sexta-feira, 12 de outubro de 2018

As pessoas viam das janelas os homens que lhes mataram os filhos. E homens viam nas janelas quem lhes fez o mesmo


A Rua da Síria divide dois bairros que estiveram várias vezes em conflito, um habitado maioritariamente por sunitas e outros por alauítas
FOTO JOSEPH EID/AFP/GETTY IMAGES

Quem olha do cimo da cidadela de Trípoli não imagina que durante mais de 40 anos os bairros que daqui se veem estiveram em conflito aberto. As pessoas não se falavam, não vendiam os seus produtos a habitantes do outro lado da rua e os ataques de snipers matavam adolescentes sem culpa. Os libaneses ainda pensam que Trípoli é “um ninho de bárbaros” mas Yassmin Lawzi está - quase sozinha - a mudar isso. Este é o quarto retrato de uma série de cinco que o Expresso trouxe do Líbano, de pessoas que lutam pela tolerância num país onde uma em cada seis pessoas é refugiada

O castelo mais antigo de Trípoli tem uma moldura de tanques, carrinhas de caixa aberta apetrechadas com metralhadoras, homens armados e placas de betão. É um dos principais checkpoints da cidade, que durante mais de 40 anos viveu sob um conflito intermitente entre sunitas e alauítas.
Yassmin Lawzi antecipa o impacto que aquele cenário viria a provocar nas pessoas que, naquele domingo, levou a conhecer a sua cidade. “Temos lá os soldados porque ainda há o risco de confrontos e o governo não quer que nenhuma das fações ocupe o forte. Dali vês a cidade toda, podes ver os teus inimigos, as mesquitas, as concentrações de pessoas.”
Com 25 anos e nascida em Trípoli, Yassmin começou a organizar visitas turísticas à cidade quando já estava na faculdade, em Beirute, e percebeu que alguns dos seus colegas e tantos outros habitantes da capital tinham medo de lá ir porque os meios de comunicação a descreviam como um quase campo de batalha urbano, o que não é agora nem era na altura a verdade toda.
O entusiasmo com a cidade já vinha de trás. “Tinha 12 anos e estava com os meus primos nos mercados antigos a brincar, íamos sempre para os ‘souks’ comprar frutas, ovos e vegetais para a minha avó, com quem eu vivia na altura. Um grupo de raparigas da Europa, não me lembro de onde, perguntou-me onde era a Cidadela e eu, como não sabia falar inglês, fui com elas até lá.” Depois acompanhou-as à estação de autocarros e comprou-lhes postais e lembranças de Trípoli. Com isto, percebeu que havia ainda tanto que não sabia sobre a cidade, tantas perguntas a que não conseguiria dar resposta caso tivesse de o fazer.
Um ano mais tarde, encontrou um casal de turcos, também nos souks, mas desta vez levou-os a casa da avó. “Os meus pais encorajavam-me muito a fazer isto, eu tinha mais medo do que a minha avó. Pensava que alguma coisa podia acontecer ao levar estranhos para casa mas eles diziam-me para continuar a ensinar pessoas e a levá-las a comer lá.”
Yassmin Lawzi, de 25 anos, na Universidade Americana de Beirute, onde trabalha
Yassmin Lawzi, de 25 anos, na Universidade Americana de Beirute, onde trabalha
Trípoli fica a 80 quilómetros a norte de Beirute e, deste sítio onde Yasmeen nos trouxe, vê-se a rua que divide dois bairros que estão em conflito intermitente desde a guerra civil do país, que começou em 1975 e terminou em 1985. Bab al-Tabbaneh, maioritariamente sunita e cujas milícias foram, ao longo dos anos, financiadas pela Arábia Saudita; e Jabal Mohsen, onde vivem sobretudo pessoas da minoria alauíta, proveniente do xiismo e que, por seu lado, recebem apoio do governo sírio, já que a dinastia de Bashar al-Assad é precisamente deste ramo. É uma rua com movimento, com várias lojas de ambos os lados, barbearias e frangos a rodar sobre uma cama de chamas. Chama-se Rua da Síria, uma ironia, como mais à frente se verá.
Durante a Guerra Civil do Líbano, os alauítas do bairro de Jabal Mohsen alinharam-se com exército sírio, que tinha entrado na guerra para combater os islamitas sunitas do al-Tawhid, com sede em Bab al-Tabbaneh, um partido importante durante os anos da guerra e que defendia uma visão mais conservadora do islamismo.
Yassmin conta que a entrada do Exército sírio no país por al-Tabbaneh fez dezenas de mortes e as pessoas começaram a achar que tinham de se armar para se defender. “Havia milícias nas duas áreas e durante muito tempo, as pessoas iam na rua e eram mortas por snipers. Não se sabia de onde vinham as balas. Os civis sofreram muito mais do que as milícias e essa imprevisibilidade da violência, onde se concentrava, quando e onde havia luta, isso era difícil de precisar e as pessoas começaram a associar Trípoli a essa espécie de caos.” As ruas do norte da cidade ainda têm fotografias nas paredes de jovens que foram mortos sem sabermos ainda porquê ou por quem.
No fim da guerra, as coisas acalmaram mas das janelas das casas de Jabal Mohsen as pessoas veem Bab al-Tabbaneh, veem os homens que lhes mataram os filhos. E estes veem o mesmo do outro lado. Durante os primeiros quinze anos do novo milénio, os confrontos foram acontecendo com uma cadência demasiado próxima para uma população que já vive na pobreza e não precisa de mais tragédias. Cerca de 50% da população de Trípoli é pobre e 26% vive na pobreza extrema. Em 2017, o Banco Mundial disse que no norte do Líbano 53% das pessoas em idade ativa estão desempregadas.
FOTO KATE BROOKS/GETTY IMAGES
Tudo voltou a piorar em Trípoli quando a guerra da Síria contaminou o Líbano. As antigas raivas incendiaram de novo bairros vizinhos num conflito que se tornou uma espécie de microcosmos para a guerra maior que se passava mesmo ali ao lado. A fronteira entre os dois países tornou-se particularmente porosa, deixando passar para o Líbano opositores e apoiantes do governo sírio que vieram espalhar a mesma luta em novo solo - em 2015, estimava-se que entre 20% a 30% da população dos dois bairros fosse de origem síria, muitos deles refugiados em busca de paz depois da guerra. Libaneses destes dois bairros foram também para a síria, lutar em lados opostos. Quando voltaram para casa, trouxeram consigo a sua luta. No início da Guerra da Síria, muitos habitantes desta zona tinham medo de que essa guerra entrasse em força no Líbano através destes dois bairros.

