quarta-feira, 3 de outubro de 2018

"Estes antropófagos de Mualama pertencem decerto à última fase, pois nem sequer estavam já organizados em seita."

(Leitura não aconselhada para pessoas sensíveis)

ZAMBÉZIA

Um salto de Pebane a Mualama — a caminho de Naburi.
Mais uma jangada, mais um rio agra­dável e mais um posto garrido. Estas sedes administrativas da Zambézia, postos e cir­cunscrições, são, em geral, muito simpáticos. Procuram ser confortáveis e belos e, de facto, enfeitam, por vezes, como canteiros floridos, as lapelas africanas de certas encostas e colinas — e constituem justa­mente um motivo de orgulho para a administração de Moçambique.
Mualama — a região — figura nas minhas notas de viajante como caverna de antropófagos. Foi por aqui que me encontrei com os primeiros de que tive notícia segura em Moçambique.
Já algures o escrevi, a antropofagia em África é costume quase extinto. Surge, porém, em pequenos focos eruptivos, esporádicos, atiçados por sobrevivências de velhos costumes e formas vivazes de feitiçaria — geralmente no seio de seitas secretas, para a formação das quais houve sempre grande tendência entre os negros.
Hoje, que sabemos de casos de antropofagia na Rússia, e, por ventura, de outros que a fome explicou, durante a guerra mundial — torna-se menos arripiante o conhecimento da antropofagia sobrevivente entre os povos bárbaros.
Estes antropófagos de Mualama pertencem decerto à última fase, pois nem sequer estavam já organizados em seita.
Narremos porém os factos, sem mais cuidados, pois não é este o lugar para descermos às profundidades sobre a antropofagia.
Esta região de Mualama — e por aí fora, para todos os lados — é uma das muitas de Moçambique em que os leões se habi­tuaram a devorar homens. Falaremos destes antropófagos de juba mais longe, nestas páginas. Os assaltos dos leões ofereceram a alguns antropófagos a oportunidade de lhes fazerem concorrência na caça ao preto — e lançarem depois as responsabilidades sobre as feras.
Ora, apareceram na região de Mualama, entre os indígenas massacrados, que se dizia terem sido vítimas do leão, alguns cujos ferimentos e amputações se tornaram suspeitos.
As investigações conduziram à descoberta de dois pequenos grupos de antropófagos — um constituído por três mulheres e dois homens, o outro só por três mulheres. Nada permite crer que estivessem organizados em seita — mas apenas agrupados supersticiosamente por qualquer velho, restante da antiga seita, que os houvesse induzido, iniciado e ligado ao costume. Pelo facto de terem um dia comido carne humana julgavam-se feiticeiros — e obrigados por consequência a persistir na qualidade contraída.
É verdade que estes grupos, embora tão pouco numerosos, procuravam ou aceitavam adeptos — aliás dificilmente, porque o costume repugna já à maioria dos negros e, especialmente, aos das novas gerações. Mas não havia entre eles espírito de seita, nem cerimónias especiais, nem, enfim, o ritual e as regras que as organizações sectárias não dispensam. Havia sim, uma espécie de iniciação, que resultava automaticamente do facto de se comer carne humana—e fazia do iniciado, por esse facto, um devedor de carne. Quer dizer: os convivas do banquete e, com mais razão, o conviva que o era pela primeira vez, obrigava-se a pagar, a retribuir a gentileza. E pagava, tendo para isso que cometer um crime, ou era comido. Quer dizer os grupos seguiam aproximadamente os passos das organizações de antropófagos em toda a África, onde a antropofagia se praticou e ainda pratica — mas só aproximadamente. Eram, na verdade, representantes de um costume, envelhecido, gasto, extinto por assim dizer. Para não repetir nem alongar histórias, entre si muito semelhantes, limitar-nos-emos a contar a mais curiosa, entre as que se produziram no seio destes antropófagos de Mualama.

