segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Um protetorado que custou sete anos de guerra


Rebeldes respeitam a trégua, nos arredores de Idlib
FOTO ANAS ALKHARBOUTLI/
GETTY IMAGES

Avizinha-se o fim do conflito. Mas a presença militar da Rússia e do Irão está para durar

O fim da guerra na Síria está à distância de uma batalha. Idlib, uma província no noroeste, é o último quinhão de terra em posse de grupos rebeldes, alguns de orientação secular, a maioria islamitas. Por estes dias vive-se uma trégua na área, ditada por um acordo assinado a 17 de setembro entre a Rússia (o principal apoio do regime sírio) e a Turquia (o país vizinho mais exposto ao conflito).
O pacto prevê a criação de uma zona tampão de 15 a 20 quilómetros entre Lataquia e Alepo, províncias que ladeiam Idlib. Se tudo correr como planeado, essa zona desmilitarizada, desenhada para afastar forças governamentais e rebeldes, ficará estabelecida até à próxima segunda-feira.
Se, num primeiro momento, esta pausa nos combates teve o condão de conter uma ofensiva militar sírio-russa que parecia iminente sobre o último reduto rebelde, falta perceber se o silêncio das armas é o princípio do fim do conflito ou a calmaria que antecede a tempestade.
“Em Idlib alcançou-se uma trégua precária para evitar uma crise humanitária de consequências incalculáveis, já que nessa província vivem dois milhões e meio de pessoas”, comenta ao Expresso Ignacio Álvarez-Ossorio, professor de Estudos Árabes e Islâmicos na Universidade de Alicante (Espanha). “Mas nas próximas semanas poderá desencadear-se uma ofensiva militar para tentar quebrar a resistência.” Em todo o caso, “parece evidente que se está a entrar na última fase do conflito sírio”.
Bashar al-Assad controla atualmente dois terços do território da Síria e governa três quartos da população. Além de Idlib, também a área a norte do rio Eufrates — cerca de um quarto do país — escapa ao seu controlo. A zona está em paz, mas nas mãos de forças curdas, as chamadas Unidades de Proteção Popular (YPG), que contam com o apoio dos Estados Unidos. Os norte-americanos têm ali pelo menos 2000 efetivos.

A INCÓGNITA CURDA

Terminada a guerra, o futuro desta região será uma grande incógnita. “As milícias curdas aproveitaram a luta contra o autodenominado Estado Islâmico (Daesh) para estenderem a sua influência para lá das zonas de maioria curda”, recorda o académico espanhol. “Chegaram a controlar a cidade árabe de Raqqa [os curdos não são árabes], cujos arredores acumulam uma grande riqueza em hidrocarbonetos.” Raqqa foi, durante anos, a capital do ‘califado’ decretado pelo temido e impiedoso Daesh em vastas áreas da Síria e do Iraque.
À semelhança do que aconteceu no Iraque, onde o fim da era de Saddam Hussein significou para a minoria curda mais autonomia do que aquela que tinha conquistado após a Guerra do Golfo (1990-91), os curdos sírios vão querer transformar as conquistas da guerra em ganhos políticos.
“O Partido da União Democrática curdo [PYD] vai tentar aproveitar esta posição de força sobre o terreno para arrancar concessões ao regime e conseguir que este aceite o estabelecimento de um Estado federal, como aconteceu no Iraque”, diz Álvarez-Ossorio. “Julgo que o mais provável é que Assad e os curdos não se enfrentem diretamente e alcancem uma solução negociada que obrigue o regime a conceder ampla autonomia aos curdos”, prossegue o docente.
A evolução da questão curda fará com que a Turquia — que combate, dentro de portas, um projeto separatista curdo — continue a seguir a situação na Síria com rédea curta. Neste conflito, “a Turquia apostou no campo perdedor e dificilmente manterá o enclave que controla, juntamente com o Exército Livre Sírio, a norte de Alepo. A intervenção militar turca justificou-se pela necessidade de evitar que as milícias curdas, que Ancara acusa de darem apoio ao Partido dos Trabalhadores do Curdistão [PKK, turco], controlassem a fronteira. Mal o regime sírio seja capaz de dominar a fronteira, a Turquia poderá retirar os efetivos mediante garantias de segurança”.
Mas se a presença turca na Síria tem os dias contados, a Rússia e o Irão estão no país para durar. “A sua saída colocaria Assad numa situação vulnerável”, prevê Álvarez-Ossorio, autor do livro “Siria — Revolución, sectarismo y yihad” (publicado em 2016 e não traduzido em português). Acresce que o exército sírio está esgotado, “numa situação de extrema debilidade, pelo que continuará a precisar, durante muito tempo, do apoio das milícias xiitas enviadas pelo Irão [o Hezbollah libanês e grupos iraquianos, afegãos e paquistaneses] e também da polícia militar russa”.

A SOMBRA DA LÍBIA

Esta necessidade de uma ajuda militar externa duradoura e, sobretudo, a proliferação de grupos armados que agem em obediência à agenda de quem os financia — dos Estados Unidos aos Países do Golfo — obriga a uma comparação com a Líbia, onde, após o desaparecimento de Muammar Kadhafi (em 2011, ano em que deflagrou a guerra síria), a lei que se impôs no país foi a das milícias. Esta semana Ghassan Salame, chefe da missão da ONU na Líbia (UNSMIL), disse que ainda há 200 mil milicianos em ação no país. “Recebem salário do Estado, mas só recebem ordens de senhores da guerra”, disse.
“São casos muito diferentes”, explica Álvarez-Ossorio. “Na Líbia não existe um Estado central capaz de impor a sua autoridade sobre a totalidade do território, que está em mãos de diferentes milícias que controlam os poços de petróleo, o comércio e as rotas migratórias. No caso da Síria, o regime desarmou todas as milícias rebeldes à medida que restabelecia a sua autoridade sobre as partes de território que escapou ao seu controlo durante o conflito.”

DESCIDA AOS INFERNOS

A guerra que se aproxima do fim espalhou a morte e condenou milhões de sobreviventes a um êxodo desesperado, internamente e através da fronteira. Arrasou o país e descaracterizou-o: perseguida pelos grupos radicais, a minoria cristã, por exemplo, passou de 10% para 3% da população. Em termos políticos, tornou subserviente uma entidade que já foi o centro do mundo árabe. Entre os anos 661 e 750, Damasco foi a capital do califado omíada, o segundo de quatro califados islâmicos estabelecidos após a morte de Maomé, que ia da Península Ibérica ao Afeganistão.
“A Síria de Assad converteu-se num protetorado russo-iraniano”, conclui Ignacio Álvarez-Ossorio. “Além das milícias xiitas comandadas pelo Irão, a Rússia aproveitou a conjuntura para ampliar a sua base naval de Tartus e construir a base aérea de Al-Hamaymin, que controlará durante os próximos 49 anos.”

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