Os intelectuais do óbvio
O termo “intelectual” foi sempre de difícil definição. A ideia que ele contém de quem trabalha com o “intelecto” é arrogante demais para servir de guia nos dias que correm. Chega a ser uma manifestação de paranoia por sugerir a ideia de que o mundo inteiro caiba na cabeça do “intelectual”. O crescimento vertiginoso do ensino superior nos últimos 60 anos revelou-se um paradoxo. Por um lado, ele contribuiu para reduzir o termo “intelectual” ao académico – em detrimento de todos os outros indivíduos também interessados em reflectir sobre as ideias que constituem o mundo. Por outro lado, porém, ele massificou a reflexão sobre ideias até ao ponto onde deixou de fazer diferença se quem articula essas ideias é académico ou não.
Tradicionalmente, a reflexão sobre as ideias constitutivas do mundo definiram o intelectual de duas maneiras distintas. Primeiro, como a pessoa que tem o hábito de questionar as crenças (ou ideias) que outros aceitam sem nenhum problema. A aura do intelectual, nestas condições, veio sempre da coragem que a rejeição do que muitos dão por adquirido implica. Remar contra a maré ou, como se diz hoje em dia, pensar fora de caixa. É sempre mais cômodo aceitar passivamente o que todos creem ser a verdade. Claro, aceitar as ideias dominantes não torna ninguém não-intelectual. Segundo, como a pessoa que se interessa menos por coisas específicas e mais pelo tipo de coisas. Ao intelectual não interessa o insucesso do nosso futebol, por exemplo, mas sim se esse insucesso faz parte dum padrão maior que precisa de ser entendido. Daí também uma parte da inutilidade prática do trabalho intelectual que raramente tem respostas concretas para problemas concretos. Isso exaspera os homens e mulheres de acção.
O paradoxo mencionado mais acima não só massificou a reflexão como também produziu uma nova categoria de “intelectual”: O intelectual do óbvio. Ele serve-se dos instrumentos da ciência para reduzir o mundo à sua versão mais simples. O seu principal adversário não é o intelectual normal que insiste na complexidade do mundo, mas sim o processo que nos revela essa complexidade. Isto é, o intelectual normal produz a ideia dum mundo complexo através dum processo de reflexão sofisticado que consiste em fazer depender a conclusão que ele tira da aceitação provisória de “verdades” que estão, elas próprias, sujeitas à verificação (verificação essa que também implicaria o mesmo processo de sofisticação).
Por exemplo, o intelectual normal acha que o insucesso dos Mambas reflecte problemas estruturais que ultrapassam o campo do futebol e do desporto. Para manter essa imagem, ele precisa de aceitar várias outras “verdades” como, por exemplo, a ideia da articulação institucional no País, a dificuldade de elaboração de políticas, o compromisso dos moçambicanos com o desporto nacional, as dficuldades financeiras, etc. Cada uma destas “verdades” carece de verificação e pode ser que ao se fazer isso chegue-se à conclusão de que uma, ou duas ou todas são completamente irrelevantes. O intelectual normal tem que saber viver com a incerteza.
Já o intelectual do óbvio não tem esse problema. Ele concentra a sua atenção no que é visível (o insucesso dos Mambas) e sentencia logo, de preferência, algo que conforte uma crença pré-existente. Pode ser a incompetência natural dos nossos dirigentes desportivos, do treinador, a preguiça dos jogadores, etc. O intelectual do óbvio quer certezas e, por isso, simplifica a vida. E mais: o intelectual do óbvio é homem do povo, na verdade, ele confunde-se com o povo. Não há diferença entre o intelectual do óbvio e o povo, pois todos eles apostam no mesmo, isto é na simplificação do mundo. Não seria exagero dizer que hoje em dia o mundo está firmemente nas mãos da intelectualidade do óbvio. Isso explica Trump e Bolsonaro, por exemplo, mas ao contrário do que se possa pensar não é por falta de informação, nem de discernimento. É porque as pessoas decidiram racionalmente prescindir da sofisticação por ela ser tida como subterfúgio, racionalização e defesa de interesses inconfessos. Quando alguém no Brasil, por exemplo, defende que a solução para o crime é armar o povo essa pessoa não ignora necessariamente as condições estruturais que tornam certos grupos mais vulneráveis ao ingresso no mundo do crime; essa reflexão paralisa quem acha que chegou o tempo da acção e, por isso, olha para quem insiste na complexidade do fenómeno como alguém que quer racionalizar a má conduta, por exemplo. O intelectual do óbvio recusa-se a fazer aquilo que define o intelectual: pensar.
