quarta-feira, 10 de outubro de 2018

Jamal Khashoggi, o jornalista que desapareceu sem deixar rasto: “O príncipe saudita quer pessoas como eu fora do seu caminho”


Jamal Khashoggi, o jornalista que desapareceu sem deixar rasto: “O príncipe saudita quer pessoas como eu fora do seu caminho” /premium

10 Outubro 2018
Há menos de um ano, o jornalista saudita crítico do regime partilhava os seus receios em entrevista ao Observador. Há uma semana, desapareceu depois de entrar no consulado do seu país na Turquia.
Um jornalista saudita entra num consulado do seu país em Istambul e nunca mais ninguém sabe do seu paradeiro. As autoridades do consulado dizem que voltou a sair. A noiva, que estava à porta, garante que não. Onde está? Ninguém consegue responder. No mesmo dia, 15 elementos dos serviços secretos sauditas aterram na Turquia em dois jatos privados. Têm hotel marcado para três noites, mas voltam a sair do país no mesmo dia. O que foram lá fazer? Ninguém sabe. Mais um dado: duas horas e meia depois de o jornalista ter entrado no consultado, as câmaras de vigilância do edifício registam a saída de seis carros com matrícula diplomática, com 15 passageiros a bordo, seguidos de uma carrinha de vidros escuros. Quem eram e para onde foram? E o que transportavam na carrinha? A resposta é igual às anteriores.
Esta é a história real em torno do desaparecimento de Jamal Khashoggi. Há uma semana, o jornalista saudita, crítico das ações do príncipe herdeiro Mohammad bin Salman (MbS) e alvo de pressões na Arábia Saudita que o levaram a exilar-se nos Estados Unidos, ia apenas pedir um papel ao consulado do seu país em Istambul — mas o pequeno exercício de burocracia tornou-se num risco que lhe pode ter custado a vida.
As câmaras de vigilância no exterior do consultado da Arábia Saudita em Istambul registaram o momento da entrada de Jamal Khashoggi, na semana passada. (FOTO: NYT/Hurriyet, via Associated Press)
As autoridades turcas admitem que possa ter sido morto, talvez até dentro das quatro paredes daquela missão diplomática. Riade nega responsabilidades. O Washington Post, jornal onde Jamal escrevia regularmente colunas de opinião, publicou uma coluna em branco e promete não descansar até saber o que aconteceu. À medida que os dias vão passando, adensam-se as suspeitas de homicídio com motivações políticas por parte do regime saudita.
Que Jamal Khashoggi já tinha tido problemas no passado com as autoridades do seu país, não há dúvidas. Isso mesmo contou o próprio ao Observador, numa tarde de outono do ano passado. A viver em Washington há apenas um par de meses, estava em Los Angeles de visita quando recebeu um email de uma jornalista de um país distante como Portugal, pedindo-lhe para comentar as mudanças que MbS estava a introduzir no seu país. Jamal, jornalista de 59 anos de idade e muitos de experiência, aceitou. Estava sempre disponível para falar sobre o seu país.

“A minha mulher preferiu estar segura do que estar a meu lado”

