O CAMPO DA MORTE RELATÓRIO SOBRE EXECUÇÕES SUMÁRIAS EM LUANDA 2016-2017
RAFAEL MARQUES DE MORAIS
ÍNDICE
INTRODUÇÃO 5 A HISTÓRIA DOS ESQUADRÕES DE MORTE 9
A DINÂMICA DAS EXECUÇÕES SUMÁRIAS EM ANGOLA 12
PARA QUE SERVEM AS LEIS E O DIREITO À VIDA? 15
O CONTRADITÓRIO 16
METODOLOGIA 19
CASOS
CASO N.º 1: “ACABADO” NA ESQUADRA 22 6 de Novembro de 2017 CASO N.º 2: UM MAU TRABALHO 24 30 de Setembro de 2017 CASO N.º 3: CENOURA 28 10 de Setembro de 2017 CASO N.º 4: “SÃO GATUNOS E MERECERAM MORRER” 29 20 de Abril de 2017 CASO N.º 5: CERCADOS 32 15 de Abril de 2017 CASO N.º 6: O GATUNO É O SETENTA 33 12 de Abril de 2017 CASO N.º 7: AVISO: NO BAIRRO 6 ESTÃO A MATAR 35 9 de Abril de 2017 CASO N.º 8: NÃO FAZ SENTIDO DEFENDÊ-LO 36 21 de Março de 2017 CASO N.º 9: OS LOBOS E OS MINI-LOBOS 36 23 de Fevereiro de 2017
CASO N.º 10: TÃO LOGO SAIU EM LIBERDADE 37 29 de Janeiro de 2017 CASO N.º 11: FUZILAMENTOS COM VISÃO CRISTÃ 40 8 de Março de 2017 CASO N.º 12: O MATADOR TROCA-TIROS 41 7 de Março de 2017 CASO N.º 13: CELEBRAÇÃO DO PRIMEIRO ANO DO CURSO DE DIREITO 43 7 de Março de 2017 CASO N.º 14: CIRCULAR ATÉ MORRER 44 1 de Março de 2017 CASO N.º 15: QUEM MATOU FOI O PULA-PULA 45 1 de Março de 2017 CASO N.º 16: A AVÓ MORRE TAMBÉM 46 27 de Fevereiro de 2017 CASO N.º 17: A ÚLTIMA CONFISSÃO 47 16 de Fevereiro de 2017 CASO N.º 18: ABEGA OU DROGBA É IGUAL 48 4 de Fevereiro de 2017 CASO N.º 19: O CRIME É TRANSMISSÍVEL? CALA BOCA 50 4 de Fevereiro de 2017 CASO N.º 20: POLÍCIA NÃO ACODE GATUNOS 51 3 de Fevereiro de 2017 CASO N.º 21: SALVAR O AMIGO É INTERFERIR NO TRABALHO DA POLÍCIA 52 28 de Janeiro de 2017 CASO N.º 22: “A CABEÇA DELE JÁ NÃO TRABALHAVA” 54 27 de Janeiro de 2017 CASO N.º 23: A VIAGEM DA NOIVA 55 26 de Janeiro de 2017 CASO N.º 24: MÃE VÊ QUEM MATA O FILHO 56 24 de Janeiro de 2017
CASO N.º 25: A FOTO DELE ESTAVA NO TABLET 57 24 de Janeiro de 2017 CASO N.º 26: A EMBOSCADA DA GASOLINA 58 24 de Janeiro de 2017 CASO N.º 27: DE COLABORADOR A VÍTIMA 59 21 de Janeiro de 2017 CASO N.º 28: O ÚLTIMO CHARRO 60 20 de Janeiro de 2017 CASO N.º 29: O FILHO DO TENENTE-CORONEL 62 20 de Janeiro de 2017 CASO N.º 30: DROGA! O TIO ENFORCA-SE TAMBÉM 65 6 de Janeiro de 2017 CASO N.º 31: CAÇA AO MANINHO — PROCURADO PARA SER MORTO 66 16 de Dezembro de 2016 CASO N.º 32: EXECUTADO NO VELÓRIO DO AMIGO 67 5 de Dezembro de 2016 CASO N.º 33: OS IRMÃOS DOMINGO E O MATADOR DE NADA 68 18 de Novembro de 2016 CASO N.º 34: INJECÇÃO DE ÁGUA DE BATERIA? 70 16 de Novembro de 2016 CASO N.º 35: A FESTA DE ANIVERSÁRIO DO KUDURISTA 71 23 de Outubro de 2016 CASO N.º 36: OS SOBREVIVENTES E A LISTA DOS ALVOS 72 10 de Outubro de 2016 CASO N.º 37: UM CASO PASSIONAL 74 20 de Setembro de 2016 CASO N.º 38: A ÚLTIMA CHAMADA 75 11 de Setembro de 2016 CASO N.º 39: A FESTA ACABOU 76 10 de Setembro de 2016
CASO N.º 40: FUZILADOS NA CAMA 76 9 de Setembro de 2016 CASO N.º 41: O VIZINHO MATADOR 78 7 de Setembro de 2016 CASO N.º 42: BICHO MAU 79 6 de Setembro de 2016 CASO N.º 43: A CORRIDA 81 6 de Setembro de 2016 CASO N.º 44: A MISSÃO INGRATA 83 26 de Agosto de 2016 CASO N.º 45: MICUIA 83 16 de Junho de 2016 CASO N.º 46: “O MEU TIO ERA MESMO GATUNO” 84 6 de Junho de 2016 CASO N.º 47: DA ESQUADRA DOS CONTENTORES PARA O CAMPO DA MORTE 85 5 de Maio de 2016 CASO N.º 48: “DISSE APENAS QUE AMAVA MUITO A MINHA MÃE” 86 Abril de 2016 CASO N.º 49: DEPOIS DO FUNERAL, A MORTE 87 19 de Abril de 2016 CASO N.º 50: DESESPERADAMENTE EM BUSCA DE UM CORPO 88 13 de Abril de 2016
AGRADECIMENTOS 90
INTRODUÇÃO
INTRODUÇÃO
O “CAMPO DA MORTE”
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Os 50 casos de execuções sumárias reportados neste relatório ocorreram entre Abril de 2016 e Novembro de 2017, sobretudo nos municípios de Cacuaco e Viana, os mais populosos de Luanda. Cerca de metade da população da capital do país, estimada em sete milhões de habitantes, vive nesses dois municípios. Trata-se de uma pequena amostra ilustrativa de uma actividade metódica e sistemática que afecta muitas outras centenas de vítimas: o assassinato, por parte de operacionais do Serviço de Investigação Criminal (SIC) — dirigido pelo comissário Eugénio Pedro Alexandre —, de jovens tidos como delinquentes ou simplesmente indesejados. Não se trata de casos esporádicos, mas sim de um mecanismo de exterminação montado pelo SIC, com a colaboração de alguns cidadãos, os quais indicam, através de listas ou apenas verbalmente, os jovens a serem abatidos, sem qualquer procedimento de investigação. A título de exemplo, o jovem Abega (ver Caso n.º 18) foi confundido com um outro, de nome Drogba, um presumível delinquente. Foi levado para as traseiras de um autocarro e atingido com dois tiros, um no olho esquerdo e outro nas costas. Acreditando que ele estava morto, os polícias abandonaram-no, mas Abega sobreviveu para contar a sua história. Depois de, em Abril de 2017, termos reportado e partilhado todos os casos em nossa posse, recolhidos à data, com o ministro do Interior, Ângelo de Barros Veiga Tavares, verificou-se um longo período de acalmia, que coincidiu também com a campanha eleitoral e o primeiro mês pós-eleitoral. Depois das eleições de 23 de Agosto e da tomada de posse do novo presidente a 26 de Setembro, a 30 de Setembro, porém, os agentes do SIC voltaram às campanhas de assassinatos. Para além de Cacuaco e Viana — os dois municípios sobre os quais incide o nosso levantamento de casos — também no município do Cazenga ocorreram incontáveis assassinatos. Alguns casos constam da lista descritiva do relatório e, pelo seu carácter inaugural e paradigmático, este município merece lugar de destaque na introdução. Na realidade, a comuna do Kikolo, onde ocorreu grande parte dos assassinatos, era até recentemente parte do município de Cacuaco, mas foi dividida administrativamente para fins eleitoralistas. Grande parte do
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seu território passou a estar sob jurisdição do Cazenga. Cacuaco tornou-se o principal bastião eleitoral da oposição. A anexação de grande parte do Kikolo (o foco maior da UNITA) ao Cazenga, onde o partido no poder — o MPLA — domina, facilita a correcção da assimetria eleitoral a favor do MPLA. No relatório, mantemos o Kikolo como parte integral de Cacuaco, porque grande parte da população local, e não só, ignora a mudança administrativa. Nos casos onde o comando municipal da Polícia Nacional no Cazenga tem jurisdição operacional, fazemos a devida referência. O primeiro caso de retorno pós-eleitoral à campanha de execuções sumárias, devidamente identificado, ocorreu precisamente no Cazenga. Por volta das três da madrugada de 30 de Setembro de 2017, os jovens Milton e Lami-Py dirigiam-se a casa, no bairro da Mabor, vindos de uma festa na Casa Dubai, no bairro Hoji-Ya-Henda, quando foram apanhados na perseguição de dois supostos delinquentes, um dos quais conhecido por Jó do Boy, por operacionais do SIC. Segundo testemunhas oculares, os quatro agentes estavam devidamente identificados com coletes do SIC, e faziam a perseguição a pé, enquanto outros dois seguiam num Toyota Land-Cruiser branco de vidros fumados. António Domingos Miguel, pai de Milton, narra o sucedido através dos depoimentos recolhidos junto dos vizinhos e outras testemunhas oculares. A 28 de Setembro, na cidade de Malanje, onde ambos viviam, Milton informara-o de que visitaria a mãe em Luanda naquele fim-de-semana. E assim fez. “A 50 metros de casa, os jovens foram surpreendidos pelo SIC. Os vizinhos que escutaram pela janela disseram-me que o meu filho ainda conversou com os homens do SIC. Explicou-lhes que vivia em Malanje, tinha terminado o curso de electrónica.” Durante a conversa, um dos agentes fez um disparo para o chão e, segundo dois jovens que assistiam, a bala atingiu a perna esquerda de Milton, que logo gritou por socorro. Uma vizinha abriu a porta para atestar o bom carácter dos jovens. “Os rapazes imploraram, disseram que nunca foram bandidos. Os homens do SIC ainda consultaram as suas listas de alvos a abater, mas um deles fez logo um disparo que atingiu Milton no peito. O meu filho morreu na estrada”, conta o pai. Por sua vez, Lameth, ao ver o amigo tombado, encetou a fuga aos gritos de socorro. Tentou entrar em casa da vizinha, que, em vão, alertou
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os perseguidores de que os jovens eram “bons” filhos do bairro. “Cala a boca e fecha a porta, se não queres morrer”, ameaçou um dos agentes, segundo depoimentos recolhidos no local. Lameth fugiu por um beco sem saída, o mesmo por onde seguira Jó do Boy. Escondeu-se na casa de banho (separada da casa) de uma vizinha. “Fuzilaram-no na casa de banho, à queima-roupa, com um tiro do lado direito da cabeça e outro da testa, no canto onde estava de cócoras. Deixaram-no aí”, relata um dos vizinhos. “O meu vizinho Bebucho, que assistiu a tudo, foi quem apanhou o Jó do Boy na fuga. Os agentes algemaram-nos a ambos e ali mesmo perguntou ao Bebucho se este os tinha visto a matarem os seus amigos. Libertaram-no”, conta o pai de Milton. Acto contínuo, os agentes conduziram Jó do Boy à esquadra policial do Hoji-ya-Henda. Os corpos dos malogrados foram recolhidos pelo SIC, por volta das cinco da manhã, sem qualquer perícia legal. O comandante Quintas, dirigiu-se ao local do crime para se inteirar do caso e, diante de vários residentes, disse apenas: “Mais um mau trabalho." “O Jó do Boy foi morto nessa mesma noite pelo SIC, e o seu corpo depositado directamente na morgue. Os familiares foram ter com o meu vizinho, que explicou apenas tê-lo agarrado. Um agente teve pena da família e, a 2 de Outubro, informou-os de que o Jó do Boy fora morto no mesmo dia e que o seu corpo se encontrava na morgue, entre os não identificados”, refere António Domingos Miguel. É assim que, tipicamente, estes “esquadrões da morte” operam. Organizados em grupos armados com beneplácito oficial, procedem a assassinatos selectivos extrajudiciais com finalidades específicas1.
1 Jeffrey A. Sluka (ed.), Death Squad: The Anthropology of State Terror (The Ethnography of Political Violence), Filadélfia, 2000.
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A HISTÓRIA DOS ESQUADRÕES DE MORTE Na história moderna, os “esquadrões da morte” foram iniciados pelo Partido Comunista bolchevique, após o seu triunfo na Revolução Russa de 1917. Através da sua polícia política, a Cheka, os bolcheviques procediam à eliminação, sem qualquer julgamento, dos “inimigos do povo”. Este método foi aprofundado pela NKVD (Comissariado do Povo para os Assuntos Internos) de Estaline, que se destacou pela criação de listas de alvos a abater e pela imposição de quotas de assassinatos a executar2. Do lado oposto, na Alemanha nazi, as Unidades Móveis de Extermínio das SS também se especializaram nos assassinatos extrajudiciais de inimigos do Reich, de judeus e de outras minorias3. A metodologia utilizada é sempre a mesma: o assassinato baseado em listas criadas por grupos com apoio do poder político. Em Viana não é diferente: um vendedor de cartões de recarga telefónica, Simão Catequele, é responsável por elaborar a lista de extermínios do seu bairro, Mulenvos de Cima. Nessa lista, inclui dois vizinhos, que são levados para a esquadra local, onde agentes policiais lhes esfolam as costas com catanas. Aparentemente, trata-se de um ajuste de contas, um caso passional em que Catequele usou o poder arbitrário da sua lista para que as forças do Estado eliminassem os seus rivais (ver Casos n.os 31 e 36). O modelo dos “esquadrões da morte” foi adoptado em vários países, sobretudo em ditaduras. Um dos casos mais próximos de Angola ocorreu no Brasil durante a Ditadura Militar de 1964-1985. O relatório brasileiro posterior aos eventos descreve-os da seguinte forma: “A formação de grupos [esquadrões da morte] se deu em São Paulo no final dos anos 1960. O Esquadrão paulista surgiu justificado numa espécie de ‘ofensiva contra o crime’. Os agentes envolvidos foram apontados como autores de tortura e morte de civis e presos políticos.” Muitas vezes, acrescenta o relatório, estes grupos estavam 2 George Leggett, The Cheka: Lenin’s Political Police, Oxford,1987. 3 Richard Rhodes, Masters of Death: The SS-Einsatzgruppen and the Invention of the Holocaust, Nova Iorque, 2003.