Tudo isto é também a propósito duma discussão suscitada por um postal do historiador Eusébio A. P. Gwembe. Ele defende que as pessoas que endividaram o País ilicitamente um dia serão vistas como heroínas por terem, na verdade, lutado contra um mundo injusto. As comissões que receberam, diz ele, são coisas normais nesse tipo de negócios. Como era de esperar, muitos caíram-lhe em cima acusando-o de defender o indefensável e, mais grave ainda, pondo em causa a sua “intelectualidade” (ele doutorou-se recentemente na Turquia). Escusado será dizer que muitos dos que põem em causa a sua “intelectualidade” não são, eles próprios, referência intelectual, mas como é comum no mundo dominado pela intelectualidade do óbvio, isso não importa desde que seja possível opinar à toa.
O que é interessante é a maneira como se põe em causa o raciocínio do intelectual normal. Ele é acusado de usar a ciência para defender posições políticas (ou ideológicas). Esta acusação, porém, levanta o problema da vulnerabilidade da ciência a interesses (um problema metodológico bicudo reconhecido pelo intelectual normal) que o intelectual do óbvio resolve considerando-se a si próprio imune uma vez que a sua posição estaria em conformidade com o que é socialmente bom. Portanto, aquele que acha que as dívidas ocultas se explicam pela ganância de quem as contraíu não defende essa ideia por algum interesse em especial (por exemplo, dos doadores, oportunismo político ou profissional, etc.), mas sim porque ele é pelo povo (injustiçado). O apelo ao povo é uma das marcas do totalitarismo (da esquerda e da direita). O desprezo pelo método é também uma marca do anti-intelectualismo.
No seu postal, Gwembe levantou uma questão muito importante, nomeadamente a tensão entre decisões técnicas (dos doadores) e decisões políticas (do governo) e convidou a um debate sobre isso. Só que o ceptro foi rejeitado com base no argumento de que ele estaria apenas a procurar subterfúgios ou simplesmente a querer racionalizar. Agora, que fique claro: aquilo que o intelectual normal coloca como hipótese não precisa necessariamente de estar certo (depois de feita a verificação). A sua função não é de falar “verdade”, ainda que o possa fazer após pesquisa. O intelectual normal convida à reflexão e fá-lo justamente arrancando as pessoas da letargia em que caem por medo da complexidade. Dói quando pessoas sem nenhuma bagagem para avaliarem devidamente este tipo de contribuição expõem as suas limitações intelectuais sem nenhum pudor. Dói porque esta é uma manifestação inequívoca da colonização da nossa mente pela intelectualidade do óbvio.
A importância das dívidas ocultas não se esgota na constatação do seu lado criminal. Provar isso e punir quem agiu criminalmente é tarefa das instituições de direito. Mas as dívidas vão para além disso e um intelectual que se preza não pode se dar por satisfeito se não procurar saber mais e colocar as suas inquietações na esfera pública para reflexão. O intelectual normal cultiva o hábito de ver as coisas de várias perspectivas sem perder a capacidade de as avaliar e sem medo de depois decidir em que factos vai depositar mais fé. O intelectual do óbvio não só simplifica como também o faz com recurso ao esquema da teoria de conspiração. A fraqueza da teoria da conspiração reside na facilidade com que ela pode ser rebatida com recurso a algo tão simples como a ideia de que o fenómeno para o qual ela é convocada poderia acontecer de outras formas. É um facto que o endividamento de Moçambique já era insustentável mesmo sem as dívidas ocultas, logo, há problemas estruturais que merecem mais a nossa atenção do que o moralismo barato de quem tem medo da complexidade.
E, sim, eu sou fã de Guebuza da mesma maneira que sou fã de Messi (e não de Ronaldo, apesar de ser também um jogador super-fantástico, nem do Júlio Mutisse que nem jogar sabe). Sou fã do que me pareceu ser um projecto político interessante (o que não quer dizer perfeito e, por isso, critiquei vários aspectos). Ser fã não me impede de constatar erros na sua acção (e as dívidas, vistas em retrospectiva, foram um grave erro). Mas justamente por ser fã tenho um interesse especial em perceber o que tornou esse erro possível, algo que se articula com o meu interesse intelectual em entender o País. Não tiro as mesmas conclusões que outros (a maioria) tiram e isso não é apenas por ser fã. É porque avalio as evidências de forma completamente diferente, mas faço isso de forma transparente pelo que isso pode, merece, ser discutido.
Chamar-me de “intelectual guebuzista” dá direito a palmadinhas nas costas por outros intelectuais do óbvio, mas não diminui a importância intelectual do exercício que faço com a minha rejeição do óbvio. Só uma sociedade imbecil(izada) é que deriva satisfação da constatação do óbvio. Moçambique, apesar de tudo, é muito melhor do que isso.
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