Enquanto uma parte da “geração 8 de Março” estava a formar-se na UEM e no estrangeiro, muitos outros continuamos com os nossos “8 de Marços” ajudando “agarrar o barco para não afundar” até que salvação chegasse. E assim, nessa de “faztudo” no MEC, de entre as várias coisas que fiz também com gosto pela aventura que era e que me ensinaram muitas coisas foi viajar para as províncias em brigadas de controlo e monitoria das atividades de educação e cultura. Claro que sem nenhuma formação ou experiência que desse para tal!
A uma certa altura havia brigadas especializadas por províncias, cada uma com quadros médios e seniores, técnicos e dirigentes. Eu estava lá como um “faztudo”, nem técnico, nem dirigente.
A uma certa altura a “minha” Província foi Cabo Delgado. Lá estava o Governador Raimundo Pachimuapa, e o Diretor de Educação era o Miguel Nkaima (acho que depois de muitas voltas este agora está numa de Embaixador). Lá também conheci o Pereira (da Educação Física e Desportos, agora Diretor do Complexo Desportivo de Zimpeto) e que na altura era responsável provincial para a educação física e o desporto escolar. Viajei sempre com os seniores, mas pouco a pouco foram-me sendo confiadas missões, sozinho ou “chefiadas” por mim, incluindo outros “faztudo” como eu. Estamos aos 21 anos de idade.
O agora Arquitecto Luís Lage era professor do ensino secundário lá em Pemba (creio que de desenho, não estou recordado). Apesar de termos trabalhado juntos nessa altura, nunca cheguei a saber se ele é originariamente de lá ou foi para lá atirado no quando do “8 de Março”. Mais tarde lá ficou também o António Saia, que creio que era professor numa das “Noroestes” de Maputo, e acabou ficando destacado para Cabo Delgado para reforçar o elenco dos serviços provinciais. Estes dois ficaram amigos entre eles e comigo, e enquanto estiveram em Cabo Delgado aturraram muito das minhas presunções de “Chefe” vindo da “Nação” (era assim que Maputo era designada pelas pessoas nas Províncias: “Nação”!). E ficamos muito amigos. O Luís Lage sempre me chamou “Chefe” com um sarcasmo benigno e ria-se sempre que usava a palavra “Nação” em referência a Maputo. Acho que foram eles (o Luís Lage e o António Saia) que numa outra missão me levaram a comer os feijões de Montepuez a que me referi no post anterior, a pretesto de irmos trabalhar na escola secundária que lá se localizava.
Uma vez foi-me confiada uma missão muito difícil, de cuja dimensão real só me dou conta dela cada vez que me recordo dela e a medida que vou crescendo. Acho que estamos mesmo em 1979 (ou em 1978, mas certamente não mais tarde). A Escola Secundária de Pemba estava numa crise terrível. Ensino e aprendizagem totalmente desorganizados. Fome. Doenças gravíssimas. Creio que houve cólera e até meningite. Diarreias agudas tenho muito bem a certeza que houve. Isso tudo no centro da cidade, a cerca de 300 metros ou menos da Direcção Provincial de Educação e Cultura, e do Gabinete do Governador, e todas as direcções provinciais que compunham o governo provincial. Dalí daquela escola, certamente não sairia “Homem Novo” nenhum! Era o salve-se quem puder! Era um problema gravíssimo de gestão. Não sei porque carga da coisa as autoridades provinciais todas não conseguiam sanar aquela situação.
Não me recordo bem se fui lá sozinho, ou fui numa “brigade” e depois deixado lá ficar. O certo é que a uma certa altura eu estava lá para lidar com a situação pelo ministério da educação. Como sempre, deram-me “carta branca” para solicitar o apoio de todas as autoridades que tivessem que intervir. Tinha autoridade até de forçar o encerramento da escola se fosse necessário. Tinha acesso ao Governador que na altura era o Sr. Raimundo Pachimuapa, e a quem devia ir caso fosse necessário. Quando fui ter com ele pela primeira vez, ele pareceu-me totalmente desolado. De resto aquilo tinha acontecido sob o nariz dele. Naquela altura ele me pareceu um homem com coração e modesto, e por isso muito respeitado localmente. E estava sinceramente desesperado de ter aquela situação nas suas mãos. Aliás, parece ter sido ele que forçou o Ministério da Educação e Cultura a enviar lá uma equipa para resolver aquele problema.