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envolvidos com a criminalidade, agindo a favor “de diversos interesses, com ligações directas com as economias criminais, como, por exemplo, o jogo do bicho, a prostituição e também o tráfico de entorpecentes, além de torturas e assassinatos”4. E esta é uma primeira questão que se coloca em Angola: os “esquadrões da morte” obedecem a ordens da hierarquia e do poder político ou estão ao serviço de organizações ligadas ao crime? Em todo o caso, as duas realidades, a política e a criminosa, acabam por se confundir. No Brasil, o mesmo aconteceu. Roberto Abreu Sodré, por exemplo, à época governador de São Paulo, foi um dos principais defensores dos “esquadrões da morte”, afirmando que estes acabavam com os marginais. O que posteriormente se comprovou foi que estes esquadrões matavam quem quer que se lhes opusesse, marginal ou não, quem se opusesse ao governo e/ou aos interesses das organizações criminosas que patrocinavam os polícias. Para demonstrar que a estratégia do extermínio não combate o crime, a Human Rights Watch reportou, em 2015, o assassinato policial de cerca de 3345 pessoas no Rio de Janeiro5, onde as estatísticas criminais aumentam todos os dias, e a insegurança também6. Presentemente, um dos países mais assolados por execuções extrajudiciais são as Filipinas. Segundo dados publicados7, mais de 3600 pessoas foram assassinadas nas Filipinas desde 1 de Julho de 2016, ou seja, desde que Rodrigo Duterte tomou posse como presidente e iniciou a sua guerra contra as drogas e o crime. Os assassinatos em massa provocaram preocupação internacional e geraram um clima de anarquia e de terror. Para o nosso relatório, devido às semelhanças com o caso angolano, interessa revelar o esquema de funcionamento da campanha de morte promovida pelo governo e as autoridades das Filipinas. Tal como em Angola, o governo recorre às forças de autoridade para executar os seus planos de aniquilação de cidadãos indesejados. 4 Comisão da Verdade do Estado de São Paulo, disponível [online] em http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/relatorio/ tomo-i/parte-i-cap2.html (acedido a 12-10-2017). 5 HRW, “Brazil police abuses feed cycle violence”. https://www.hrw.org/news/2017/01/12/brazil-police-abuses-feed-cycle-violence 6 https://www.hrw.org/news/2016/07/07/brazil-extrajudicial-executions-undercut-rio-security 7 Kate Lamb, Philippines secret death squads: officer claims police teams behind wave of killings, disponível [online] em https://www.theguardian.com/world/2016/oct/04/philippines-secret-death-squads-police-officer-teams-behind-killings (08-03-2017).
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De acordo com informações transmitidas por um alto oficial filipino, a polícia e os serviços secretos do seu país organizaram equipas de operações especiais que “neutralizam” (i. e. matam) os indesejáveis. Este oficial deixa bem claro: o governo criou esquadrões de morte para matar os criminosos. Existem dez equipas de operações especiais da polícia, que foram recentemente formadas e são altamente secretas, cada uma com 16 membros. Essas equipas são coordenadas para executar uma lista de alvos: suspeitos de utilização de drogas, traficantes e criminosos em geral. Nas Filipinas, os assassinatos ocorrem maioritariamente durante a noite, com os oficiais encapuçados e vestidos de preto. As operações decorrem de modo simples: os polícias acertam os seus relógios, e têm um minuto ou dois para extrair os indivíduos-alvo de suas casas, matando-os de imediato — com rapidez e precisão, sem testemunhas. Depois, despejam os corpos na cidade vizinha ou debaixo de uma ponte. Como veremos, em Angola o modus operandi é o mesmo. A diferença mais evidente é a maior impunidade e descontracção com que os agentes policiais angolanos actuam — à luz do dia, como os fuzilamentos no Campo da Escolinha, bairro 6, perante uma audiência de alunos em recreio, por vezes interrompendo jogos de futebol para as matanças. Um dos efeitos, aparentemente contraditórios, das políticas de extermínio de “marginais” é a forma como os verdadeiros mandantes e beneficiários do crime acabam por ser protegidos pelo abate dos mais fracos. Não por acaso, o filho do presidente das Filipinas foi recentemente acusado, no Senado, de ser um dos grandes traficantes de droga das Filipinas. E no entanto, assim que tomou posse, Rodrigo Duterte esclareceu as suas intenções, anunciando que ofereceria medalhas e dinheiro aos cidadãos que matassem traficantes de droga. “Cumpra com o seu dever e se, de caminho, matar mil pessoas porque está a cumprir com o seu dever, eu protegê-lo-ei.”8
Noutra alocução, no mesmo dia, Duterte declarou: “Se conhece algum drogado, mate-o você mesmo, porque obrigar os pais a fazê-lo será muito doloroso.”9 Portanto, o corolário lógico dessa ordem seria a carta-branca para que as autoridades policiais matassem o seu filho sem qualquer averiguação nem julgamento. Entretanto, obviamente o filho de Duterte reagiu à acusação do Senado recorrendo à presunção de inocência e a todos os meios legais disponíveis para se defender. 8 http://time.com/4495896/philippine-president-rodrigo-duterte/ 9 Idem.
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A DINÂMICA DAS EXECUÇÕES SUMÁRIAS EM ANGOLA Em Angola, como se sabe, os maiores bandidos encontram-se entre os dirigentes políticos e sua rede clientelar. A aceitar a lógica que preside às execuções extrajudiciais sancionadas pelo governo, qualquer cidadão pode matar os dirigentes corruptos e cleptomaníacos, não os sujeitando a qualquer julgamento ou processo legal. No entanto, o governo angolano parece considerar que só os pilha-galinhas, os pequenos ladrões e delinquentes, merecem ser abatidos, e que os grandes criminosos, os grandes corruptos verdadeiramente responsáveis pela miséria do país, não podem ser tocados. Acreditam sem dúvida que estas campanhas de extermínio geram entre o povo a ilusória sensação de que algo está a ser feito pela sua segurança. E assim, no barulho das luzes, os tubarões do crime seguem caminho tranquilamente. Várias são as consequências do comportamento delinquente de inúmeros dirigentes e funcionários públicos que roubam o dinheiro destinado ao exercício das funções do Estado, ou que se apoderam dos recursos naturais e patrimoniais do país — terras e tudo o mais que lhes possa garantir lucro ou poder. Isto para não mencionar o esbulho permanente de bens, negócios e actividades profissionais levadas a cabo por meros cidadãos, desde investidores até pequenos comerciantes e zungueiras. Os dirigentes criminosos deixaram Angola com a mais alta taxa de mortalidade infantil do mundo; com cerca de 20 milhões de pessoas no limiar da pobreza (num total de 24 milhões de habitantes). Que se saiba, nenhum dirigente foi até hoje punido pela morte desnecessária dos infantes angolanos, nem pela miséria a que condenam quotidianamente 20 milhões de pessoas. São estes mesmos dirigentes que promovem campanhas de assassinato de marginais. Que conceito têm, então, de “marginal”? Marginal é aquele que rouba o telemóvel ou aquele que conduz à morte, todos os anos, milhares e milhares de crianças por conta dos seus actos delinquentes? Ou ambos? E qual deles o pior? Afinal de contas, o que é mais grave: deixar os hospitais sem meios para salvar vidas ou roubar um telemóvel?
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No decurso das nossas investigações, muitas testemunhas contactadas foram peremptórias ao afirmar que os bandidos tiram a vida de inocentes e, por isso, merecem morrer também. “Bandido bom é bandido morto”, repetiram incontáveis cidadãos residentes nos locais de crime e nas redes sociais. Nunca lhes ocorria o facto de não haver pena de morte em Angola e de termos uma Constituição que consagra a presunção de inocência. Se o alegado bandido cai nas mãos das autoridades, porque não julgá-lo e punilo de acordo com a legislação em vigor? Para se compreender a gravidade das reacções de grande parte dos cidadãos às execuções sumárias, veja-se o caso de Marcolino Hossi “Litana” e seus amigos (ver Caso n.º 47). A 5 de Maio de 2016, Litana, de 22 anos, e outros dois jovens foram fuzilados no “Campo da Morte” (como se tornou conhecido o campo junto à Escola Primária e do 1º Ciclo do Ensino Secundário nº 5113, no bairro 6), em Viana, com crianças a assistir. Conforme relata Pedro Fito, primo de Litana, “muitos [transeuntes e residentes locais] vieram aplaudir a acção do SIC, dizendo ‘bem feito’, porque os jovens atormentavam a população e a polícia estava a fazer um bom trabalho”. Ainda de acordo com o seu relato, “a população pisoteou os corpos dos malogrados. Outros diziam que [os mortos] estavam a ressuscitar e atiravam-lhes areia”. Perante cidadãos partidários de acções do Estado que violam a Constituição e demais legislação angolana, ainda por cima de modo desumano e cruel, para que servem afinal as leis? Por que motivo a sociedade angolana parece em grande parte apoiar, sem questionar, as execuções de presumíveis pilha-galinhas e ladrões de telemóveis, muitas vezes inocentes, mas não dos reis do crime? A estes, nem sequer se lhes pede que se sujeitem às leis vigentes no país — porquê? A política de assassinatos do governo assenta num plano demagógico: ao abater o vizinho supostamente criminoso, num bairro pobre, isso tem impacto no ethos da comunidade, e a população sente que o Estado está a combater o crime. Em contrapartida, quando se mata um inocente, é apenas um mau trabalho (como lamentou o comandante Quintas). Entre as comunidades pobres, o ministro, o general, o governador — que moram em zonas privilegiadas e não têm qualquer contacto directo com a população — acabam por ser apenas figuras do imaginário. Estas comunidades encontram-se também distantes, excluídas, da chamada classe média e dos supostos sectores intelectuais e de intervenção cívica — que deveriam ser os mediadores entre o poder, a elite reinante e a maioria da população.
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Devido ao enorme distanciamento entre o poder e o povo, aquilo que os ministros, os generais, os governadores, suas famílias e associados fazem ou o que lhes acontece não é sentido pelos pobres e excluídos como tendo impacto nas suas vidas diárias. Como resultado, a esmagadora maioria da população sente que o combate ao crime passa por matar o vizinho delinquente, e não por prender o ministro que rouba o dinheiro destinado a apetrechar hospitais e a comprar medicamentos para o povo. Impossibilitado de sair do ciclo de exclusão económica, social e cultural, sem condições dignas de vida, muito menos qualquer espécie de literacia, este mesmo povo não é capaz de associar a falta de empregos — que afecta profundamente a juventude e potencia a delinquência — à má governação. É este o cenário que sustenta a estratégia das execuções extrajudiciais.
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PARA QUE SERVEM AS LEIS E O DIREITO À VIDA? O respeito pela vida humana, em Angola, nunca foi uma premissa dos governantes, que sempre viram na violência arbitrária e na impunidade as principais formas de controlo da ordem e de manutenção do poder. Por consequência, a desvalorização da vida humana enraizou-se na sociedade. Nos comentários das redes sociais sobre execuções sumárias, verifica- -se que muitos cidadãos celebram a morte dos supostos delinquentes. Para esses cidadãos, não é necessário qualquer raciocínio sobre o Estado de direito. Conforme procurámos demonstrar, esta perspectiva é induzida pelo distanciamento dos poderes públicos em relação ao povo. O objectivo destas execuções é precisamente explorar e alimentar os medos mais directos das populações, como forma de afastar ainda mais o cidadão das reivindicações sobre os seus direitos elementares, incluindo o direito à vida. As execuções sumárias comprovam que, em Angola, o suposto Estado de direito apenas serve de capa para legitimar os detentores do poder e como instrumento de impunidade para os mais fortes. Por exemplo, o governo angolano proclama alto e bom som a sua soberania — evocando leis, protocolos internacionais e imunidades que concede a refinados ladrões — para tão-somente impedir que o ex-vice presidente Manuel Vicente seja julgado em Portugal, onde é acusado de crimes de corrupção, branqueamento de capitais e falsificação de documentos. Manuel Vicente é um dos dirigentes que mais saquearam Angola e que mais contribuíram para empobrecer a população. Ao mesmo tempo, neste “Estado de direito” não se aplicam quaisquer leis que defendam os mais fracos. Não defendemos bandidos, assim como não defendemos os actos arbitrários do governo. Defendemos, sim, a justiça e o Estado de direito. Se existem leis, há que fazê-las cumprir.
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O CONTRADITÓRIO A 26 de Abril de 2017, escrevemos ao ministro do Interior, comissário- -chefe Ângelo de Barros Veiga Tavares, informando-o acerca do trabalho de investigação sobre as execuções sumárias em Cacuaco e Viana. A mesma carta também foi endereçada ao então comandante-geral da Polícia Nacional, comissário-geral Ambrósio de Lemos; ao procurador-geral da República, general João Maria de Sousa; ao presidente da Assembleia Nacional, comissário-chefe (res.) Fernando da Piedade Dias dos Santos; e ao então ministro da Justiça e dos Direitos Humanos, Rui Mangueira. A 29 de Maio, o ministro Veiga Tavares concedeu-nos uma audiência, na presença de dois assessores, durante a qual referiu ter encaminhado o relatório para a Procuradoria-Geral da República para averiguações, escusando-se a tomar quaisquer medidas. Afirmámos ao ministro que não tínhamos qualquer razão para suspeitar de que as ordens de execução sumária proviessem dele, mas entendíamos que, enquanto responsável político e administrativo do SIC, a ele competia empreender todas as acções necessárias para punir os responsáveis e os executores, além de garantir a actuação legal dessa força policial. Apesar de toda a informação detalhada que fornecemos ao ministro e às restantes entidades acima mencionadas, não fomos até ao momento notificados da abertura de qualquer processo de investigação, fosse por parte da Procuradoria-Geral da República, fosse por parte do Ministério do Interior. Não obtivemos sequer uma resposta formal à nossa carta e respectivo relatório de casos. Para conhecimento público, abaixo transcrevemos o conteúdo integral dessa carta.