“AS PESSOAS EM BEIRUTE PENSAVAM QUE A MINHA CIDADE ERA UMA ESPÉCIE DE NINHO DE BÁRBAROS”

Em oito anos morreram 200 pessoas nestes confrontos locais, segundo o Comité Internacional da Cruz Vermelha. A violência terminou em 2014, quando o Exército libanês assumiu o controlo da região.
Depois do encontro com o casal de turcos, Yassmin inscreveu-se num clube de arqueologia em Trípoli e começou a participar na organização de visitas a vários sítios históricos que se destinavam sobretudo a alunos de escolas locais. Aos 18 anos, mudou-se para Beirute, para estudar Saúde Pública e Ambiental na Universidade Americana, numa altura em que os confrontos já tinham terminado em Trípoli mas havia ainda resquícios do ódio lavrado durante décadas. “As pessoas aqui em Beirute pensavam que a minha cidade era uma espécie de ninho de bárbaros, havia muitos preconceitos e muitos estereótipos contra as pessoas de Trípoli. Mesmo comigo, quando eu dizia que era de lá, diziam-me ‘ok, então é preciso ter cuidado contigo, vocês são gente que ferve em pouca água’, e coisas assim.”
Yassmin conta também que havia uma rapariga que, por ser de Jabal Mohsen, era posta de parte a toda a hora, “não saía com ninguém porque não a convidavam”. Isso fê-la pensar nela própria e em como a perceção dos outros tinha já afetado a sua. “Então pensei: ‘não, isto não sou eu, meio escondida, eu sou uma rapariga muito sociável e acessível que aceita toda a gente’”, diz, lembrando que desde a escola secundária sempre esteve envolvida em projetos comunitários e a tentar “aproximar as pessoas” e que isso - assim como a sua família, que é uma “mistura entre diferentes ramos de diferentes religiões” - ajudou-a a entender que “as pessoas não são diferentes, mesmo aquelas que estão separadas por linhas religiosas”.
À entrada da Cidadela, o Exército tem montado um dos seus maiores checkpoints da cidade
À entrada da Cidadela, o Exército tem montado um dos seus maiores checkpoints da cidade
Foi então que Yassmin decidiu começar a convidar pessoas para visitar a sua cidade e a organizar viagens, primeiro colegas de turma, mais próximos, e depois todos os estudantes da universidade. De início não cobrava nada porque não queria fazer de uma “coisa pessoal um negócio” e porque a ideia era “mesmo mudar a perceção das pessoas, mais nada”, mas em 2017 as pessoas já falavam sobre as visitas “em todo o lado” e os amigos começaram a insistir para que fizesse daquilo uma espécie de negócio. Yasmeen acabou por aceder. “Comecei a pedir dinheiro mais para as pessoas estarem com atenção do que outra coisa, porque não quero reservar o meu dia e depois ninguém prestar atenção ao que digo ou nem aparecerem. Ao mesmo tempo, sempre parece mais profissional se houver um preço associado.”. Cada visita tem o custo de 20 dólares e dura à volta de cinco horas. Aos visitantes, como nós, é prometida uma visita pela zona antiga da cidade que inclui os monumentos principais e os antigos ‘souks’, bem como ruas típicas atulhadas de bancas onde se vende desde sabão fabricado artesanalmente a vegetais com forma exóticas. A ideia é ver a cidade pelos olhos dos que lá vivem.
Com cada vez mais a gente a pedir a Yassmin uma tour em Trípoli, principalmente desde o último verão, terá ela já conseguido mudar as perceções?, perguntamos-lhe.
