Política
10 de Outubro de 2018
Peças imprescindíveis na ‘máquina’ posta em campo com o fito de reduzir – se não for possível exterminar – o fenómeno da corrupção em Angola, os juízes do Tribunal Supremo acabam de revelar sinais estranhamente perturbadores para os objectivos que a Nação pretende com a actual investida que está a resultar em prisões de figuras públicas putativamente envolvidas em crimes de corrupção, peculato e branqueamento de capitais.
Ainda não se percebeu bem o móbil por que se moveram os juízes do Tribunal Supremo, com o desmentido público que fizeram sair ao início desta semana, na sequência das acusações que caíram sobre o presidente da instituição, Rui Ferreira, de que estaria a manobrar no sentido de lograr a soltura do antigo presidente do Fundo Soberano de Angola, José Filomeno dos Santos ‘Zenu’.
Mas o facto é que ao terem aposto as respectivas assinaturas num documento que visava tão-somente a defesa de Rui Ferreira, os juízes do Supremo revelaram uma grosseira manifestação de corporativismo que abala a sua credibilidade junto da opinião pública, além de terem evidenciado, com tal comportamento, que afinal sempre podem ser arregimentados para o ‘serviço sujo’ de entes particulares.
Para já, é ponto assente que existiram diligências especiais da parte do juiz-presidente do Tribunal Constitucional para lograr a soltura de José Filomeno dos Santos, com o qual se diz que terá ligações empresariais, por via de um escritório de advocacia afecto a Rui Ferreira. E que tais ‘démarches’ não foram apenas a que se refere ao Conselho Nacional de Segurança (CNS).
De acordo com o que apurou o Correio Angolense de fonte familiarizada com o actual dossiê de prisões, na terça-feira, 02 de Outubro, Rui Ferreira intercedeu, a favor de Zenu dos Santos, junto do Presidente João Lourenço. E que ainda por sua iniciativa, ambos voltaram a conversar sobre o assunto dois dias depois.
“Apenas o Jean-Claude [Bastos de Morais] não fez parte do pacote conversado”, disse a fonte, acrescentando: “Os juízes portaram-se mal ao assinarem uma nota a respeito da qual não têm os elementos todos.”
A conclusão que muitos observadores retiram destes eventos é a de que, afinal, o sistema judiciário angolano ainda revela as habituais fragilidades consubstanciadas na falta de independência de um modo geral. É que por independência não se deve entender somente a autonomia (em sentido vertical) que os juízes tenham dos poderes político-executivo e legislativo.
"Se dependesse apenas dos magistrados ‘trambiqueiros’ que a sociedade tem visto, provavelmente já essa causa estaria irremediavelmente perdida, mandando pelo cano abaixo as expectativas que os cidadãos depositaram em todo o programa que está a ser determinadamente prosseguido pelo próprio Presidente da República, João Lourenço."
Essa autonomia põe-se igualmente na relação horizontal que os magistrados judiciais mantêm entre si. Se o juiz presidente de uma instância judicial tem total domínio sobre os demais, ao ponto de os manipular, é evidente que isso põe em causa a fiabilidade das sentenças por ela formuladas.
No caso do Supremo angolano, tudo parece indicar que Rui Ferreira possui um ascendente sobre os demais juízes, que vai muito além da simples subordinação que estes lhe devem, em matéria hierárquica e no âmbito do funcionamento dessa instituição judicial. Não faz o mínimo sentido que o Supremo tenha agido como um todo num assunto em que são parte interessada apenas dois dos seus membros. As notícias que fazem menção a supostas diligências junto ao Conselho Nacional de Segurança são perfeitamente ‘localizadas’. Atêm-se somente a um eventual envolvimento do juiz presidente do Supremo Rui Ferreira e do juiz-conselheiro Joel Leonardo, não sendo extensivas a todo o Tribunal Supremo como instituição judicial.