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CARTA AO MINISTRO (26 DE ABRIL DE 2017)
Exmo. Sr. Ministro do Interior, Sr. Ângelo de Barros Veiga Tavares
[C/C: Comandante-Geral da Polícia Nacional, Comissário-Geral Ambrósio de Lemos Procurador-Geral da República, General João Maria de Sousa Presidente da Assembleia Nacional, Comissário-Chefe (Res.) Fernando da Piedade Dias dos Santos Ministro da Justiça e dos Direitos Humanos, Sr. Rui Mangueira]
Luanda, 26 de Abril de 2017
Assunto: Execuções extra-judiciais em Cacuaco e Viana
Exmo. Sr. Ministro do Interior,
Na qualidade de jornalista e defensor dos direitos humanos, tenho estado a investigar, há vários meses, uma série de execuções sumárias levadas a cabo nos municípios de Cacuaco e Viana. Estas execuções sumárias têm sido regulares e, regra geral, são imputadas a colaboradores ou agentes do Serviço de Investigação Criminal. Até ao momento, consegui obter a devida identificação de perto de cem indivíduos indefesos que foram executados no período de um ano. Além destes casos devidamente identificados, obtive ainda informações sobre mais dezenas de casos de execuções sumárias. Portanto, a minha investigação contabilizou perto de 200 execuções sumárias. Quer isto dizer que, em apenas um ano, pelo menos 200 indivíduos foram assassinados, sem direito a julgamento nem a qualquer tipo de defesa, ao que tudo indica por forças da lei. A maioria dos fuzilados — mas nem todos — tem antecedentes de detenção ou cumpriu penas de prisão, o que dá a entender que estas execuções sumárias são uma forma brutal e criminosa que as autoridades encontraram para “eliminar” a delinquência. Algumas das vítimas, porém, são inocentes, e tive a oportunidade de entrevistar dois sobreviventes: o marceneiro Emílio Manuel Mbaxi, de 22 anos, foi atingido com três tiros (abdómen, membros superior e inferior), a 21 de Janeiro de 2017; o taxista Pedro Avelino Eduardo “Abega”, de 25 anos, foi atingido com um tiro no olho e outro nas costas, que lhe atravessou o abdómen, a 4 de Fevereiro passado. Os seus testemunhos são bem elucidativos acerca dos crimes em série que estão a ser cometidos alegadamente por agentes ou colaboradores do SIC. Vale a pena, Senhor Ministro, ouvir as suas experiências.
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Nos termos do artigo 4.º, n.º 3 b) do seu Estatuto, o SIC é um serviço executivo central do Ministério do Interior, a par da Polícia Nacional, mas independente desta. Assim, o responsável imediato pelo SIC é o Ministro do Interior, a quem compete dirigir e superintender os serviços executivos centrais (artigo 7.º c) do referido Estatuto). Tendo em conta que a autoria das referidas execuções sumárias tem sido sistematicamente atribuída a agentes ou colaboradores do SIC, pedimos que o Senhor Ministro — enquanto hierarquia máxima dessa instituição policial —intervenha urgentemente, para travar e prevenir futuros crimes alegadamente cometidos por esses agentes. Assim, pela presente, solicito os V/ bons ofícios no sentido de me conceder uma audiência para apresentar — com garantias de segurança para as vítimas sobreviventes, os familiares, as testemunhas e amigos denunciantes — os resultados preliminares da minha investigação. Outrossim, poderei submeter as minhas questões por escrito. No final de Maio ou princípio de Junho, deverei publicar um relatório completo com os resultados da minha investigação, de modo a tornar públicos estes graves crimes. Nesse relatório, gostaria de poder afirmar que as autoridades competentes actuaram entretanto, por todos os meios e com toda a sua eficiência, tendo conseguido estancar a onda de assassinatos e tendo implementado medidas correctivas e formativas para que semelhantes horrores não se repitam no futuro. Na expectativa de merecer a V/ atenção, subscrevo-me com saudação patriótica.
Sinceramente,
Rafael Marques de Morais
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METODOLOGIA Dois factores essenciais determinaram a escolha dos municípios de Viana e de Cacuaco, em Luanda, como locais de investigação. Em primeiro lugar, foi aqui que se registou a ocorrência sistemática e geograficamente concentrada de execuções sumárias. Por exemplo, ao longo de vários meses, os agentes do SIC fuzilaram muitos jovens no bairro 6, município de Viana, todos eles no campo junto à Escola Primária e do 1º Ciclo do Ensino Secundário nº 5113 em plena luz do dia. Tornou-se comum que os alunos assistissem aos fuzilamentos enquanto decorriam os intervalos das aulas e, muitas vezes, os matadores interrompiam o jogo de futebol para realizarem o seu trabalho. Apesar de não ter sido possível identificar a maioria das vítimas do “Campo da Morte”, por terem sido para lá levadas de outras zonas de Viana, conseguimos contactar dezenas de testemunhas, a partir das quais pudemos compreender o modus operandi dos assassinos ao serviço do Estado. Em Cacuaco, António Bernardo, cujo filho foi fuzilado a 27 de Janeiro de 2017 frente a sua casa, descreveu o modo como eram perpetradas as execuções no bairro do Cauelele: “São mesmo os do SIC. Eles matam e depois os polícias da esquadra vêm recolher os corpos. Eles estão a matar por bairros. Iniciaram no Compão e agora passaram para o nosso bairro.” Em segundo lugar, contámos com a colaboração de 15 assistentes de campo, todos residentes nas áreas onde ocorreu o maior número de assassinatos. O seu contributo foi essencial para identificarmos os casos e para estabelecermos o primeiro contacto com os familiares das vítimas, que depois entrevistámos. Em alguns casos, não foi possível realizar entrevistas presenciais. Devido à actividade intensa dos informadores locais do SIC e às constantes rondas dos próprios matadores e agentes policiais, a tensão nos bairros afectados era excessiva. Nesses casos, optámos por entrevistar telefonicamente os familiares, junto dos quais se encontrava um dos nossos assistentes. A presença do assistente passava despercebida nestes bairros, mas dava garantias aos entrevistados sobre o nosso compromisso com os direitos humanos, e contribuía para esbater o medo que as pessoas sentiam perante o clima de terror.
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Efectuámos a recolha directa de depoimentos orais de testemunhas, familiares, vizinhos e sobreviventes. Houve também casos em que, de forma anónima, agentes envolvidos nas matanças ou chamados a “limpar” o local do crime contribuíram para reconstituir determinadas operações. Sempre que possível, para cada caso, cruzámos vários depoimentos de fontes diferentes, de modo a verificar e contraverificar os relatos. Muitos familiares, testemunhas e vizinhos inicialmente entrevistados por telefone, sentindo-se mais confortáveis, acabaram por optar espontaneamente por um contacto pessoal com o investigador principal, em locais neutros onde pudessem falar à vontade. Os depoimentos prestados por familiares e amigos não serviram, em momento algum, para inocentar as vítimas dos eventuais delitos que cometeram em vida. Trata-se do testemunho que cada um tem direito a prestar, cabendo-nos apenas fazer o seu enquadramento. Algumas famílias assumiram abertamente que os seus familiares assassinados haviam sido delinquentes, e houve mesmo quem tivesse exprimido alívio pela sua morte. Para além dos depoimentos, tivemos também a oportunidade de recolher vários documentos: certificados de autópsia, mandados de soltura, fotografias e outros elementos que nos permitiram um melhor apuramento dos factos. De fora, ficaram mais de uma centena de vítimas. Apesar de as suas mortes estarem confirmadas, não obtivemos informação suficiente para as incluir neste relatório. Na zona dos Mulenvos de Baixo, em Viana, por exemplo, seguimos relatos de fuzilamentos regulares, em números que ultrapassavam cinco a oito vítimas por cada operação. Depois das execuções, os corpos eram atirados para valas ou lixeiras. Todavia, talvez porque — conforme sugeriram os moradores locais — a maioria dos fuzilados fosse desconhecida naquela zona, não conseguimos aprofundar as investigações. Os casos que se seguem foram organizados por ordem cronológica, começando pelo mais recente.
CASOS
CASOS
O “CAMPO DA MORTE”
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CASO N.º 1: “ACABADO” NA ESQUADRA VÍTIMAS: Zito João Gonçalves “Zé Pik”, 21 anos, natural de Luanda; Juliano Chitumba “Leão”, 22 anos, natural do Huambo; Basílio Afonso Ngueve “Obama”, 18 anos, natural de Luanda DATA: 6 de Novembro de 2017 LOCAL: bairro do Compão, Kikolo, município de Cacuaco OCORRÊNCIA: Zé Pik, bailarino do grupo musical Bate à Toa, actuou num evento musical realizado junto à administração do Kikolo, até às 23 horas. De seguida, Zé Pik e dois amigos — Leão e Obama — decidiram prolongar a noite de diversão, juntando-se a uma festa no bairro da Bandeira. À meia-noite, a segunda festa foi interrompida, e os três jovens seguiram para uma terceira no salão de festas da Electro Jennifer. De madrugada fora, quando abandonaram a festa, já na via pública, três homens ordenaram aos rapazes que parassem. “A rua tinha muita iluminação e eu estava a poucos metros dos jovens. Os três jovens saíram de uma rua a correr. Três indivíduos mandaram-nos pôr as mãos ao ar”, conta uma das testemunhas. Estavam defronte da Igreja Católica local. “O Zezito [Zé Pik] parou e atingiram-no no peito. O Basílio apanhou um tiro na mão e gritou ‘não me matem só’. O Leão levou um tiro no pé e outro na barriga. Parecia morto, afinal fingiu-se, ainda tinha muita vida”, descreve. Segundo a mesma testemunha, “Basílio pulou para o outro lado da estrada e foi morto com quatro tiros na cabeça e mais um noutra mão”. Uma prima de Basílio corrobora a informação. Outra testemunha, que também prefere o anonimato, indica que os assassinos se retiraram de imediato e que Leão gritou por socorro. “Ela ainda estava bem vivo, fingiu-se de morto durante a acção.” Uma das testemunhas conta que durante o crime estava presente o Big, conhecido no bairro como colaborador do SIC e indivíduo responsável
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por indicar os alvos a abater naquela zona. “Quando os jovens são mortos nessa área, o Big está sempre presente. É ele quem mostra. O irmão dele é um grande gatuno, mas ele protege-o e manda matar muitos inocentes”, denuncia uma das testemunhas. Depoimentos de familiares e amigos indicam que Leão foi levado por um patrulheiro da Polícia Nacional. Um tio de Leão, que se recusa a falar publicamente sobre o assunto, acompanhou o sobrinho, tendo seguido também na viatura policial. Segundo vários depoimentos recolhidos, a polícia informou o tio de que o ferido teria de ser levado para a Esquadra do IFA [Comando da III Divisão, município do Cazenga], e de que só depois de aí assinado um termo de responsabilidade poderiam transferi-lo para o hospital. Consta que o ferido ainda falou com o seu tio na viagem até à esquadra. Depois, enquanto registava a ocorrência dentro da esquadra, o tio ouviu tiros, conforme declarações corroborados por familiares e amigos. Ao sair, viu o corpo do seu sobrinho no chão, já coberto. Fora assassinado dentro da esquadra com dois tiros na cabeça. “Os mesmos homens que assassinaram o Zé Pik e o Obama e deixaram o Juliano vivo foram terminar o trabalho na esquadra”, explica um dos familiares das vítimas. “Os homens que estão a fazer esse trabalho dos assassinatos são controlados pela esquadra do IFA”, denuncia outro dos familiares. Ainda outro familiar refere que um dos agentes do SIC disse ao tio que o seu sobrinho estava a ser muito procurado, estava na lista “e tinham de acabá-lo ali mesmo”. Na eventual origem destes assassinatos, os familiares revelam que, na tarde de 3 de Novembro, Leão e Obama haviam puxado a carteira de uma senhora que passava de motorizada. Consta que essa senhora regressou ao local do assalto com Big, tendo conseguido identificar os assaltantes e a residência dos respectivos familiares. “O Big disse: ‘esses miúdos vão mamar’”, conta a prima de um dos malogrados. As famílias confirmam que Zé Pik não participou no assalto, e que os meliantes obtiveram 12 mil kwanzas do roubo. Em Janeiro, no pico das matanças naquela área, a família de Obama mudou-se, procurando mantê-lo em segurança. Passados três meses, contra a vontade da família, Obama regressou, pois acreditava que nada tinha feito que justificasse a sua execução.
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“O Basílio bebia muito. Quando fazia os seus assaltos era só para beber. Uma semana antes de ser morto já estava a ser procurado. No dia da sua morte, dois agentes da DNIC [SIC] ainda se sentaram com eles na pracinha e pagaram-lhes cervejas e combinaram encontrar-se na festa”, revela a prima do malogrado. “Afinal estavam a combinar a morte deles”, afirma. CASO N.º 2: UM MAU TRABALHO VÍTIMAS: Domingos António Gaspar “Milton”, 25 anos; Lameth Pepito Laurindo “Lami-Py”, 20 anos, ambos naturais de Luanda DATA: 30 de Setembro de 2017 LOCAL: bairro da Mabor, município do Cazenga OCORRÊNCIA: Por volta das três da madrugada, os jovens Milton e Lami-Py dirigiam-se a casa, no bairro da Mabor, vindos de uma festa na Casa Dubai, no bairro Hoji-Ya-Henda, quando foram apanhados na perseguição de dois supostos delinquentes, um dos quais conhecido por Jó do Boy, por operacionais do SIC. Segundo testemunhas oculares, os quatro agentes estavam devidamente identificados com coletes do SIC, e faziam a perseguição a pé, enquanto outros dois seguiam num Toyota Land-Cruiser branco de vidros fumados. António Domingos Miguel, pai de Milton, narra o sucedido através dos depoimentos recolhidos junto dos vizinhos e outras testemunhas oculares. A 28 de Setembro, na cidade de Malanje, onde ambos viviam, Milton informara-o de que visitaria a mãe em Luanda naquele fim-de-semana. E assim fez. “A 50 metros de casa, os jovens foram surpreendidos pelo SIC. Os vizinhos que escutaram pela janela disseram-me que o meu filho ainda conversou com os homens do SIC. Explicou-lhes que vivia em Malanje, tinha terminado o curso de electrónica.” Durante a conversa, um dos agentes fez um disparo para o chão e, segundo dois jovens que assistiam, a bala atingiu a perna esquerda de Milton, que logo
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gritou por socorro. Uma vizinha abriu a porta para atestar o bom carácter dos jovens. “Os rapazes imploraram, disseram que nunca foram bandidos. Os homens do SIC ainda consultaram as suas listas de alvos a abater, mas um deles fez logo um disparo que atingiu Milton no peito. O meu filho morreu na estrada”, conta o pai. Por sua vez, Lameth, ao ver o amigo tombado, encetou a fuga aos gritos de socorro. Tentou entrar em casa da vizinha, que, em vão, alertou os perseguidores de que os jovens eram “bons” filhos do bairro. “Cala a boca e fecha a porta, se não queres morrer”, ameaçou um dos agentes, segundo depoimentos recolhidos no local. Lameth fugiu por um beco sem saída, o mesmo por onde seguira Jó do Boy. Escondeu-se na casa de banho (separada da casa) de uma vizinha. “Fuzilaram-no na casa de banho, à queima-roupa, com um tiro do lado direito da cabeça e outro da testa, no canto onde estava de cócoras. Deixaram-no aí”, relata um dos vizinhos. “O meu vizinho Bebucho, que assistiu a tudo, foi quem apanhou o Jó do Boy na fuga. Os agentes algemaram-nos a ambos e ali mesmo perguntou ao Bebucho se este os tinha visto a matarem os seus amigos. Libertaram-no”, conta o pai de Milton. Acto contínuo, os agentes conduziram Jó do Boy à 13ª Esquadra da Polícia Nacional, do Hoji-ya-Henda. Os corpos dos malogrados foram recolhidos pelo SIC, por volta das cinco da manhã, sem qualquer perícia legal. O comandante Quintas, dirigiu-se ao local do crime para se inteirar do caso e, diante de vários residentes, disse apenas: “Mais um mau trabalho.” O seu comentário gerou algazarra entre os moradores e vizinhos dos jovens assassinados, tendo o pai de Lameth, o oficial das FAA, Pepito Laurindo, acalmado os ânimos. A Esquadra do IFA [Comando da III Divisão da Polícia Nacional no município do Cazenga], é onde opera o famoso executor Pula-Pula, descrito em vários casos aqui reportados. “O Jó do Boy foi morto nessa mesma noite pelo SIC, e o seu corpo depositado directamente na morgue. Os familiares foram ter com o meu vizinho, que explicou apenas tê-lo agarrado. Um agente teve pena da família e, a 2 de Outubro, informou-os de que o Jó do Boy fora morto no mesmo dia e que o seu corpo se encontrava na morgue, entre os não identificados”, refere o pai.