Dias depois, Jamal Khashoggi atendeu a chamada do Observador: “Good morning”, disse a voz do outro lado, num inglês impecável, apenas traído pelo ligeiro carregar do “erre”. Jamal aceitou falar sem qualquer limite de tempo, respondendo a todas as perguntas. Na conversa, não se limitou à clínica e fria análise política: partilhou a sua história pessoal, incluindo mesmo detalhes da sua vida íntima. “Foi muito difícil tomar esta decisão [de vir sozinho para os Estados Unidos]. Os meus filhos já são crescidos e têm bons empregos, mas foram proibidos de sair do país. O meu casamento desfez-se devido ao facto de eu ser publicamente crítico do regime. A minha mulher preferiu estar segura do que estar a meu lado”, confessou, tomando ele próprio a iniciativa de falar sobre a sua família e o seu divórcio. Os seus filhos adultos a viver na Arábia Saudita — confessou Jamal à medida que a conversa se encaminhava para o final, com a voz ligeiramente tremida — tinham medo de partilhar os artigos de opinião do pai nas redes sociais.
A decisão de sair do país, contou, foi tomada depois de receber um telefonema de Saud al-Qahtani, homem próximo da Família Real, por vezes apelidado de “Steve Bannon” saudita. “Foi um telefonema muito educado em que ele me disse que tinha instruções para me proibir de continuar a escrever a minha coluna de opinião”, resumiu o jornalista. Jamal já tinha assistido às pressões feitas sobre outros colegas jornalistas, com menos anos de carreira ou estatuto que o seu. E até ele próprio já tinha recebido avisos de que não deveria tweetar sobre determinados temas.
O telefonema que ditou o fim da sua coluna no jornal foi a pressão final que o fez temer pela sua liberdade: Jamal fez as malas, despediu-se dos filhos e partiu. Chegado aos EUA, não demorou a conseguir um lugar como colunista no Washington Post. O seu primeiro texto não deixou margem para dúvidas sobre o que pensava da situação no seu país: “A Arábia Saudita nem sempre foi assim tão repressiva. Agora é insuportável”, lia-se no título.
Notícia do desaparecimento levou alguns manifestantes para junto do consulado da Arábia Saudita em Istambul (OZAN KOSE/AFP/Getty Images)
O exílio, contudo, não lhe trouxe alívio. Para além das saudades dos filhos e do seu país, começou a temer pela sua segurança. “Eles gostariam de me ver fora de cena”, confessou à jornalista da New Yorker Robin Wright, em agosto. Antes disso, já tinha tocado ao de leve nessa possibilidade no telefonema que teve com o Observador, embora não entrando em pormenores: “O príncipe é cheio de auto-confiança, mas não quer ter nenhuma oposição, não quer ouvir nenhuma opinião que lhe seja desfavorável. Acha que pessoas como eu podemos distorcer a sua mensagem — e, por isso, quer-nos fora do seu caminho”, sentenciou. Antes disso, tinha comparado o que está a acontecer em Riade a uma série de televisão sobre uma corte sangrenta do passado, numa frase que deu o mote ao texto final: “Conhece ‘Os Tudors’?”, perguntou casualmente. “O que está a acontecer na Arábia Saudita é como ver ‘Os Tudors’ em fast-forward. É ver as coisas a acontecerem da noite para o dia, estar tudo a mudar e de uma forma sem precedentes.”
"Foi muito difícil tomar esta decisão [de vir para os Estados Unidos]. Os meus filhos já são crescidos e têm bons empregos, mas foram proibidos de sair do país. O meu casamento desfez-se devido ao facto de eu ser publicamente crítico do regime. A minha mulher preferiu estar segura do que estar a meu lado.”
Jamal Khashoggi num telefonema com o Observador, em dezembro de 2017
Foi uma das várias críticas que estava habituado a fazer ao regime de MbS, denunciando a “vaga de detenções” no país e as tentativas de “humilhação pública” a intelectuais e líderes religiosos que discordem do príncipe herdeiro. Mas Jamal também sabia ser equilibrado: foram várias as situações em que reconheceu mérito à nova liderança saudita, como no caso da autorização para as mulheres conduzirem ou na reabertura dos cinemas. “Não sou um extremista”, declarou numa entrevista à Economist. “Acredito no sistema — quero apenas um sistema com reformas. Quero que o sistema me deixe ter voz e me autorize a falar”, declarou.  Jamal não se via a si mesmo como um exilado político, garante a editora do Washington Post Karen Attiah: “A missão dele era muito clara: ele só queria poder escrever e ser um jornalista”.