Isso significa que temos um Tribunal Supremo que se mantém permeável a desígnios e ‘encomendas’ de natureza pessoal, venham eventualmente do Chefe de Estado ou tão-somente do presidente da instituição. Não há dúvidas que o que Rui Ferreira fez, foi atrelar todo o Supremo em sua defesa, facto que, no limite, também não deixa de configurar abuso de poder. De resto, o uso de instituições oficiais para defesa de interesses particulares já começa a ser preocupantemente rotineiro – e aqui está um aspecto que este episódio também põe a nu.
Ainda temos bem fresca na memória o caso de Manuel Vicente. Acossado pela justiça portuguesa, que o acusava de haver corrompido um juiz em Portugal, o antigo vice-Presidente angolano escondeu-se debaixo das saias do Estado angolano. E por pouco as relações entre os dois países não foram cortadas por causa de um problema de foro privado.
Estes e outros casos que não cabem aqui focar ajudam-nos a compreender por que razão, nos seus mais de 38 anos de consulado, José Eduardo dos Santos jamais se defendeu pessoalmente das muitas acusações que lhe foram feitas, quer interna quanto externamente. Sempre se serviu da máquina estatal para se proteger de ataques ou críticas que muitas vezes o visavam individualmente, isto é, apenas na sua qualidade de cidadão.
No caso do Tribunal Supremo, a coincidência de todos os seus membros haverem aposto as respectivas assinaturas no documento final que exararam na passada segunda-feira, 08, constituiu uma brutal manifestação de corporativismo que abala a sua credibilidade junto da opinião pública.
Razão terá, por isso, a deputada da UNITA Mihaela Webba quando, sem meias-palavras, diz que isto está uma enorme barafunda, reportando-se ao facto de haver magistrados que de dia são juízes e de noite são advogados. Há, de facto, muito mercantilismo e promiscuidade de mãos dadas com os magistrados angolanos. E, como é de calcular, em tais circunstâncias – de ambiguidade, falta de transparência e conflito de interesses – deveres, obrigações e consciências da dos juízes falarão menos alto quando estiverem na condição de advogados. A toga de uns asfixiará a beca de outros.
É fácil calcular que, neste momento, os magistrados que têm os respectivos escritórios de advocacia a representar interesses de alguns dos actuais arguidos envolvidos em processos de corrupção e quejando – como é, aliás, o caso do próprio presidente do Tribunal Supremo, Rui Ferreira – estejam a fazer figas para que o Ministério Público cometa eventuais tropeções. Quanto mais a Procuradoria-Geral da República pôr a pata na poça, melhor será para o seu negócio.
Diante de tanta promiscuidade, também é fácil concluir que, se dependesse apenas de homens do calibre do presidente do Tribunal Supremo, Zenu dos Santos e demais arguidos ora detidos já estariam na rua a comemorar os ares da liberdade. Com quanta gana, para lograr a soltura do ‘seu’ arguido e cliente de estimação, Rui Ferreira não teria accionado o acórdão do Tribunal Constitucional de 2017, o qual, em relação à Lei das Medidas Cautelares, reconhece que o Ministério Público extravasa as suas competências ao decretar as prisões preventiva e domiciliar?
O problema é que nesse particular Rui Ferreira está de mãos atadas. Ele que era o presidente do Tribunal Constitucional quando esse acórdão foi exarado, sabe que tem um obstáculo pela frente que não está em condições de transpor. É certo que, de acordo com aquele documento, a faculdade de ordenar a prisão dos arguidos tenha sido retirada da esfera do Ministério Público, passando a ser competência dos chamados ‘juízes de garantia’. Porém, a execução do acórdão nesse aspecto particular foi protelada até à criação, pelo Executivo, de condições para a instalação dos tais ‘juízes de garantia’.
Apenas por isso é que mesmo estando neste momento agarrados à jugular do Ministério Público os melhores advogados do país que foram arregimentados para defender os arguidos detidos, eles não tenham conseguido a sua soltura. Pois se dependesse apenas dos magistrados ‘trambiqueiros’ que a sociedade tem visto, provavelmente já essa causa estaria irremediavelmente perdida, mandando pelo cano abaixo as expectativas que os cidadãos depositaram em todo o programa que, até prova em contrário, conta com a determinação e o engajamento pessoal do próprio Presidente da República, João Lourenço.
|
Sem comentários:
Enviar um comentário