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Para António Domingos Miguel, “o comando da Polícia Nacional no Cazenga sabe quem fez o trabalho. Estão a esconder os assassinos”. “O Toledo, chefe de buscas e capturas, teve a ousadia de me perguntar — na minha cara — se o meu filho e o amigo não eram do grupo do Jó do Boy”, denuncia. “Precisamos de justiça. É uma dor que não vai acabar. Eu estava a formar este filho”, lamenta. A propósito de Toledo, vale a pena evocar a memória do assassinato de três jovens a 3 de Junho de 2014. MEMÓRIA SOBRE O TOLEDO Eis os trechos da história publicada no Maka Angola a 6 de Junho de 2014, os quais revelam que as execuções sumárias obedecem a um padrão e que as autoridades protegem e promovem abertamente os assassinos. (https://www.makaangola.org/2014/06/foi-hoje-o-funeral-dos-tres-jovens-assassinados-no-golf-ii/) “Os três jovens assassinados a 3 de Junho, na Zona do Golf II, por indivíduos identificados como sendo membros do Grupo Operativo da 32ª Esquadra da Polícia Nacional, foram a enterrar hoje no Cemitério da Camama, em Luanda. Joice Neto assistiu ao assassinato dos três jovens, incluindo do seu irmão mais velho, Damião Zua Neto “Dani”, de 27 anos, a poucos passos da sua residência. O Maka Angola esteve nos funerais e deslocou-se ao local do crime, onde Joice reconstituiu os momentos do ataque. O ASSASSINATO Pouco depois do meio-dia, do seu quarto, Dani pediu à irmã para ir atender à porta, supondo ser um cliente interessado em comprar gelado de múcua, que a família produz e vende em casa. Joice Neto saiu à rua, ouviu um estrondo e viu uma viatura Hyundai Accent imobilizada, com dois ocupantes, na esquina da rua, enquanto uma viatura Toyota Hiace bloqueava a estrada e alguns dos seus ocupantes saíam armados. Ao reconhecer um amigo ao volante, o seu irmão saiu de casa e dirigiu-se ao carro, “para saber o que se passava”, contou Joice. Ainda de acordo com o seu depoimento, “os agentes deram dois tiros para o ar, para afugentar as pessoas, e depois dispararam contra o meu irmão. Um tiro atingiu-o na cabeça e outro na virilha”.
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“Comecei a gritar ai, meu irmão! Ai, meu irmão! O meu irmão levantou a cabeça, olhou-me apenas e morreu. Eu estava a gritar demais”, acrescenta Joice.Seguiu-se uma saraivada de tiros contra o carro. O amigo de Dani que se encontrava ao volante da viatura, Gosmo Pascoal Muhongo Quicassa “Smith”, de 25 anos, morreu cravejado com 14 tiros, concentrados na parte esquerda do corpo, segundo o resultado da autópsia, revelado ao Maka Angola pelo padrasto Manuel Contreiras, de 26 anos, foi atingido no pé. Desceu da viatura e, segundo as testemunhas, implorou aos executores que poupassem a sua vida, porque tinha pedido apenas uma boleia até à estrada principal, onde deveria apanhar um táxi até Viana e dali o transporte para a sua terra natal, na província de Malanje. “O assassino olhou-o apenas. O motorista do Hiace desceu da viatura e com a AK atingiu o meu irmão no abdómen e deu-lhe outro tiro na cabeça”, lamentou Samuel Contreiras, irmão do malogrado. As primeiras testemunhas informaram o Maka Angola de que Manuel se encontrava no assento de trás. A informação errada deveu-se à disposição em que os corpos se encontravam quando as testemunhas se aproximaram do local do crime. Dani morreu junto à roda da frente, do lado direito da viatura, e Manuel, que dela descera, foi abatido junto às portas. (…) QUEM MATOU? O irmão mais velho de Manuel, Tiago Contreiras, em casa de quem aquele pernoitara e com quem tinha tomado o pequeno-almoço bem cedo, é primeiro subchefe do Posto Policial do Fubu, no município de Belas. Depois dos assassinatos, Tiago Contreiras foi chamado pelo oficial Beto Kinjila, chefe da Linha Operativa do Kilamba Kiaxi, que dispõe de um gabinete no referido posto. “O chefe Beto informou-me de que o grupo operativo, comandado pelo Toledo, tinha abatido três marginais no Golf e ordenou-me que fosse com uma patrulha fazer a remoção dos corpos. Eu disse que aquela zona era da responsabilidade da Unidade do Kilamba Kiaxi e saí para cuidar de outra missão”, disse ao Maka Angola o subchefe Tiago Contreiras. Vários minutos depois, alguns familiares, não tendo conseguido telefonar-lhe, apareceram no posto, para o informar do sucedido.
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Só então me apercebi de que os meus colegas mataram o meu irmão. Fui perguntar ao senhor Beto Kinjila sobre quem matou aqueles três marginais. Nessa altura, ele [Beto Kinjila] já sabia que os seus homens tinham matado o meu irmão. Então, ele disse-me que eu estava a acusá-lo e que faria uma informação a pedir a minha demissão e expulsão da polícia”, conta Tiago Contreiras. “Eu conheço bem o Toledo, sabia que ele ia ao volante do Hiace. E todos os outros elementos, depois disso, vieram ao Posto. São colegas. Só não sabia que tinham assassinado o meu irmão”, disse o policial enlutado no dia a seguir aos assassinatos. (…) CASO N.º 3: CENOURA VÍTIMA: “Cenoura” DATA: 10 de Setembro de 2017 LOCAL: Campo da Morte, bairro 6, município de Viana OCORRÊNCIA: “Cerca de seis ou sete elementos, trajados com coletes do SIC ao avesso, detiveram o Cenoura em casa, entre as três e as quatro da madrugada. Eu vi quando o levaram para um Toyota Land-Cruiser de vidros fumados”, explica um vizinho sob anonimato. Cenoura vivia a poucos metros do Campo da Morte, em casa da sua mãe. Por volta das seis da manhã, os mesmos agentes regressaram com Cenoura e encaminharam-no para o Campo da Morte, onde o fuzilaram com um tiro na cabeça e outro no peito. O mesmo vizinho explica que Cenoura era apenas estudante. “Tinha más companhias, mas não víamos nada no comportamento dele que justificasse ser fuzilado.” Entre a vizinhança, consta que a mãe de Cenoura, viúva, abandonou a casa por desgosto pela morte do único filho, com quem vivia.
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CASO N.º 4: “SÃO GATUNOS E MERECERAM MORRER” VÍTIMAS: Mendik Pedro Samuel “Kabila”, 22 anos, natural do Uíge; Inácio Fernando Romão, 21 anos, natural de Luanda DATA: 20 de Abril de 2017 LOCAL: bairro Malueca, município de Cacuaco OCORRÊNCIA: Mendik Pedro Samuel “Kabila” residia em Caxito, província do Bengo, e deslocava-se regularmente a Luanda para visitar os pais e irmãos no bairro Malueca, município de Cacuaco, e, em particular, a mulher e a filha, residentes no bairro do Golf. Em 20 de Abril passado, visitou primeiro os pais, dirigindo-se depois ao Golf, em companhia do amigo Inácio Fernando Romão, ao encontro da esposa e da filha, junto de quem jantou. Os pais e irmãos falaram com Kabila pela última vez depois do jantar, quando este telefonou ao irmão (Guilherme Pedro Samuel “Gui”) para saber da veracidade de uma mensagem que entretanto recebera de fonte não especificada. Segundo essa falsa mensagem, o irmão Matondo, de 18 anos, fora capturado. A família explica que, tal como tem acontecido com outros jovens por todo o bairro, o adolescente “está a ser procurado pela DNIC [SIC], para ser abatido”. Em 2014, Matondo estivera detido duas vezes, num total de seis dias, por suspeita de furto. Por volta das 4h00, uma vendedeira de pão viu dois corpos a serem despejados de uma viatura minivan JinBei (pintada de azul e branco) por dois indivíduos. Os corpos foram atirados na lama, num beco ao lado de uma padaria, no desvio de Malueca. A vendedeira alertou a vizinhança. A família de Kabila acorreu ao local e deparou-se com o seu cadáver e o de Inácio, identificando sinais de que tinham estado amarrados e haviam sido torturados. Gui notou que o seu irmão Kabila tinha sido injectado com um líquido no braço esquerdo, que provocara bolhas na pele. De acordo com Eva Paulina, mãe de Kabila, um dos três investigadores do SIC presentes no local informou-a apenas de que os defuntos “são gatunos e mereceram morrer”.
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Por sua vez, o pai de Inácio, Fernando Romão, conta que os três investigadores lhe pediram que os acompanhasse até ao quintal da padaria, para anotarem os dados de identificação do seu filho e da família. “Um deles tirou a mochila das costas, tirou de lá um caderno de apontamentos e tirou também fotografias. Mostrou-mas e disse-me: ‘Esses [jovens] são perigosos, um deles estava fugido, mas já está a ser procurado e faltam esses [para serem eliminados].’” “Vi também as fotografias do Inácio e do Kabila [enquanto vivos] e perguntei porquê”, prossegue Fernando Romão. “Eles responderam-me que eram da investigação criminal e perguntaram-me se eu queria julgá-los ou se eram eles quem tinha o direito e o poder de julgar.” “Então, perguntei-lhes se tinham sido eles a matar o meu filho e o amigo Kabila. Responderam-me que eu estava a acusar a autoridade e estava estressado. Disseram-me que a polícia não mata. Prende e entrega ao Ministério Público”, acrescenta. Fernando Romão viu dez fotos e afirma que “esses que faltam [para serem eliminados]” são oito. “Então fiquei a saber que foram eles [elementos do SIC] que mataram o meu filho e o seu amigo. Entreguei-lhe os dados que me pediram, meteram o caderno e as fotografias na mochila e saímos do quintal”, conclui. Conceição Pedro Samuel, irmã de Kabila, sublinha que três agentes do SIC, afectos à Esquadra do Alfa-5, foram depois a casa da namorada do irmão mais novo de Kabila (Luís Pedro Samuel “Matondo”), dizendo-lhe: “Já matámos o teu cunhado, só falta o teu namorado.” Dois dias mais tarde, quando foram à morgue para levantar os cadáveres e realizar o funeral, os familiares passaram por novo episódio envolvendo o SIC. Eva Paulina recorda a troca de palavras que tiveram com o médico legista porque o SIC havia registado no seu relatório de remoção de cadáveres que os jovens foram mortos a tiro. O médico exigia dos familiares explicações sobre aquela inverdade oficial. Por sua vez, “os homens do SIC, lá na morgue, perguntaram de que é que o meu filho morreu? Respondi-lhes que quem sabia já estava morto [o filho] e que eu não tinha presenciado o homicídio. Então, insistiram que eu, como pai, sabia por que o meu filho morreu”, relata Fernando Romão. Os investigadores informaram ainda o pai de Inácio sobre o conteúdo do relatório que traziam consigo, no qual o filho e o amigo eram descritos como delinquentes.