Hoje, aos quase sessenta anos de idade, não sei como reagiria ao que vi. Tão séria era situação e problemática a missão, embora eu não creia que na altura tivesse a dimensão exata da coisa. Como dar uma tarefa destas a um jovem de 21 anos sem responsabilidade funcional nenhuma e sem formação de professor? Um “faztudo” a quem se deu autoridade somente para aquela tarefa!
Mas SAIMO-NOS bem. E digo SAIMO-NOS porque de facto foi um trabalho de equipa com o agora Arquitecto Luís Lage e o António Saia. Mas mais do que nós os três, foi decisivo o apoio e até orientação que tivemos das freiras (irmãs religiosas) que estavam lá desde os tempos de antes das nacionalizações de centros educacionais pelo gooverno da FRELIMO. [Eu de facto não me recordo se aquele centro antes havia pertencido a igreja, mas sei que as freiras estavam lá desde antes das nacionalizações]. Elas conheciam os cantos todos do centro: desde as salas de aulas, dormitórios, cozinhas, casas de banho, biblioteca (que já não existia senão em nome!), tudo. Sabiam o que estava lá antes e o que havia sido destruído ou roubado. Conheciam muitos meninos pelos primeiros nomes. Sabiam como gerir uma escola, como educar centenas de adolescentes e impor ordem e disciplina entre alunos e professores. Acho que fiquei lá uma ou duas semana, e tivemos dezenas de reuniões com professores e estudantes, e as vária estruturas da educação e saúde que tinham que intervir para sanar-se aquela situação melindrosa. Conferenciei várias vezes em privado com as freiras, para lhes pedir a sua ajuda. Na reunião decisiva ficamos numa plenária desde a tarde até madrugada, com alunos e professores. E tudo foi delineado.
Estava claro que os serviços provinciais de educação sozinhos não teriam capacidade de resolver aquela situação. Mandar as crianças de volta para as suas aldeias, não só as prejudicaria mais como até criaria um problema politico muito grave na província. É que muitas daquelas crianças vinham do campo, uma parte delas mesmo das antigas “Zonas Libertadas da FRELIMO”. Mas para além do mais, as irmãs religiosas tinham soluções, experiência e autoridade moral. Conheciam os pais de uma boa parte daquelas crianças e conheciam a comunidades de onde elas vinham. Portanto, a solução pendia entre fechar a escola (pelo menos temporariamente), ou aceitar dar um papel preponderante às freiras na sua gestão (mesmo que informalmente, dada a sensibilidade política desta opção numa altura em que o governo ainda tinha grandes atritos com a igreja católica). Para mim não havia dúvidas que esta última solução era preferível.
Mas como fazer isso, sabendo que o governo da FRELIMO estava em “rixas” com a igreja católica depois que nacionalizou as missões e outras do facilidades a ela pertencentes e estava contra o papel dos religiosos nas escolas? Como fazer isso em nome de um governo que de uma maneira ou outra naqueles anos empurrou os missionários para o lado, afastando-os das responsabilidades de educação e gestão dos estabelecimentos (pelo menos naquela escola havia sido esse o caso).
Agonizamos, mas para mim não havia dúvidas que a solução passava por aí. Os meus colegas concordaram comigo, ou simplesmente não se opuseram. Assim tomei o risco. Fui ter com o Governador e expus-lhes as opções expliquei qual era a minha escolha. O Governador Pachimuapa, pessoa sensata que era (pelo menos naquela altura me pareceu, ou simplesmente ele também viu que não tinha outra saída) acedeu facilmente e não viu problema absolutamente nenhum (!). A minha memória me diz que ele acabou nos encorajando nessa linha, embora eu não lhe possa comprometer nisso pois a memoria sempre trai! De qualquer modo, permitir que fizéssemos isso significa que ele tomava responsabilidade. Era o chefe máximo na província. E assim avançamos com a ajuda das irmãs religiosas. O que para mim foi um alívio muito grande. Podia voltar para a “Nação” com a sensação de missão cumprida.
Não tenho a memória exata dos detalhes do que na prática depois se seguiu. O certo porém é que as irmãs religiosas foram trazidas a um papel de maior autoridade e responsabilidade na reorganização e gestão da escola.
O “Chefe” regressou a “Nação”. O António Saia e o Luís Lage ficaram a acompanhar resto.
(Continua na Estaca VI – Primeira incursão pelas “Zonas Libertadas” da FRELIMO)
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