De dissuasor de Bin Laden no Afeganistão a jornalista rebelde no Bahrain

Jamal Khashoggi nasceu na cidade saudita de Medina, em 1958. Filho de um comerciante de têxteis, estudou jornalismo nos Estados Unidos, licenciando-se pela Universidade do Indiana. Começou a carreira no jornal saudita de língua inglesa Saudi Gazette e no final dos anos 80 trabalhava já para o influente Asharq Al-Awsat, jornal saudita baseado em Londres. O seu trabalho na década de 90 daria nas vistas, cobrindo países como o Afeganistão e o Kuwait.
Durante esse período, entrevistou várias vezes Osama bin Laden, à altura guerrilheiro nas montanhas afegãs. O jornalista do Washington Post David Ignatius esclarece que Khashoggi chegou a criar laços de amizade com Bin Laden, tendo tentado demovê-lo de perseguir a via da violência para defender o Islão. “Não conseguiu”, escreve Ignatius. “Mas ele nunca evitou reconhecer o mal que a Al-Qaeda trouxe à Arábia Saudita e ao mundo. Escreveu uma coluna para o Daily Star, em Beirute, a 10 de setembro de 2002, com o título ‘Um mea culpa saudita’. Numa altura em que muitos sauditas estavam a tentar arranjar desculpas para os atentados da Al-Qaeda, Khashoggi descreveu o 11 de setembro como um ataque aos ‘valores da tolerância e da coexistência’ e ao próprio Islão.”
"Conhece ‘Os Tudors’? O que está a acontecer na Arábia Saudita é como ver ‘Os Tudors’ em fast-forward. É ver as coisas a acontecerem da noite para o dia, estar tudo a mudar e de uma forma sem precedentes.”
Jamal Khashoggi em entrevista ao Observador, em dezembro de 2017
Embora seja um antigo membro da Irmandade Muçulmana, Khashoggi sempre foi próximo da Família Real saudita. Trabalhou como conselheiro do príncipe Turki bin Gaisal — ex-diretor dos serviços secretos sauditas e embaixador nos Estados Unidos entre 2005 e 2006. Mas isso não o impediu de tentar sempre manter a independência jornalística, o que chegou a trazer-lhe alguns dissabores ainda antes do seu exílio. Em 2003, já tinha sido despedido do cargo de diretor do jornal Al-Watan — dizem alguns por existir desconforto com a sua “política editorial”. Em 2007, voltou a ocupar o cargo, sendo novamente despedido três anos depois. Foi então escolhido para diretor do canal de televisão Al Arab, sediado no Bahrain. Em 2015, o canal foi encerrado: oficialmente, citaram “razões técnicas e administrativas”, mas a decisão pode não ter sido alheia ao facto de Khashoggi ter autorizado uma entrevista a um membro da oposição política no Bahrain.
Jamal Khashoggi foi visto pela última vez a entrar neste edifício, do consulado saudita em Istambul, na Turquia (YASIN AKGUL/AFP/Getty Images)
Em 2017, já com MbS a pôr em marcha a sua transformação da sociedade saudita, chegou o telefonema que ditou o exílio de Jamal. Um ano depois, o jornalista parecia ter conseguido reconstruir parte da sua vida: tinha comprado uma nova casa e estava de casamento marcadocom uma mulher turca, Hatice Cengiz, mestranda em estudos políticos do Golfo Pérsico. Foi precisamente por causa desse casamento que Khashoggi se dirigiu, na passada terça-feira, ao consulado saudita em Istambul: o jornalista ia apenas pedir uma certidão de divórcio da sua ex-mulher — aquela que tinha recusado acompanhá-lo para os EUA –, ditando assim o fim do seu casamento.

Homicídio em Istambul ou voo fantasma para uma prisão de Riade?