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Por ter defendido que o filho era bem-educado e “limpo” enquanto cidadão, os agentes acusaram Fernando Romão de irrealismo. O pai explica que Inácio esteve de facto detido durante um ano (foi libertado em Junho de 2016), por suspeita de furto, mas que o suposto crime nunca foi devidamente explicado à família nem esclarecido perante ninguém. “Um dia, a polícia e a DNIC [SIC] apareceram-me aqui em casa com o meu filho algemado e muito torturado, todo ensanguentado. Nem sequer conseguia abrir os olhos, de tão inflamados que estavam. Perguntei-lhes qual era o crime e disseram-me que ele foi apanhado a fazer um assalto mas não podiam revelar mais nada, porque era segredo de justiça. Fiquei sem saber o que tinha sido assaltado”, recorda. E acrescenta que o seu filho foi denunciado por um desconhecido que havia sido bastante torturado e obrigado a indicar alguém. Conceição Pedro Samuel, irmã de Kabila, conta ter sido detida nesse mesmo dia pelos mesmos agentes do SIC, às 4h00 da madrugada, sem contudo se lembrar da data: “Eu estava em casa havia dois dias, depois de ter passado três semanas no Hospital do Cajueiro, onde o meu filho de sete meses esteve internado. O Inácio, depois de levar tanta porrada que lhe abriram a cabeça, deu o nome do meu irmão Kabila. Como não o encontraram, deram-me bofetadas e levaram-me a mim e ao meu bebé.” “Levaram-me a casa da minha irmã, onde os polícias roubaram o plasma [televisor], a botija de gás e o computador do cunhado dela. Ficaram a girar comigo o dia todo, passei também pela Divisão do Rangel e depois abandonaram-me distante de casa”, acrescenta Conceição Pedro Samuel. Já no Comando de Divisão do distrito urbano do Rangel, onde Inácio havia sido torturado, os agentes solicitaram ao pai que comprasse medicamentos para salvar a vida do filho, que entretanto perdera os movimentos nas mãos devido à tortura. “Arranjei o enfermeiro que o observou e, durante 15 dias, fui à esquadra todos os dias para lhe fazer massagens até ele recuperar os movimentos. Depois de ele melhorar, foi julgado e condenado.” “Perguntei ao juiz por que o condenou a um ano de prisão? Não havia provas, testemunhas, nem mesmo a polícia que o prendeu. No MPLA não há nada disso, provas. Isso era no tempo colonial”, lamenta. Entretanto, entre 2015 e 2016, Kabila passou mais de um ano em prisão preventiva, na comarca de Viana. Na altura, segundo a família, foi detido por um colaborador do SIC (ligado às Esquadras do Bom Pastor, Alfa-5 e Asa Branca). “Esse Francisco [o referido colaborador] queria a motorizada do
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meu irmão, que estava devidamente legalizada, e passou a usá-la como sua”, denuncia a irmã. “O meu irmão foi condenado pelo Tribunal Municipal de Cacuaco sem que tivesse aparecido um único queixoso, nem mesmo a polícia a informar sobre o crime que ele tinha cometido. Obrigaram-nos a pagar 150 mil kwanzas de caução e mais 30 mil kwanzas ao homem que o foi tirar da cela”, prossegue. Quatro dias antes, de acordo com depoimentos da família, um vizinho, devidamente identificado como colaborador do SIC e conhecido apenas por Big, entregou um número de telefone a Gui, irmão de Kabila, para que este último lhe telefonasse mas a partir de um telefone estranho. “O Kabila ligou do número dele e quatro dias depois estava morto. O Big deixou de circular na vizinhança”, afirma Eva Paulina. CASO N.º 5: CERCADOS VÍTIMAS: Moisés Ângelo Fernando “Picatchu”, 22 anos, natural de Luanda; Eduardo Chilombo “Edu”, 21 anos, natural do Kwanza-Sul; Chilala (não foi possível obter mais informações sobre o jovem) DATA: 15 de Abril de 2017 LOCAL: bairro Ngola Kiluange, município de Cacuaco OCORRÊNCIA: Na noite de 14 de Abril, três amigos tomavam bebidas alcoólicas na rua quando se envolveram numa altercação entre si. “Uns indivíduos do SIC estavam a passar e perguntaram [a algumas testemunhas oculares da briga] se os jovens eram delinquentes”, conta uma das testemunhas, sob anonimato. Perto das seis da manhã, de regresso a casa, os rapazes foram cercados na zona do Colégio Jeremias, junto à residência de Moisés. De acordo com os depoimentos recolhidos no local, Chilala foi o primeiro a ser morto com quatro tiros na região abdominal. Picatchu fugiu para a casa de uma vizinha, em cuja varanda foi crivado de balas: sete tiros no peito e um no pé. Morreu ali mesmo.
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Picatchu tinha cadastro criminal. Em 2013, fora detido por ter roubado 25 pares de chinelas de plástico e 50 mil kwanzas, permanecendo no cárcere por três anos. Pouco depois da sua libertação, em 2016, em mês não preciso, o jovem foi de novo parar à cadeia, desta vez por seis meses, por suspeita de furto de telemóvel. A irmã mais velha de Picatchu, Júlia, afirma que, durante a detenção pelo furto do telemóvel, ele e os seus amigos haviam sido apanhados com uma arma na mochila. “Nós [família] pagámos cem mil kwanzas aos investigadores do SIC, no Comando Municipal de Cacuaco, por insistência da minha mãe, que queria o filho em liberdade. E ele foi libertado”, revela Júlia. À data da sua morte, Picatchu encontrava-se em liberdade havia apenas um mês. “O que esse tipo de pessoas espera? Dói-nos, como família. Como mais velhos, vimos o bem e o mal, e aconselhámo-lo a seguir o caminho do bem, mas ele não ouvia, queria cometer. Era drogado e faltava ao respeito à família”, lamenta a irmã. “Não posso defendê-lo. Não tenho como. Senti uma dor de leve, mas não esperava outra coisa. Os vizinhos informaram-nos de que foi a DNIC [SIC] quem os matou. Eu não vi, porque estava a dormir. Soube também que, quando estavam a lutar à noite, os homens da DNIC passaram e perguntaram sobre o que se estava a passar”, conclui. CASO N.º 6: O GATUNO É O SETENTA VÍTIMA: Eduardo Mbuta Mbindiangani “Tonton”, 36 anos, natural do Uíge DATA: 12 de Abril de 2017 LOCAL: bairro da Mabor, município do Cazenga OCORRÊNCIA: Após ter assistido o jogo de futebol entre o Barcelona e a Juventus, para a Liga dos Campeões, Tonton e amigos puseram-se à conversa na rua, para comentar o resultado da partida e falar de assuntos da igreja a que todos pertenciam. “O meu sobrinho [Tonton] estava a conversar quando esse gatuno afamado do bairro, conhecido como Setenta, apareceu e ficou a ouvi-los.
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Três polícias fardados, que tinham deixado o carro escondido junto à igreja muçulmana, vieram”, descreve o tio Lucau. A seguir, “o senhor da DNIC [SIC] aproximou-se do grupo. Não deu boa noite e disparou logo contra o meu sobrinho, atingindo-o na perna com uma bala incendiária. O meu sobrinho gritou logo e perguntou por que razão lhe estavam a dar um tiro, se o gatuno estava ali ao lado”, continua Lucau. “Então, os polícias deram conta do engano. O que disparou deixou o meu sobrinho e foi contra o gatuno, que já estava a fugir. Deu-lhe um tiro nas costas e outro no fígado. Ele caiu no outro quintal”, afirma o tio, porta-voz da família. Os agentes policiais deram Setenta como morto e, quando se retiravam do local, foram confrontados por Tando, irmão de Lucau, que assistiu ao episódio: “O meu irmão disse-lhes ‘vocês deram tiro a um inocente. Deixaram o gatuno e agora vão embora sem socorrerem o inocente?’” Entretanto, Setenta foi socorrido pela mãe e levado para o Hospital Américo Boavida. Sobreviveu. Tonton faleceu no mesmo hospital, 24 horas após ter sido alvejado. De acordo com família e vizinhos, Eduardo Buta Mbindiangani “Tonton” dedicava-se ao comércio na fronteira do Luvo (Mbanza-Kongo), Kinshasa (RDC) e Congo. “O meu sobrinho estava para viajar na mesma semana para Londres. Já o tinha visto, tinha tudo organizado para ir viver lá”, conta o tio. A família nota que Tonton “nunca esteve detido, nunca teve problemas. Era muito conhecido na Mabor. Mataram-no por engano”. O tio Lucau afirma que os executores provinham da Esquadra da D. Amália, “que está sob comando da Esquadra do Kimakieto”. “Apresentámos queixa à DNIC [SIC] e não obtivemos nenhum resultado. Na Esquadra da D. Amália disseram-nos apenas ‘eh pá, isso aconteceu. Pronto’. Não deram importância nenhuma”, explica. Persistente, a família dirigiu-se à Direcção Provincial de Investigação Criminal (DPIC), onde apresentou nova queixa. “Tiraram umas notas sobre o que dissemos e mais nada. Esses homens não dão valor à vida humana”, lamenta.
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CASO N.º 7: AVISO: NO BAIRRO 6 ESTÃO A MATAR VÍTIMAS: Bruno Sebastião da Silva Rodrigues, 20 anos, natural de Luanda; Osvaldo Bumba “Juquinha”, 17 anos, natural de Luanda DATA: 9 de Abril de 2017 LOCAL: Rua da Mamá Gorda, bairro 6, município de Viana OCORRÊNCIA: Juquinha despediu-se da família, residente no bairro do Rocha Pinto, numa sexta-feira (7 de Abril), para ir a uma festa no bairro 6, onde vive a sua mãe e onde antes residia. “Eu avisei-o para não voltar ao bairro 6, porque lá estão a matar. O Bruno veio buscá-lo a casa”, conta José Bumba, irmão da vítima. No dia fatídico, Juquinha e o amigo foram levados por quatro agentes que circulavam em duas motorizadas, cada um entre dois agentes. No local do assassinato, Juquinha e Bruno Sebastião foram retirados das motorizadas. “O meu irmão foi atingido com dois tiros nas costas e um na cabeça”, revela José Bumba. “Eles [os dois amigos] foram encontrados numa sentada [convívio social]. Acredito que as autoridades que os mataram têm de ter uma ordem superior. Os órgãos superiores têm motivos, em função do comportamento dos jovens”, explica o tio de Juquinha, que prefere não ser identificado pelo nome.“O meu sobrinho mexia [cometia actos de delinquência]. Passou um ano e meio, entre 2015 e 2016, na Remar [ONG] do Porto Amboim, para ser reeducado, mas voltou e continuou com a sua vida”, explica. Teresa Sebastião Domingos revela apenas que foi informada da morte do seu filho Bruno passadas duas horas, e que chegou ao local por volta das 16h00. Bruno tinha sido libertado em Janeiro passado, depois de ter estado detido na Esquadra dos Contentores [44.ª Esquadra, em Viana] e quase dois anos na Comarca Central de Luanda. “Esteve esse tempo todo detido, sem nunca ter sido ouvido e sem ter sido julgado por suspeita de assalto a uma cantina”, lamenta a mãe.
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CASO N.º 8: NÃO FAZ SENTIDO DEFENDÊ-LO VÍTIMA: Bráulio Matias “Fogo de Deus”, 24 anos DATA: 21 de Março de 2017 LOCAL: bairro da Cuca, zona do Curtume OCORRÊNCIA: Por volta das 19h30, agentes do SIC detiveram Fogo de Deus em casa, diante dos familiares. Pouco mais de uma hora depois, alguns amigos encontraram o seu corpo na berma da estrada, com dois tiros no abdómen. A irmã de Fogo de Deus, que preferiu não ser identificada, confirmou que o seu irmão era delinquente. “Não faz sentido defendê-lo”, disse, quando questionada sobre o assassinato. CASO N.º 9: OS LOBOS E OS MINI-LOBOS VÍTIMA: Catenda João Fernando “Scooby-Doo”, 35 anos DATA: 23 de Fevereiro de 2017 LOCAL: bairro da Calemba OCORRÊNCIA: Scooby-Doo encontrava-se numa festa, no Campo da Tourada, quando um conhecido seu o informou de que a namorada se encontrava fora do recinto da festa e gostaria de falar com ele, com urgência. Scooby-Doo saiu à rua, mas não viu a namorada. Enquanto falava com uma vendedeira de pinchos, recebeu um tiro na nuca e outro nas costas. A vítima caiu de joelhos e o seu algoz executou-o com um tiro da cabeça e outro pescoço. “O que chamou é um. O que fez o disparo é outro. A família conhece ambos, porque vivem no bairro”, refere António Diogo, primo da vítima.
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Scooby-Doo esteve detido duas vezes. A primeira, no ano passado, durante quatro meses. Dias antes de ter sido morto esteve detido por uma semana, mas a família não revelou os motivos destas detenções. Segundo o primo, Scooby-Doo fez parte do grupo “Lobos do Jumbo”, que realizava festas raves. “Havia outro grupo, os mini-lobos, que eram marginais, e um deles tinha adoptado também a alcunha do meu primo”, sublinha António Diogo.
CASO N.º 10: TÃO LOGO SAIU EM LIBERDADE VÍTIMAS: Senas Pedro Kiala “Senacristo”, 25 anos; António Matias da Conceição, 31 anos, natural do Bengo; Osvaldo Miguel Arriaga, 26 anos; um indivíduo não identificado; Hélder Pedro Kiala, 20 anos [irmão de Senacristo, morto a 16 de Junho de 2016] DATA: 29 de Janeiro de 2017 LOCAL: Traseiras do Estádio 11 de Novembro, município de Viana OCORRÊNCIA: Em Junho de 2015, Senacristo e mais oito membros do seu grupo foram detidos por suspeita de assalto a um banco. A 15 de Dezembro de 2016, foram libertados. O caso de Senacristo proporciona um melhor entendimento sobre o modus operandi do SIC. Em 2015, o SIC deteve Senacristo, o pai, duas irmãs e a esposa. “Eu também fui espancado na Esquadra da Centralidade do Kilamba. O chefe da investigação acusou-me de ser cúmplice do meu filho. Eu e o meu filho fomos espancados na mesma sala. Pedi que o torturassem longe da minha presença ou que nos matassem a ambos. Levei uma bofetada tão violenta na cara que caí”, recorda António Kiala. “Um chefe que veio do Comando Provincial [da Polícia Nacional] exigiu a minha soltura, das filhas e da minha nora, tendo afirmado que o crime não
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é transmissível. O mesmo chefe perguntou se todos os que são detidos são-no com as suas famílias”, relata. Passados dois dias, os mesmos familiares foram de novo detidos, desta vez incluindo um irmão de Senacristo, João Pedro, e conduzidos à casa do suspeito, nas imediações do Estádio 11 de Novembro, em Viana, para mostrarem as armas. Sem o conhecimento da restante família, João Pedro e a cunhada tinham enterrado quatro Kalashnikovs e uma pistola pertencentes a Senacristo. Os dois passaram três meses detidos como cúmplices. “A partir daí, o SIC vinha sempre a minha casa, como se fossem regularmente a um restaurante deles. Ameaçavam-me directamente, como aconteceu na Esquadra do Kilamba, que matariam o Senacristo tão logo ele saísse em liberdade”, revela o pai. Depois, numa das suas visitas regulares, os homens do SIC constaram que havia mais filhos: “Afinal este mais velho tem muitos filhos [eu tinha sete filhos e duas filhas] e a nossa missão é a de matar, mas quando chegamos aqui há sempre intervenção.” António Kiala explica que um dos agentes envolvidos na detenção de Senacristo, conhecido com Mapanda, “ligou ao chefe a pedir autorização para matá-lo, mas o chefe recusou”. “É isso que eles consideravam intervenção”, enfatiza. “Esse Mapanda namorava com a mulher do meu filho e, por isso, não queria que eles voltassem a viver juntos. Quando o meu filho saiu da cadeia, exigi que deixasse a mulher e ficasse comigo na lavra, em Caxito, mas ele não me ouviu. O amor é mesmo assim”, denuncia. Com Senacristo e João detidos, António Kiala encontrou conforto na visita do seu filho Eduardo, de 19 anos, estudante universitário no Uíge. No dia em que este chegou a Luanda, a casa do pai, foi imediatamente detido pelos agentes do SIC e passou uma noite na cadeia, “sem motivo”. A 16 de Junho de 2016, Hélder Pedro Kiala, de 20 anos, que também estudava no Uíge, deslocou-se a Luanda para ver a família e comprar uma motorizada. “Não o vimos vivo sequer. No dia seguinte, ouvimos dizer que estava morto no bairro Hoji Ya Henda. Fomos vê-lo e não tinha sinais de tiro. Cortaram-lhe as veias da nuca. Agora entendo as ameaças dos homens do SIC, que eu tinha muitos filhos”, nota António Kiala. A 28 de Janeiro passado, Senacristo saiu de manhã para tratar de documentos pessoais. A 29 de Janeiro, de madrugada, juntamente outros três indivíduos foram executados nas imediações do Estádio 11 de Novembro, todos com
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tiros na cabeça. Um jovem postou as imagens na sua página de Facebook. Durante o dia, os corpos foram removidos e deitados noutro local, conforme depoimento que se segue. A 1 de Fevereiro, as famílias identificaram as vítimas já na Morgue Central. ANTÓNIO MATIAS O sogro Ramiro “Kito”, em casa de quem António Matias vivia, ofereceu-lhe boleia para ir buscar o bilhete de identidade de que havia tratado. António recusou, preferindo ir com amigos, por volta das 10h00. Caminhou cerca de 500 metros até à paragem de táxi, e essa foi a última vez em que familiares e amigos o viram com vida. De acordo com o sogro, o corpo de António foi lançado numa pequena lixeira em Viana, juntamente com os corpos dos dois amigos, Osvaldo e Senacristo, na noite seguinte, próximo do DreamSpace, embrulhados em sacos de plástico pretos. “Os guardas locais viram uma carrinha Mitsubishi Canter a deixar três sacos de lixo e acharam um bocado estranho que desconhecidos fossem deitar lixo ali carregado numa viatura, mas nada disseram. Depois, deram conta de que eram os corpos.” “Nas diligências por nós efectuadas, recebemos a informação de que eles foram mortos pelo Anderson ‘DCP’, pelo Coló (do Marçal), pelo Vander (da Ilha de Luanda), pelo Nucho (Luanda-Sul) e pelo Manda Mbula (Rangel). São bandidos muito famosos, colaboradores do SIC”, revela o sogro. António foi atingido com um tiro no nariz e, segundo o sogro, apresentava sinais de tortura. Os outros dois, também segundo o seu testemunho, foram mortos com tiros na cabeça e exibiam sinais de tortura. OSVALDO ARRIAGA “Eu gostaria de saber o que aconteceu. O meu irmão foi morto com um tiro na testa. Só o reconhecemos pela roupa. Parece-me que foi muito torturado, porque só tinha dois dentes na boca”, afirma Paula, irmã de Osvaldo Arriaga. Acusado de roubar um cartão multicaixa, Osvaldo estivera preso, recebendo ordem de soltura a 28 de Novembro de 2016. “A DNIC [SIC] foi a casa do meu irmão mais velho e levou uma viatura i10, uma aparelhagem de som muito cara, um Hiace e uma motorizada (que eram do meu irmão mais velho). Nunca devolveram os bens”, conta Paula.