“Sim, toda a gente que foi comigo voltou chocado. Os estudantes, por exemplo, ficam muito admirados e dizem-me: ‘Yassmin, as pessoas são iguais a nós, a comida é boa e podes estar na boa num café em qualquer parte da cidade’. Para mim, é estranho que eles algum dia tenham pensado outra coisa que não isto, mas não julgo ninguém porque as pessoas leem e veem nos jornais coisas que podem não ser bem reais e por isso e até lhes louvo a coragem de irem a Trípoli, dada a perceção que existe sobre a cidade”. Em todas as cidades “há pessoas boas e más e ninguém te pede para dizeres de que ramo religioso és”, continua Yassmin, acrescentando que era precisamente isso que as pessoas achavam que acontecia em Trípoli e que consoante a resposta àquela pergunta teriam ou não uma estadia segura.
Os conflitos em Trípoli foram em várias ocasiões descritos mais como políticos e económicos do que sectários e é essa também a defesa de Yassmin, que a meio da conversa volta a esse tema: “Eu estava a viver lá durante os confrontos e toda a gente ia ao mercado e aos cafés e toda a gente saía. Os confrontos existiam mas não passaram para o centro de Trípoli, ficaram confinados aos subúrbios. E são unicamente políticos, não são sectários como dizem os jornais”.
Quanto a ela e aos amigos, nunca se envolveram de modo algum nos confrontos e na disputa entre bairros, nem ideologicamente. “Isto não define ninguém, viver nestes bairros ou não. As pessoas estão todas a viver tempos de grande convulsão económica, somos todos iguais nisso. Os problemas de um bairro são os problemas do outro, as pessoas são as mesmas, os problemas de pobreza são os mesmos e são graves. As pessoas vivem muito mal mas não desistiram de viver.” Mesmo durante a Guerra Civil, continua a estudante, “os libaneses tiveram filhos, houve casamentos no meio de bairros em guerra, as famílias procuravam outros bairros para viver mas iam vivendo, os cafés estavam cheios e os mercados ainda tinham clientes”. “É preciso ir esquecendo. Os libaneses sabem disso.”
Yassmin aponta o dedos aos políticos “que utilizam a pobreza das pessoas para as dividir mas são amigos entre eles, semeiam a divisão mas eles mesmos, sendo de diferentes religiões, são amigos”, e aí a conversa entra definitivamente no campo da política. Conta que a mãe candidatou-se ao Parlamento pelo único partido civil das eleições parlamentares de 2018 - o Tahaluf Watani (“Somos todos uma nação”) -, uma coligação de 11 movimentos independentes. “A minha mãe não pensou nunca que fosse ganhar, não era esse o objetivo. A nossa batalha foi mostrar que havia uma alternativa para todos e não apenas para aqueles que pertencem a este ou aquele grupo.”
Das eleições, que acompanhou de perto enquanto observadora nas urnas, retirou apenas uma certeza - que a corrupção é cada vez maior e mais perniciosa. “Não havia privacidade nenhuma nas urnas. Os líderes dos partidos acompanhavam as pessoas à cabine de voto para garantirem que elas votavam no ‘partido certo’”, depois de lhes ter sido prometido “dinheiro ou emprego para os filhos”. “No dia das eleições estavam a ser distribuídas 50 libras por voto, 30 dólares. Diziam às pessoas: ‘se não votares em nós há formas de sabermos’. Obviamente que não havia mas as pessoas tiveram medo na mesma.” Quando estava a contar os votos, diz ainda Yassmin, “olhavam para um boletim e declaravam-no inválido, embora não houvesse nada no papel que indicasse que o boletim estava de facto invalidado”. Algumas caixas de votos acabaram mesmo na rua e foram encontradas debaixo de árvores. Cinco meses depois das eleições, o Líbano continua sem governo.

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