A visita ao consulado era, por isso, de rotina. Uma das pessoas com quem almoçou nesse dia, Azzam Tamimi, recordou ao New York Times como o jornalista tentou reconfortar os amigos, que temiam que Jamal sofresse represálias ao entrar no consulado pelas suas posições críticas de MbS. Os funcionários do consulado, disse o jornalista nesse almoço, “são sauditas normais e os sauditas normais são boas pessoas”.
Jamal foi depois com Hatice até ao edifício do consulado. À porta, deixou o seu telemóvel com a noiva, já que é proibido entrar com o aparelho no consulado. Mas, por precaução, deixou um aviso a Hatice: caso não regressasse, ela deveria contactar um conselheiro do Presidente turco, Recep Tayyip Erdogan. Foi isso mesmo que acabou por acontecer 11 horas depois, quando a noiva deu o alarme.
“Mas ele nunca evitou reconhecer o mal que a al-Qaeda trouxe à Arábia Saudita e ao mundo. Ele escreveu uma coluna para o Daily Star em Beirute, a 10 de setembro de 2002, com o título ‘Um mea culpa saudita’. Numa altura em que muitos sauditas estavam a tentar arranjar desculpas para os assassinos da Al-Qaeda, Khashoggi descreveu o 11 de setembro como um ataque aos ‘valores da tolerância e da coexistência' e ao próprio Islão.”
David Ignatius, jornalista do Washington Post sobre o colega, que conheceu
No domingo, as autoridades turcas reagiram oficialmente ao alerta. Primeiro, um conselheiro do Presidente declarou à agência Reuters que acredita que Khashoggi foi assassinado no consulado. Depois, o Presidente turco confirmou publicamente que o caso está a ser investigado: “As entradas e saídas da embaixada, as movimentações no aeroporto e os registos de câmaras de segurança estão a ser analisados. Queremos ter resultados rápidos”.
Três fontes (dois turcos e um responsável de um Governo árabe) declararam ao New York Times que a tese de que Khashoggi terá sido assassinado no consulado é a que tem mais força. Turan Kislakci, líder da Associação de Media Turco-Árabe, foi ainda mais longe: “Eles confirmaram duas coisas: que ele foi morto e que o seu corpo foi desmembrado”, declarou. A noiva de Jamal fez um postno Twitter, onde disse não conseguir crer nessas notícias: “O Jamal não está morto. Não consigo acreditar que ele foi morto”, escreveu.
Na sexta-feira, ainda antes de as autoridades turcas abordarem a possibilidade de homicídio, o próprio príncipe MbS comentou o caso, numa entrevista à Bloomberg, declarando que Khashoggi terá saído do consulado menos de uma hora depois de ter entrado. “Ele é um cidadão saudita e estamos muito interessados em saber o que lhe aconteceu”, disse, rejeitando responsabilidades no desaparecimento e garantindo total abertura para que o consulado seja alvo de buscas por parte das autoridades turcas. “Não temos nada a esconder”, acrescentou, desafiador.
Uma outra hipótese, contudo, é a de que Jamal não tenha sido morto — nem o seu corpo desmembrado — dentro do consulado saudita. “Os sauditas insistem que ele recebeu os seus documentos e saiu, disponibilizando-se para que o consulado seja alvo de buscas; os responsáveis turcos dizem que não o viram sair”, resume o New York Times. “Há uma hipótese arrepiante que é a de ambos estarem certos e que o senhor Khashoggi tenha sido levado num veículo diplomático para se juntar a outros críticos do príncipe Mohammed que têm sido presos sem serem sujeitos ao processo criminal devido.” Ou seja, há ainda a possibilidade de o jornalista ter sido levado para Riade — podendo estar neste momento detido, tal como aconteceu às ativistas Samar Badawi e Nassima al-Sadah em agosto.
Esta nova tese ganhou mais força com os dados publicados dias depois pelo jornal turco Sabah e citados internacionalmente pelo New York Times. De acordo com o jornal, dois jatos privados que transportavam 15 elementos dos serviços secretos sauditas aterraram em Istambul no dia em que Khashoggi entrou no consulado — um antes de ele ter entrado, o outro mais tarde. Os passageiros do primeiro voo ter-se-ão instalado num hotel perto do consulado saudita; os do segundo terão ido ter diretamente ao edifício do consulado. Ambos os grupos partiram da Turquia no próprio dia.
Hatice Cengiz (à esquerda), noiva de Jamal Kashoggi e última pessoa a vê-lo antes do desaparecimento (OZAN KOSE/AFP/Getty Images)
A somar-se a estes dados, há ainda a informação de que os funcionários turcos do consulado tiveram dispensa do trabalho nesse dia, de forma inesperada. E juntam-se a tudo isto os registos das câmaras de segurança, que estão a ser analisados pelas autoridades turcas e que, segundo o The Guardian, terão desaparecido do consulado de Istambul. Neles, é possível ver um grupo de seis veículos a abandonar o consulado cerca de duas horas e meia depois de o jornalista ter entrado no edifício — segundo o Sabah, os 15 agentes iriam nesses carros. Para além deles, saíram ainda uma carrinha negra de vidros fumados e um outro carro, que se dirigiram para a residência oficial do cônsul saudita, onde ficaram durante quatro horas. A equipa de investigadores, diz o jornal, acredita que Khashoggi poderia ir dentro da carrinha escura. 
De uma forma ou de outra, acumulam-se as denúncias dos que alertam para uma possível detenção ou assassínio com motivações políticas, numa tentativa do regime de MbS silenciar um dos seus críticos mais destacados. “O caso produz uma onda de choque entre os defensores dos direitos humanos e dissidentes da Arábia Saudita em todo o lado, com a erosão de qualquer ideia de que é possível procurar um porto seguro fora do país”, declarou a Amnistia Internacional, definindo este possível assassínio político como “um terrível novo ponto baixo”.
Como se não fosse suficientemente preocupante, o caso pode ainda ter repercussões internacionais, agravando ainda mais as relações diplomáticas entre a Turquia e a Arábia Saudita. Como resumiu o jornalista da BBC em Istambul, Mark Lowen, a relação já tem estado tensa por vários motivos, “incluindo o apoio da Turquia ao Qatar no caso do bloqueio feito pela Arábia Saudita; a sua proximidade à Irmandade Muçulmana — que está na lista negra de Riade, considerada uma organização terrorista; e a sua reaproximação ao arqui-inimigo da Arábua Saudita, o Irão”. “Mas se for dado como provado, o homicídio de Jamal Khashoggi seria a crise diplomática mais séria entre os dois países de que há memória”, escreve o correspondente.
Também nos EUA, vários responsáveis, incluindo o próprio Presidente, revelaram preocupação com o caso. “Neste momento, ninguém sabe nada sobre isto. Há umas histórias muito más a circular por aí, não gosto disto”, disse Donald Trump. Irá Jamal ser suficiente para Washington entrar na discussão e exigir explicações a Riade — com quem, no ano passado, fechou negócios de armamento no valor de mais de mil milhões de dólares?
A pressão sobre Washington acentua-se cada vez mais à medida que o tempo passa. Esta terça-feira, a noiva de Jamal escreveu um artigo de opinião, publicado no Washington Post, onde faz um apelo direto ao Presidente norte-americano: “Imploro ao Presidente Trump e à primeira-dama Melania Trump para que ajudem a explicar o desaparecimento do Jamal”, escreveu. No mesmo jornal foi publicada exatamente no mesmo dia uma notícia que dava conta de que talvez a Casa Branca não tenha sido tão apanhada de surpresa como o Presidente deu a entender: segundo uma fonte, antes do desaparecimento de Khashoggi os serviços secretos norte-americanos terão intercetado comunicações de responsáveis sauditas onde era discutido um plano para capturar o jornalista. O objetivo seria o de conseguir atrair o jornalista de volta à Arábia Saudita e, aí, “pôr-lhe as mãos em cima”.
Jamal estudou nos Estados Unidos e estava a viver no país desde o verão de 2017 (D.R.)