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Segundo a jovem, pela libertação de Osvaldo, a família fora obrigada a pagar dois milhões de kwanzas, transferidos para “uma conta do Estado”. Ele não foi a julgamento e assinava quinzenalmente, sob termo de identidade e residência, no Tribunal do Kilamba Kiaxi. Os três tinham registo criminal. “O António saiu em liberdade condicional em Julho do ano passado, depois de nove meses detido por tráfico de droga”, diz Ramiro “Kito”, que o acompanhava às audiências de julgamento, em curso quando foi morto. Osvaldo e Senacristo também se encontravam em liberdade condicional, depois de terem sido detidos por assalto ao banco BIC de Viana. Quando participaram o caso ao SIC, “disseram-nos apenas: ‘está registado’. Mais nada”, lamenta Ramiro “Kito”. CASO N.º 11: FUZILAMENTOS COM VISÃO CRISTÃ VÍTIMAS: Borges Domingos Mateus “Chá Preto”, 25 anos, natural de Luanda; Josimar António Gaspar “Subeto”, 19 anos, natural de Luanda; Tunga (sem mais informações sobre a sua identidade) DATA: 8 de Março de 2017 LOCAL: bairro da Boa Fé (Caop C), município de Viana OCORRÊNCIA: Depois de terem rondado o local em observação visual — tendo sido notados por familiares e vizinhos — quatro agentes à paisana, armados com pistolas, cercaram e detiveram Chá Preto, Tunga e Subeto, em casa deste último. Subeto tentou fugir, mas foi apanhado num quintal vizinho. A família registou que eram 14h10 quando os agentes transportaram os detidos numa viatura Toyota Land-Cruiser de cor branca e vidros fumados para a Esquadra da Boa Fé. Os três rapazes eram membros do gangue “Os Mileva”. Segundo familiares e amigos, Chá Preto havia escapado à execução sumária por duas vezes, enquanto Subeto, de acordo com o seu tio Tony (assim quer ser identificado),
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esteve detido duas vezes por assaltos. “A primeira vez, em 2014, o Josimar passou sete meses na Comarca de Viana, a segunda ficou dois meses. Eles [Mileva] assaltavam os cidadãos que estivessem a passar”, explica o tio. Depois das 19h00, a família recebeu a notícia de que os três jovens tinham acabado de ser executados junto à Igreja da Visão Cristã, nas proximidades da sua residência. “Quando lá chegámos, as testemunhas [oculares] informaram-nos de que os jovens foram levados de motorizadas até ao local. Disseram às pessoas para se trancarem dentro de casa e foram mulheres que dispararam”, conta o tio Tony. “O meu sobrinho Josimar levou oito tiros na cabeça e nas costas. A maior parte foi na cabeça, e estava amarrado. O Tunga apanhou três tiros nas costas e um no pé. Chá Preto, segundo a família, morreu algemado com oito balas crivadas no corpo, incluindo várias na cabeça. Durante 15 horas, os corpos ficaram expostos no local. Foram recolhidos no dia seguinte pelo SIC, depois das 11h00. “O menino mexia [assaltava]. Sinceramente, todos nós temos os nossos erros e defeitos, mas não concordamos com esses fuzilamentos. A polícia fez isso e já não temos como reclamar”, lamenta o tio Tony. CASO N.º 12: O MATADOR TROCA-TIROS VÍTIMA: André Cardoso Pinto “Ti 500”, 22 anos DATA: 7 de Março de 2017 LOCAL: Praça do Justiceiro, Kikolo, município de Cacuaco OCORRÊNCIA: Às quatro da madrugada de 25 de Fevereiro, três investigadores do SIC e um agente da Polícia Nacional detiveram André Cardoso Pinto “Ti 500”, que se encontrava em casa de uma irmã. De manhã, a família procurou-o pelas esquadras e encontrou-o na Esquadra da Bananeira. Tinha sido torturado. Ti 500 passou três noites detido.
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“A polícia cobrou-nos 30 mil kwanzas para libertá-lo. Não tínhamos, levámos 15 mil kwanzas e eu entreguei pessoalmente o dinheiro nas mãos do investigador do caso, o Pula-Pula. Tivemos de ir à Esquadra do IFA [Comando da III Divisão da Polícia Nacional], no Cazenga, onde o Pula-Pula trabalha”, revela Delfina Teresa, uma das irmãs da vítima. Segundo relata Delfina, ao pagar, Pula-Pula avisou que o irmão seria morto em breve, ali mesmo, na esquadra. Para além de Delfina, testemunharam esta conversa a mãe, Teresa Adão, a prima Débora e a irmã Eliete. A partir de então, Ti 500 passou a ser controlado por Léu e Troca- -Tiros, pertencentes à Esquadra da Bananeira. Troca-tiros fazia-se sempre acompanhar do agente De Paiva, também conhecido como “Pega”. Segundo Teresa Manuel Adão, “Pega é o bufo que trabalha na Esquadra da Bananeira”. Delfina esclarece: “A minha irmã Eliete conhece-os muito bem, pois vive ao lado da esquadra.” Uma semana depois, no fatídico dia 7 de Março, perto das 20h00, Ti 500 saiu da casa da irmã Delfina e dirigiu-se à Praça do Justiceiro, para comprar bolinhos, conforme informação prestada pela família. “Os vizinhos viram o Troca-Tiros a atingir o meu irmão com um tiro no ombro, do lado esquerdo. Ele [irmão] correu, e o Troca-Tiros acertou-lhe com um tiro na testa e o último na bochecha esquerda”, descreve Delfina. Uma amiga que acompanhava Ti 500 correu a avisar a família. “Quando chegámos, já lá estava a polícia, à espera do carro para a recolha do corpo”, recorda a irmã. “Já não fomos ter com o Troca-Tiros nem apresentar queixa, porque a família decidiu que Deus fará justiça pela morte do Adi [Ti 500]”, acredita. Delfina Teresa descreve o irmão como um jovem “que gostava de lutar, de se envolver em brigas de grupos. Nós, os familiares, não víamos os crimes que ele cometia. Sabíamos das lutas e que ele fumava liamba”.
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CASO N.º 13: CELEBRAÇÃO DO PRIMEIRO ANO DO CURSO DE DIREITO VÍTIMA: Ramiro Agostinho António “Mitó”, 24 anos DATA: 7 de Março de 2017 LOCAL: bairro do Jacinto Tchipa, município de Viana OCORRÊNCIA: Quando regressava da Universidade Técnica de Angola (UTANGA), onde recebera a boa notícia de ter transitado para o segundo ano do curso de Direito, Mitó decidiu celebrar com um amigo. Depois de passar rapidamente por casa, foi com esse amigo beber um copo à cantina do bairro. Por volta das 16h00, enquanto caminhavam de volta a casa, “uma carrinha Toyota Hilux passou por eles e os ocupantes fizeram disparos contra eles [os dois amigos], mas não os atingiram”, conta António Quissanda, primo de Mitó. Quatro indivíduos, três dos quais armados com pistolas e Kalashnikovs, desceram da carrinha e perseguiram os jovens, que entretanto se haviam posto em fuga. “Eles conseguiram agarrar o Mitó, pediram-lhe para pôr as mãos no ar e deram-lhe um tiro na cabeça e outro no pescoço”, relata o primo. A execução foi testemunhada por muitos transeuntes e moradores, uma vez que ocorreu numa área bastante movimentada. Uma das residentes reconheceu o assassino como sendo um agente de campo do Serviço de Investigação Criminal que antes participara noutra operação similar. Informou a família, mas recusou-se a acompanhá-la ao SIC para prestar depoimentos, por temer pela sua vida. Mitó estivera detido durante três meses na Esquadra do Cantinton e na Comarca de Viana. Segundo a família, envolvera-se numa briga de rua quando acompanhava um amigo que era suspeito de roubo de telemóveis. Ambos foram detidos. “Ele não tem passado de delinquência. Era um jovem medroso”, conta António Quissanda. A mãe de Mitó é uma alta funcionária do governo provincial do Uíge e do MPLA a nível local. No Comando Municipal de Viana, aonde se dirigiu
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logo após o assassinato do seu filho, recebeu a informação de que este fora morto por bandidos. “E mais não disse, nem explicou como rapidamente se tinha chegado a tal conclusão sem nenhuma investigação”, refere António Quissanda. O primo conta ainda que a família também estabeleceu contacto com o delegado provincial do SIC, que negou qualquer envolvimento dos seus operacionais no assassinato, ainda que não tenha investigado o caso. CASO N.º 14: CIRCULAR ATÉ MORRER VÍTIMAS: Cristóvão Francisco João “Zé Du”, 26 anos, natural de Luanda; Irineu da Cruz Nogueira, 22 anos; e um terceiro cidadão não identificado DATA: 1 de Março de 2017 LOCAL: bairro da Boa Fé, município de Viana OCORRÊNCIA: Testemunhas oculares afirmam que os três jovens estavam juntos, prestes a beber cerveja e a comer pinchos, na Lanchonete da Amizade, quando foram abordados por quatro indivíduos que se faziam transportar num Hyundai i10, já passava das 15h00. Três dos agentes vestiam calções e o quarto trajava a farda da Polícia Nacional. “O meu filho perguntou-lhes porque estavam a detê-los. Não responderam. Levaram-nos apenas”, informa Isabel António, mãe de Zé Du. Quando chegou ao local do crime, as vendedeiras locais manifestaram-se solidárias para com Isabel António, partilhando com ela o que viram durante a detenção. Segundo depoimentos recolhidos no local e confirmados por esta investigação junto de outras fontes, os captores “circularam com os detidos até escurecer. Regressaram ao bairro, levaram-nos para um quintalão perto do local onde os detiveram e mataram-nos ali por volta das 21h00”, relata Tina, irmã de Zé Du. “O meu filho apanhou três tiros, um dos quais na cabeça”, lamenta Isabel António. Por sua vez, a mãe de Irineu da Cruz Nogueira, explica que o seu filho “foi morto com dois tiros nas costas e esfaqueado no lado direito do peito”.
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Irineu tinha cadastro. Segundo a mãe, passou três anos e seis meses detido, tendo passado pelas esquadras do Contentor (44.ª), Kapalanca, a Comarca Central de Luanda e a Penitenciária de Kakila. “O meu filho tinha lutado com o filho de um polícia, e este veio à minha casa detê-lo. O meu filho nunca foi julgado. Só foi ouvido uma vez na Prisão de Kakila, depois de eu ter batalhado muito. Ficou em liberdade por apenas seis meses”, refere a mãe. CASO N.º 15: QUEM MATOU FOI O PULA-PULA VÍTIMA: Geraldo Emanuel Mayaya “Mibalé”, 26 anos, natural de Luanda DATA: 1 de Março de 2017 LOCAL: Rua Direita da Pólvora, bairro Augusto Ngangula, Kikolo, município de Cacuaco OCORRÊNCIA: “Estávamos frente a uma cantina a beber cerveja, quando os homens apareceram, por volta das 13h20. Vieram em duas motorizadas, uma avançou e outra parou à nossa frente. Um deles pegou o meu irmão pelas calças”, conta Mayaya André, o irmão de Mibalé. Mayaya André explica que os indivíduos não se identificaram, nem deram qualquer explicação. “Levaram o meu irmão para um beco, a três metros do sítio onde estávamos. Eu segui-os e um deles sacou da pistola e avisou-me de que se os seguisse também seria morto”, recorda. Os irmãos encontravam- -se perto de casa. “Um deles, sem dizer mais nada, executou o meu irmão com dois tiros na cabeça, outro do braço esquerdo que lhe atravessou o coração e um quarto tiro na costela direita. Eu reconheci quem o matou. É o Pula-Pula, do SIC. Eu vi o meu irmão a ser morto e estou disposto a testemunhar em tribunal”, remata. Mayaya André refere que o seu irmão esteve detido durante um ano e dois meses, sob o Processo n.º 19/2015-BQ, tendo sido libertado a 13 de Junho de 2016 com termo de identidade e residência. Era obrigado a apresentar- -se semanalmente no Tribunal Municipal de Cacuaco.