No grupo menos numeroso dos que referimos atrás, e era, antes da nossa passagem por Mualama, constituído por três mulheres e um homem, este, de nome Morrilha, funcionava como uma espécie de chefe. Não que houvesse chefes designados ou eleitos, mas porque, tacitamente, reconheciam como tal o que entre eles se distinguia por maior número de crimes praticados.
O Morrilha há muito tempo que devia carne a uma mulher do grupo chamada Muhiroâ. Quer dizer comera carne humana morta e oferecida por aquela — e ainda não retribuirá a refeição. Como entre antropófagos esta falta de cortesia se chama uma dívida — o Morrilha devia.
Como boa e consciente credora, que certamente já se vira em situação devedora idêntica, Muhiroâ insistia frequentemente pelo pagamento da dívida. Que o Morrilha lhe pagasse em carne a carne que lhe devia!
Não era fácil — mas o devedor era honrado.
Tão solicitado e perseguido se viu pela credora, que a convocou para a sua palhota juntamente com as restantes componentes do grupo — a Quuiniquelane e a Vancela — com mira numa concordata. Uma vez reunidos, expôs o Morrilha as dificuldades com que lutava a autoridade administrativa já dera com os primeiros delinquentes, trazia-o debaixo de olho, e deitar-lhe-ia decerto a mão, imediatamente, se ele matasse alguém para pagar a dívida. E não era só ele que estava ameaçado — eram também os próprios objectivos do grupo, cujas actividades canibalescas tinham de cessar, perante o chefe de posto já advertido e determinado a persegui-los implacàvelmente.
A credora porém não desistia. Queria a carne que lhe era devida; não eram explicações que satisfariam os seus apetites.
Então o Morilha, escravo da sua palavra, honradíssimo devedor, reconheceu que tinha de pagar. Se matasse alguém para cumprir seria preso. E como para ele, já velho, não havia grande diferença entre a prisão e a morte — propunha sacrificar-se, dar a sua própria carne. E o festim em que fosse devorado seria, ao mesmo tempo, o acto da liquidação do grupo — isto é o Morrilha seria comido e o grupo dissolver-se-ia.
A proposta foi aceite com a maior simplicidade.
Separaram-se para se encontrarem à tarde na machamba do Morrilha.
Nenhum faltou — nem o próprio.
Não houve dificuldades, nem cerimónias, nem palavras inúteis. Estavam todos de acordo e todos sabiam o que queriam. A Muhiroâ aproximou-se do Morrilha que, impassível, recebeu as duas facas que ela lhe cravou no peito. Ao mesmo tempo a Quiquelane trespassava-o com um estilete afiado. A Vancela, simples principiante, que no seu activo de canibal apenas contava a morte de dois filhos de poucos meses, que matara e comera, apenas assistiu à agressão e morte do Morrilha.
Ali mesmo, no local do crime, comeram uma parte da barriga, dos intestinos e das costas do cadáver. A Vancela lambeu-lhe o sangue e foi contemplada com uma posta do lombo.
Terminada esta refeição, crua naturalmente e destemperada, retiraram-se, levando a Muhiroâ e a Quiniquelane uma perna cada uma. Os restos foram abandonados — e quando, depois da confissão a autoridade os encontrou, viu-se que correspondiam perfeitamente à narrativa feita pêlos criminosos.
A investigação realizada sobre este e outros casos que levaram à prisão e deportação os antropófagos de Mualama, mostrou, além da decadência do costume, desacompanhado das cerimónias e ritos de outrora, da intensidade perdida e do espírito de seita esfrangalhado — também que as causas e os processos não diferiam essencialmente dos observados em toda a África. Os homens-leopardos, eram aqui homens-leões, as formas de matar eram semelhantes, o conhecimento dos factos era cuidadosamente ocultado pelas famílias e amigos das próprias vítimas.
Como manifestação de decadência notou-se que não só a superstição, as crenças tradicionais, a feitiçaria, enfim, mas também o banditismo puro figurava entre as causas determinantes da acção destes antropófagos.
A fatalidade, a vingança, o pantagruelismo — e, também, o assassinato por dinheiro, a soldo de terceiros — fizeram numerosas vítimas em Mualama.
Um conflito com qualquer dos membros da seita suscitava a vingança do grupo. O interessado no conflito dava parte aos colegas e eles resolviam imediatamente solidariesarem-se com ele — que deveria ser o executor e, por isso, dono da carne. A solidariedade, no fundo, consistia em comerem juntos a vítima. O assassino tinha direito à parte inferior do corpo, da cintura para baixo, o coração e a cabeça pertenciam sempre ao que reconheciam como chefe; os outros repartiam o que restava — tronco e membros superiores.
Um dos antropófagos preso em Mualama (o Maico) confessou que resolvera desfazer-se de um tio, para se vingar por ele lhe ter roubado uma camisa.
Tinha planeado o assassinato para certo dia em que, acompanhado da Quiquelane, atrás referida, seguia com o tio pelo mato fora. Mas teve pena do parente e não o matou — o que naturalmente desagradou à companheira que já contava com a sua parte de carne. E para não desiludir esta atacou o primeiro que encontrou — uma tal João Manhula— que só escapou por ter conseguido fugir.
O pantagruelismo revelou-se também nas confissões de outros. Alguns declaravam que caçavam o homem como outros caçavam os bichos e porque a carne humana lhes agradava mais que a dos antílopes. A Vancela e outra que usava o nome de Fátima, especifcaram que até o excremento das vítimas humanas é mais saboroso do que a carne de qualquer animal selvagem, e mais salgado!
Ao mesmo tempo — vá lá entendê-los um bestunto de branco! — intervinham na bárbara tragédia sentimentos que pareciam e parecem absurdos.
Por exemplo:
Aquela Vancela, que referimos, que assistiu ao assassinato do Morilha e lambeu sangue do seu cadáver, que de acordo com os companheiros do grupo matara e comera dois filhos de tenra idade — trazia às costas, quando foi presa, um outro filho de seis meses. Como a criança parecesse doente — apenas um farrapito vivo de carne, tão definhada se encontrava — foi mandada entregar aos cuidados do Posto Sanitário e, naturalmente, separada da mãe. Pois não se imagina a aflição, a dor comovente, as súplicas da megera para que não lhe tirassem o filho. E não podia duvidar-se de que a sua dor fosse profunda e sincera.
Naburi, mais adiante, é a sede de um outro posto que procurava então embelezar-se.

In RONDA DE ÁFRICA de Henrique Galvão 

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