania, os sistemas alimentares ficam seriamente afectados em
todas as suas componentes: disponibilidade, acesso, utilização e
estabilidade.
Há
situações em que os próprios alimentos são usados para subjugar
pessoas, condicionando o acesso a fontes de água ou alimento como
instrumento persuasor e opressor.
Cortes na relação entre o campo e a cidade
Os
conflitos tendem a afectar a relação privilegiada de troca entre o
campo e a cidade, um dos processos mais importantes dos sistemas
alimentares. Em condições normais, os centros urbanos são abastecidos de
alimentos pelo campo, devolvendo em troca capitais financeiros,
equipamentos, tecnologia e serviços.
Em
situações de ruptura, as cidades são forçadas a estratégias de
sobrevivência que descaracterizam as regras da vivência e convivência
urbanas: escasseiam e encarecem os alimentos básicos, cresce a
marginalidade e a delinquência, e multiplicam-se iniciativas de produção
urbana e periurbana sem os requisitos mínimos de sanidade. O comércio
de rua recrudesce em diferentes formatos muito conhecidos em Moçambique
como “dumbanengues” e “tchungamoios”.
No
campo, acontece o oposto: é retirado aos camponeses o mercado
consumidor dos seus produtos e abastecedor dos insumos e outros bens;
elevam-se os custos de transacção no meio rural; baixa o incentivo de
produzir mais e inovar; e a sustentabilidade económica das actividades
rurais é comprometida.
No
caso de Moçambique, a subida do preço do milho proveniente da Província
de Manica, que abastece as cidades de Maputo, Xai-xai e Inhambane quase
duplicou nos últimos 2 anos, por causa das dificuldades de escoar os
produtos para os centros urbanos consumidores. Já no conflito sírio,
entre 2014 e 2016, a insegurança alimentar agravou-se assustadoramente.
Estratégias de prevenção e resiliência
Tendo
em consideração todos estes cenários devastadores, urge a necessidade
de implementar estratégias de prevenção de conflitos e potenciar a
colaboração entre os actores nacionais e internacionais com
responsabilidades nestas matérias, incluindo organismos do sector
público, ONG, Organismos das Nações Unidas (FAO, PMA, FIDA, etc.),
organismos internacionais de cooperação (Banco Mundial, DFID, NORAD,
USAID, DANIDA, Cooperação Italiana, União Europeia, Save the Children,
Banco Africano do Desenvolvimento, etc.), empresas com iniciativas de
responsabilidade social, as instituições académicas, etc.
Deve-se
ter consciência de que, pela delicadeza e complexidade do tema, as
soluções não são simples nem lineares. Os conflitos devem
preferencialmente ser controlados a partir das suas formas embrionárias.
Quando se permite que escalem, se alastrem e se cristalizem, surgem
factores e variáveis cada vez mais complexos. Uma vez imposta a lógica
da violência, chega-se a um “equilíbrio” aberrante e os esforços para
repor a normalidade podem ser elevados, duradoiros e dolorosos.
Cabe
às lideranças identificar princípios e objectivos comuns, baseados em
valores, princípios e prioridades, que sirvam de plataforma comum em
prol da dignidade humana. Esses princípios e valores devem privilegiar o
patriotismo, o interesse colectivo, o desenvolvimento humano, e o
exercício dos direitos e liberdades mais nobres e elementares.
As
lideranças também devem revelar-se nas situações mais críticas,
permitindo que as populações mais afectadas sejam amparadas por
programas de assistência alimentar, evitando a perda de vidas e o
agravamento da crise. Devem ainda ter a capacidade de iniciar programas
de recuperação e normalização das actividades económicas e sociais.
Os
órgãos de soberania, as forças políticas, as organizações da sociedade
civil e todas as forças vivas (incluindo os parceiros internacionais)
devem todas estar ao nível das suas responsabilidades, sincronizados num
pacto universal e perene pelo bem-estar comum.
Conscientes
desta relação de retroalimentação e perpetuação contínua entre os
conflitos e a insegurança alimentar, importa manter as forças vivas
atentas à precariedade dos equilíbrios sociais e económicos.
Só um compromisso renovado pela paz, harmonia e dignidade humana permitirá a expressão plena do potencial humano.
Sem comentários:
Enviar um comentário