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Segundo o interlocutor, Mibalé foi parar à cadeia em consequência de um acto de rebelião na oficina onde trabalhava como mecânico. Havia três meses que o patrão não lhe pagava, e levou consigo dois pneus de Toyota Corolla, que vendeu. Além disso, o irmão conta que, antes de arranjar emprego como mecânico, Mibalé já tinha ficha na Esquadra do Bom-Pastor, por ter sido membro do gangue “Que Pena”. “Depois de ter saído da cadeia, já não teve quaisquer problemas com as autoridades. Ajudava-me. Eu trabalho por conta própria, sou pedreiro, e ele fazia de meu ajudante”, explica Mayaya. CASO N.º 16: A AVÓ MORRE TAMBÉM VÍTIMA: João Tomás Pereira “Joãozinho”, 17 anos DATA: 27 de Fevereiro de 2017 LOCAL: bairro Augusto Ngangula, município de Cacuaco OCORRÊNCIA: Como era habitual, Joãozinho jantou com os avós. Saiu à rua para conversar com o seu melhor amigo, Aniceto Gaspar “Mano”, junto à porta da cantina que o avô construiu no quintal, mas cuja entrada para os clientes dá para a rua. O adolescente ajudava aí o avô nos seus tempos livres. Era estudante. Há já algum tempo, um carro da marca Toyota Starlet, de vidros fumados, fazia rondas na rua de forma ostensiva, causando desconfiança entre os moradores. À quarta volta, os três ocupantes da viatura encontraram os adolescentes à conversa. “Só nos disseram para entrarmos para o carro e não conseguiram. Os três [ocupantes da viatura] tinham casacos pretos e capuchos pretos que tapavam a cara. Não perguntaram sequer pelos nossos nomes”, relata Mano. “Desceram e pegaram-nos na cintura. Dissemos que éramos inocentes e estávamos em nossa casa. Eu empurrei um deles, desequilibrei-me e arrastaram-me para o porta-bagagens”, conta Mano. De seguida, o motorista desceu do carro para obrigar também Joãozinho a entrar para o porta-bagagens, conforme depoimento do amigo.
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Mano afirma o que aconteceu naquele fatídico momento: Joãozinho foi sumariamente executado, e ele apenas conseguiu fugir. “O Joãozinho recusou-se [a entrar no porta-bagagens] e segurou-se ao gradeamento. O motorista disse, ‘esses rapazes estão a dar trabalho’. Pegou-lhe na cabeça, baixou-a e deu-lhe um tiro no pescoço, do lado direito, junto da orelha.” “O [assassino] que estava comigo manipulou a pistola para disparar contra mim. Não sei como consegui fugir. Foi Deus. Fugi por um beco e já não me seguiram”, revela o sobrevivente. Mano conta que nunca esteve detido ou envolvido em actos de delinquência. A família teve de envia-lo para fora de Luanda, para protege-lo. Graça Tomás, de 64 anos, acorreu ao quintal quando ouviu o tiro e, ao ver o neto estendido no chão, teve um ataque. Pedro Pereira julgou tratar-se apenas de um desmaio. Deixou o neto e tentou socorrer a mulher, levando-a ao hospital. Estava morta. Enquanto Pedro Pereira seguia para o hospital, surgiu de imediato — com a celeridade de quem já se encontrava numa esquina à espera — uma viatura de recolha de cadáveres, que levou o corpo de Joãozinho. “Eu criei o meu neto desde pequeno. Era órfão. Nunca esteve preso, nem teve problemas. Todo o mundo aqui sabe que a minha mulher não era gatuna e morreu também. Gostaria que esse caso fosse a tribunal”, desabafa Pedro Pereira. CASO N.º 17: A ÚLTIMA CONFISSÃO VÍTIMA: Rodrino Saliomba “Hino”, 23 anos, natural do Huambo DATA: 16 de Fevereiro de 2017 LOCAL: campo de futebol da Pequena Ilha, no bairro Chimuco, município de Viana OCORRÊNCIA: Segundo depoimentos de Nuno Saliomba, a 12 de Fevereiro, uma família a quem o seu irmão Rodrino alegadamente roubara um telefone aprisionou-o e levou-o para casa, onde o torturou antes de o entregar à Polícia Nacional, na Esquadra do Mirú. Hino esteve detido nessa esquadra até ser encaminhado para o campo de futebol próximo de casa, onde foi fuzilado.
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Carlos Manuel Cassoma testemunhou a execução do seu sobrinho por acaso, quando passava por ali: “São homens do Serviço de Investigação Criminal (SIC). Trouxeram-no numa motorizada de três rodas. Obrigaram- -no a correr e atingiram-no com quatro tiros, um na cabeça e três nas costas.” “O miúdo, antes de morrer, disse-me: ‘Tiraram-me da cadeia. Pensei que fosse para me soltarem, afinal era para me abaterem’, e morreu”, revela o tio. Carlos Cassoma viu os cinco indivíduos que executaram a operação, todos trajados de jeans e sem os coletes que normalmente identificam os agentes do SIC. Segundo ele, “os agentes dispararam muitos tiros para afugentar a população e, passados poucos minutos, surgiu o patrulheiro da Polícia Nacional para recolher o corpo”. “Para ser claro e sincero, o meu irmão era delinquente e pertencia ao grupo Sete Quedas, que depois mudou de nome para Os Metidos”, revela o irmão Nuno Saliomba, de 16 anos. “Esteve detido muitas vezes, nunca por mais de seis meses, e saía sempre sem julgamento. No princípio, nós, os familiares, visitávamo-lo e aconselhávamo-lo a deixar essa vida. Como não acatava os conselhos, afastámo-nos.” CASO N.º 18: ABEGA OU DROGBA É IGUAL VÍTIMA: Pedro Avelino Eduardo “Abega”, 25 anos DATA: 4 de Fevereiro de 2017 LOCAL: bairro do Compão, município do Cacuaco OCORRÊNCIA: Enquanto bebia cerveja com uns amigos, dois indivíduos aproximaram-se de Pedro “Abega” numa viatura identificada como um Hyundai i10. “Um chamou-me de longe, o outro saiu do carro e disse-me ‘você é o Drogba, vamos te matar agora’.” As alcunhas e os diminutivos são muito comuns entre os homens angolanos, independentemente da sua condição social. Drogba é provavelmente um nome inspirado no famoso avançado da Costa do Marfim, Didier Drogba,
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assim como Abega é o nome do lendário futebolista camaronês, que brilhou nos anos 80. “Eu disse que não. Apresentei o meu documento ao mais alto e maior, para provar que não sou o Drogba. Esse queria acudir-me, mas o outro disse: ‘vamos matar-te à mesma. Tinha uma pistola com silenciador e deu-me um tiro no olho esquerdo”, conta Abega. Depois de cair, o assassino deu-lhe mais um tiro nas costas, que lhe atravessou o abdómen: “Meu irmão, eu nem sei como estou vivo.” “A minha família, ao receber a notícia, foi reclamar à polícia (Esquadra do Compão) e disseram-lhes que não me podiam remover porque eu era bandido. Os homens do SIC apareceram depois com o carro de remoção de corpos. Deram conta que eu era inocente e deixaram-me ali mesmo no chão a gemer, e foram-se embora”, relata Abega. Pedro Avelino Eduardo é motorista de profissão e ganha a vida como taxista. Vive com os seus tios. Neste dia trágico, encontrava-se de folga e passara a tarde a lavar a roupa. “Fiquei burro quando me chamaram para me matarem. Estão a matar os bandidos todos do bairro e eu não sou bandido.” Um dos companheiros que bebiam com ele uma cerveja é agente da Polícia Nacional (PN). Sob anonimato, lamenta que o seu amigo tenha sido alvo do esquadrão da morte: “Eu conheço muito bem o Abega. É um jovem muito calmo e dedicado ao seu trabalho e à família.” O patrão de Abega, dono da minivan que faz de táxi, aconselhou os jovens a evitarem o local e a não se concentrarem no período da noite, devido à onda de assassinatos de supostos delinquentes no bairro. “Eu vi o indivíduo a disparar contra a cabeça do Abega. A primeira vez a bala encravou, o colega que o acompanhava na batida também teve a bala encravada. Gritei para o Abega fugir, mas agarraram-no e arrastaram-no para detrás de um autocarro, onde lhe deram os tiros”, conta o agente da PN. “Corremos e vimo-lo já estendido no chão. O segundo assassino acrescentou-lhe um tiro nas costas.” Segundo esta mesma testemunha, os assassinatos no município do Cacuaco são efectuados por bairros, com particular incidência nos do Compão e Cauelele, mas não só. Abega perdeu o olho esquerdo, tem a orelha danificada e perdeu a audição no ouvido esquerdo. Desta vez, contra todas as expectativas, as autoridades que promovem a luta contra a criminalidade através do assassinato não causaram a morte de mais um inocente. Em vez disso, deixaram Pedro Avelino inválido, forçando-o a juntar-se à massa de jovens desempregados.
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CASO N.º 19: O CRIME É TRANSMISSÍVEL? CALA BOCA VÍTIMAS: Pedro Fernandes “KV”, 23 anos, natural de Luanda; Caramelo e mais um jovem não identificado DATA: 4 de Fevereiro de 2017 LOCAL: Desconhecido OCORRÊNCIA: “Em Novembro passado, ouvimos dizer que o Pedro Fernandes assaltou uma senhora. A família repreendeu-o e ele fugiu de casa. Só o encontrámos morto no dia 4 de Fevereiro”, conta o tio de KV, Paulo Neves. “O meu sobrinho apanhou oito tiros, incluindo na cabeça; o Caramelo levou três, incluindo um na cabeça; enquanto o desconhecido foi atingido com três tiros na cabeça.” Conforme depoimentos de familiares e vizinhos, KV e seis amigos alegadamente assaltaram um grupo de vendedeiras na Rua Direita da Kianda, no Kikolo. As senhoras compravam mercadorias a grosso nos armazéns locais e revendiam-nos na fronteira do Luvo [na província do Zaire]. Nesse dia, levavam consigo 12 milhões de kwanzas numa bolsa. Em Janeiro [dia não precisado], o SIC espancou de madrugada toda a família de KV. Os agentes acordaram as três irmãs e espancaram-nas no estado em que as encontraram no quarto, seminuas, para que denunciassem o paradeiro do irmão ou entregassem o dinheiro. Como ele não estava, levaram o tio para a Esquadra da Boa-Esperança, conta-nos Paulo Neves. “Na esquadra, perguntei se o crime é transmissível, afirmei que estavam a violar os meus direitos e mandaram-me calar a boca”, revela. Segundo investigações feitas no local, no dia anterior à execução de KV, este e Caramelo foram pernoitar no bairro da Sécil, em casa de um grupo de meliantes também procurados pela polícia. Os anfitriões acomodaram os hóspedes e não passaram a noite no local. Foi nessa residência que capturaram KV, Caramelo e outro amigo, de nome desconhecido.
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CASO N.º 20: POLÍCIA NÃO ACODE GATUNOS VÍTIMA: “Bad Lilas” (também conhecido como “Brasileiro”), 23 anos DATA: 3 de Fevereiro de 2017 LOCAL: mercado da Kianda, Kikolo, município de Cacuaco OCORRÊNCIA: Em Outubro de 2016, em data não especificada, Bad Lilas esteve detido na Esquadra do Cauelele por suspeita de roubo de telefone e assalto à mão armada. Qual anedota, conforme depoimento da mãe, retiraram-no da cela para que lavasse na rua o carro do comandante. O rapaz fez o trabalho, mas aproveitou a distracção dos agentes para fugir. Era a sua quarta detenção por suspeita de assalto desde 2013. Segundo a mãe, no dia do seu assassinato, por volta das 9h00, um amigo foi buscá-lo a casa para fazerem “um trabalho”. Antes, fumaram um charro e dirigiram-se ao mercado da Kianda, onde lhes haviam montado a cilada. De acordo com o testemunho de amigos e presentes, quatro indivíduos, dois em cada motorizada, cercaram-no e obrigaram-no a montar uma das motorizadas, tendo ficado no meio, entre os dois ocupantes iniciais. Levaram-no até ao beco de acesso ao mercado do Kikolo, a poucos metros de distância. “Bad Lilas viu um agente da Polícia Nacional a passar, conhecido como Chefe Lâmina, e pediu que o acudisse”, conta um dos jovens. “O Chefe Lâmina respondeu-lhe que não acode gatunos.” “Hoje é o teu último dia”, disse-lhe o seu executor. Foi assim que — conforme depoimentos de transeuntes que acidentalmente circulavam no beco — terminou a vida de Bad Lilas: três tiros na testa, outro no pescoço e o último no abdómen.
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CASO N.º 21: SALVAR O AMIGO É INTERFERIR NO TRABALHO DA POLÍCIA VÍTIMAS: Santos Miguel Samuel “Califa”, 22 anos, natural de Luanda; Emílio Manuel Mbaxi “Sebas”, 22 anos, natural de Luanda DATA: 28 de Janeiro de 2017 LOCAL: bairro Cardoso, Kikolo, município de Cacuaco OCORRÊNCIA: Sebas e Califa receberam a visita de duas amigas, provenientes de Viana, em casa do primeiro. Cozinharam e almoçaram juntos. Califa ausentou-se depois do almoço para ir cortar o cabelo a um cliente, no salão da irmã, onde trabalhava, e regressou depois ao convívio. “Às 18h45, formos acompanhar as duas amigas à paragem dos candongueiros [táxis colectivos]. Elas seguiram e nós ficámos ali a beber cerveja. Eu disse ao Califa para irmos a casa buscar o meu telefone, de que me havia esquecido. Já eram 19h00”, conta Sebas. De acordo com o seu testemunho, no regresso a casa, a poucos minutos do local onde se encontravam, depararam-se com dois jovens. “Mal [os dois] viram o Califa começaram a disparar [com pistolas]. Atingiram-no com um tiro no peito e um segundo na barriga. Ele virou-se para fugir e acertaram- -lhe com mais um tiro na nuca”, revela Sebas. “Quando mataram o Califa, pensei que me deixariam viver, porque eu não sabia de nada [de actos de delinquência alheios]”, diz Sebas. O jovem é marceneiro de profissão e exercia o seu ofício no mercado do Kikolo, onde tinha o seu espaço para a reparação de móveis. “Nunca roubei, nunca fiz mal a ninguém. Eu encontrava-me com o Califa apenas aos sábados e domingos, porque trabalhava de segunda a sexta- -feira”, justifica. Para os pistoleiros, nada disso interessava. “Viraram-se contra mim e os dois começaram a disparar. Atingiram-me com um tiro no braço direito. Eu já estava a correr quando o segundo tiro me atravessou o abdómen e saiu do lado direito”, narra o jovem.