“Nós, sauditas, merecemos melhor”

Jamal Khashoggi costuma definir-se não como ativista, mas sim como jornalista. No entanto, tinha consciência do caráter político da decisão que tomou ao sair do país em protesto. Não foi a primeira vez que viu abusos no seu próprio país que o preocuparam: no passado, reconheceu, ficou muitas vezes calado, por medo. “Fiz uma escolha diferente desta vez. Deixei a minha casa, a minha família e o meu trabalho e estou a levantar a minha voz”, escreveu na sua primeira coluna no Post. “Quero que saibam que a Arábia Saudita nem sempre foi como é agora. Nós, sauditas, merecemos melhor.”
Isso mesmo disse Jamal ao Observador, naquela manhã de outuno em que estava em Los Angeles a conversar por telefone com uma jornalista portuguesa, do outro lado do mundo. “Se calhar, eu sou só um velho sem importância. Espero mesmo que ele [MbS] seja bem sucedido, mas acho que sozinho vai acabar por falhar”, lamentou-se, depois de ter partilhado a “sensação” de desconforto com que por vezes acordava. Mas não quis entrar em pormenores e recusou sempre lamentar-se. “Não quero parecer um tipo da oposição zangado”, confessou.
“Se for dado como provado, o homicídio de Jamal Khashoggi seria a crise diplomática mais séria entre Turquia e Arábia Saudita de que há memória”
Mark Lowe, jornalista da BBC em Istambul
A sua preocupação, explicou, estava apenas com os seus compatriotas: “Eu acredito no sistema, acredito no papel da Casa de Saud [família real]. Só gostava que eu e os outros sauditas pudéssemos participar. Andam a ser tomadas decisões importantes sem ouvir ninguém e acho que isso não é justo”, disse, talvez numa tentativa de simplificar as suas preocupações profundas para uma audiência estrangeira.
“Não é justo”, repetiu o jornalista uma última vez, deixando a frase perdurar do outro lado da linha antes de se despedir, agradecer e desligar.
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