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Sebas conseguiu correr alguns metros, mesmo depois de ter sido alvejado pela terceira vez, com um tiro na coxa esquerda: “Entrei num edifício de dois andares. Subi ao primeiro andar e caí [de bruços]. Os dois seguiram-me. Um dos assassinos mexeu a minha cabeça com a pistola para ver se eu ainda estava vivo. O outro disse: ‘Vamos embora, porque a população vem daqui a bocado.’ Eu mal respirava. Pensaram que já estava morto, e por isso foram-se embora.” Sebas levantou-se e saiu para a rua sem ajuda de ninguém, contrariando o conselho de uma jovem que o viu nas escadas após a saída dos perseguidores e que queria escondê-lo. “A população estava com medo de me ajudar. Como era perto de casa, um amigo meu — o Paciência — tomou logo conta do caso e apareceu com um vizinho, que tinha uma viatura, socorrendo-me. Levou-me para o Hospital dos Cajueiros, onde não havia condições, e transferiram-me para o Hospital Américo Boavida.” “Por me ter socorrido, os homens do SIC foram duas vezes a casa do Paciência”, denuncia Sebas. Paciência confirma o sucedido, relatando que, no dia a seguir ao tiroteio, os “agentes do SIC foram a minha casa à minha procura. Tive de dormir em casa da minha tia”. Passados alguns dias, a 1 de Fevereiro, “os homens do SIC interpelaram-me a caminho do serviço. Primeiro, viram se a minha cara não estava no tablet. Depois disseram-me para nunca mais interferir no trabalho da polícia”. Apesar de não saber os nomes dos agentes, Paciência garante ser capaz de os identificar. “Eram quatro agentes que circulavam num Hyundai i10, cor de vinho, com vidros fumados. Avisaram-me de que, da próxima vez encontrasse alguém naquele estado, não me devia meter no assunto. Deram-me conselhos e foram-se embora.” “Não sei porque mataram o meu irmão”, lamenta Maria da Conceição. A jovem recorda que, até 2015, Califa viveu no município do Cazenga, onde fazia parte de um grupo que volta e meia se envolvia em lutas. “Numa dessas lutas, rasgaram-lhe o queixo e os lábios com uma lâmina, e apanhou com uma catana na testa”, conta. Após esse incidente, Maria da Conceição resgatou o irmão, levando-o para viver consigo e empregando-o no seu salão como barbeiro e tatuador. Já a viver consigo, Califa esteve detido uma única vez, por uma noite, na Esquadra do Alfa-5, no bairro Combustível, por suspeita de participação
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no roubo de baterias de automóvel num parque de estacionamento no bairro Cardoso. “Depois disso, as únicas confusões que o Califa arranjava eram com os clientes a quem ele cortava o cabelo e que se recusavam a pagar”, afirma. Entretanto, cerca de nove meses após a cirurgia a que foi submetido por causa do tiro que lhe atravessou o abdómen, Sebas retomou o seu trabalho, que requer grande esforço físico e manuseamento de objectos pesados. CASO N.º 22: “A CABEÇA DELE JÁ NÃO TRABALHAVA” VÍTIMAS: Salomão Bernardo Kissanga Sacaia “Mestre Deque”, 29 anos, natural de Luanda; Kleber Monteiro José Bernardo, 17 anos, natural de Malanje DATA: 27 de Janeiro de 2017 LOCAL: bairro do Cauelele, município de Cacuaco OCORRÊNCIA: “O meu filho foi baleado frente à minha casa. Ele tentou correr e acabou por morrer no quintal do vizinho, com um tiro na mão e outro nas costas”, denuncia António Bernardo. Por volta das 19h00, Mestre Deque foi encontrado sentado à porta de casa, em conversa com Kleber, que se encontrava de visita. Viera da Lunda-Norte, onde residia e estudava no Pré-Universitário do Dundo-Central. Ironicamente, de acordo com informações prestadas pelos vizinhos, o pai de Kleber é um oficial do SIC destacado na Lunda-Norte. “Os DNIC [SIC] eram três e apareceram outra vez e pediram ao meu irmão para acompanhá-los. Ele recusou e um dos agentes sacou da pistola e deu- -lhe o primeiro tiro no braço direito”, refere o irmão Pedro. Segundo os vizinhos, Kleber foi morto onde estava, sentado, com um tiro no pescoço. António Bernardo revisita os últimos anos de vida do filho: “Ele tinha trabalhado numa empresa de segurança, numa embaixada, mas depois ficou maluco. Todos sabiam que a cabeça dele já não trabalhava. A polícia sabia e nós tentámos tudo para o ajudar, mas não deu resultado”.
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Durante o mês de Janeiro, Mestre Deque foi detido duas vezes em casa. “Na primeira semana, a polícia da Esquadra do Bate Nu [bairro Uíge] veio buscá-lo. Passadas muitas horas, soltaram-no, afirmando que ele não tinha feito nada. No dia 15 de Janeiro levaram-no outra vez, para a Esquadra do Cauelele, sem qualquer justificação, mas libertaram-no.” Segundo o pai, a 20 de Janeiro, efectivos da Polícia Nacional foram detê-lo pela terceira vez, em casa, mas não o encontraram. “Os polícias vieram com o queixoso, que disse que tinha oferecido cerveja ao meu filho e a mais três amigos seus na rua e que [durante o convívio] estes lhe tinham tirado 40 mil kwanzas”, afirma o pai. “Depois de matarem o meu filho, o comandante [da Esquadra do Cauelele] veio pessoalmente tirar os dados, enquanto os seus homens recolhiam os corpos. Deu-me o seu número de telefone, nem sequer disse o seu nome, ninguém aqui conhece o seu nome.” “São mesmo os do SIC. Eles matam e depois os polícias da esquadra vêm recolher os corpos. Eles estão a matar por bairros. Iniciaram no Compão e agora passaram para o nosso bairro”, denuncia António Bernardo. “Se alguém que mata tem direito a julgamento, como é que o meu filho não teve? Temos medo de, se falarmos, também sermos mortos. Sabíamos que o rapaz mexia [praticava furtos]. Ficamos assim”, conclui. CASO N.º 23: A VIAGEM DA NOIVA VÍTIMA: Armando Florindo Culimbala, 28 anos, natural de Luanda (família do Bié) DATA: 26 de Janeiro de 2017 LOCAL: Campo da Concórdia, Kikolo, município de Cacuaco OCORRÊNCIA: Por volta das 10h00, o jovem Armando deslocou-se à estação de autocarros Macon para adquirir um bilhete de passagem para a sua noiva, Marisa, que deveria regressar ao Uíge, onde se encontrava a estudar. Às 11h00, testemunhas oculares viram-no a ser raptado diante da administração do Kikolo e a ser forçado a entrar numa viatura de marca Jeep, de cor preta, com vidros fumados. Levaram-no para parte incerta.
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“Por volta das 19h00, algumas pessoas vieram a nossa casa informar- -nos de que viram o corpo do Culimbala a ser atirado numa lixeira, no campo da Concórdia. Fomos lá e confirmámos”, explica o seu tio, Pascoal Xangele. “O meu sobrinho trabalhava há nove anos numa loja de frescos. Nunca foi bandido. Até aqui não temos informações correctas. Morreu inocente”, lamenta. CASO N.º 24: MÃE VÊ QUEM MATA O FILHO VÍTIMA: Kilandamoko João António “Ti Porém”, 26 anos DATA: 24 de Janeiro de 2017 LOCAL: bairro do Cauelele, município do Cacuaco OCORRÊNCIA: A 9 de Dezembro de 2016, Ti Porém regressou a casa, depois de ter cumprido dois anos e sete meses de uma pena de dez anos. Foi um dos beneficiários da Lei da Amnistia. De acordo com o depoimento da sua mãe, Esperança Mafuta “Makiesse”, Ti Porém tinha de ir três vezes por semana à Esquadra do Cauelele para assinar. Conseguiu emprego numa das subestações de electricidade de Cacuaco e obteve a redução dos dias em que deveria assinar para uma vez por semana. “No dia em que o mataram, a esquadra recusou-se a aceitar a assinatura dele. Disseram que os homens da investigação criminal ainda não tinham chegado e que já não seria necessário assinar mais”, revela a mãe. Ti Porém regressou a casa para pegar no seu material e ir ao serviço. Mal atravessou a porta, a mãe ouviu o filho a gritar “Makiesse, sai, vem ver esse senhor que está a matar-me!” “Fui ver o que se passava e vi um dos homens a disparar três tiros contra o meu filho. Um tiro na mão esquerda, outro na mão direita e o terceiro na cabeça”, testemunha Esperança Mafuta “Makiesse”. Makiesse identificou o assassino como sendo um dos mais famosos assassinos, “conhecido como Pula-Pula”, que opera a partir da Esquadra do IFA e tem jurisdição sobre a Esquadra do Cauelele.
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“O próprio governo achou que tinha de soltar o meu filho. Afinal era para matá-lo assim? Já não tenho o que dizer”, lamenta Makiesse. Entretanto, Makiesse diz-nos que o pai da vítima, de quem está separada há muitos anos, é agente do Serviço de Migração e Estrangeiros. “O meu ex-marido perguntou aos polícias por que mataram o seu filho, se o governo lhe deu amnistia.” “O próprio assassino, o Pula-Pula, apareceu em minha casa no óbito e foi ao funeral. Estava sempre rodeado de polícias”, denuncia a mãe. “É o governo que está a criar a bandidagem. Se matam quem já não quer roubar. O meu filho não fugiu. Disse aos assassinos que não fez nada”, desabafa. CASO N.º 25: A FOTO DELE ESTAVA NO TABLET VÍTIMA: Eliseu Amado “Young Back”, 26 anos, natural de Luanda DATA: 24 de Janeiro de 2017 LOCAL: rua Ngola Kiluanje, Kikolo, município de Cacuaco OCORRÊNCIA: Eliseu ganhou fama como líder do grupo B-12, dedicado a disputas físicas entre jovens do bairro. Também era conhecido como assaltante de telemóveis. A mãe, Teresa Fernando, conta que, dias antes da sua morte, Eliseu esteve detido durante dois dias na Esquadra do Cauelele, depois de, embriagado e envolvido numa altercação, ter atirado uma pedra e partido o vidro de um carro. “Eu tinha dinheiro, paguei o vidro e ele foi libertado”, conta. No dia da sua morte, por volta das 16h00, Eliseu passou pela casa da mãe, que lhe deixara dinheiro para jantar. “Estava desempregado, passava o dia na pracinha como ‘chamador dos táxis’ [a atrair clientes para os taxistas], mas ganhava pouco e eu apoiava-o”, explica a mãe, vendedeira de quissângua. Depois de ter recebido o dinheiro das mãos da irmã, Eliseu dirigiu-se à paragem de táxi, onde comprou “pincho”[carne no espeto], decidindo jantar ali mesmo.
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Testemunhas oculares afirmam que uma viatura de marca Hyundai i10 de cor preta parou diante do jovem e que um dos quatro ocupantes o chamou, perguntando-lhe se era o Young Back. “Eles [ocupantes da viatura] viram a foto do Young Back no tablet, disseram-lhe que era delinquente e obrigaram-no a subir para o carro, mas ele recusou”, descreve uma das testemunhas, que prefere não ser identificada, corroborada por uma segunda. “Os homens do SIC e da Polícia desceram do carro e levaram-no à força para um beco, onde o abateram”, acusa Fernanda. As mesmas testemunhas afirmam que os assassinos de Eliseu o “obrigaram a dar um passo em frente no beco. Ele recusou. Três tiros atingiram-lhe a cabeça e outros três, as costas”. “Meia hora depois foram matar o primo dele”, Pai Kwan, denuncia a mãe. CASO N.º 26: A EMBOSCADA DA GASOLINA VÍTIMA: Hernâni Domingos “Pai Kwan”, 19 anos, natural de Luanda DATA: 24 de Janeiro de 2017 LOCAL: rua Ngola Kiluanje, Kikolo, município de Cacuaco OCORRÊNCIA: Com a morte da mãe, em 2015, com quem vivia, Hernâni Domingos — então um adolescente de 17 anos — envolveu-se com um grupo. “Conversei com ele para seguir o bom caminho, mas não me ouviu. Afastou-se de mim”, conta o seu primo Fernando. Semanas após essa referida conversa, Pai Kwan foi detido por suspeita de participação num assalto à mão armada. Passou um ano e meio na Comarca de Luanda. O pai, Alberto Pinto, interveio, chamando-o à sua guarda e arranjando- -lhe emprego como mecânico. “Como já tinha ficha na Esquadra Policial do Bom Pastor, quando estes receberam ordens para apagá-los a todos, ele também não escapou”, denuncia o primo.
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No dia do assassinato, depois das 16h00, os quatro carrascos dirigiram-se à oficina de automóveis Cambota (junto ao Mercado das Peças), onde Hernâni trabalhava, fazendo-se transportar numa viatura Hyundai (i10 ou i20, segundo os testemunhos) de cor preta. Conversaram com o supervisor e pediram-lhe que enviasse o Pai Kwan para lhes comprar gasolina, com um bidão, nas bombas de combustível mais próximas. Mal o jovem saiu, os ocupantes da referida viatura abandonaram a oficina, conforme depoimentos dos colegas de Pai Kwan. Os operacionais emboscaram Young Back enquanto este aguardava por um moto-táxi junto à Igreja Universal do Reino de Deus, para regressar à oficina já abastecido da gasolina. De forma despachada, os perseguidores “chamaram o Young Back [para junto da viatura], mostraram-lhe a fotografia dele num tablet e disseram-lhe, ‘você sabe’”, conta uma das testemunhas presentes no local. Os homens ordenaram a Young Back que caminhasse e, quando este deu as costas aos seus interlocutores, “acabaram com ele com dois tiros na cabeça e um das costas, do lado esquerdo”, relatam outras testemunhas. “O meu filho já morreu. Já não há nada a fazer ou a dizer. O país tem o seu dono e se ele decidiu [que as pessoas devem ser executadas] assim...”, resigna-se Alberto Pinto, desligando o telefone. CASO N.º 27: DE COLABORADOR A VÍTIMA VÍTIMA: Lucas Gonçalves “Tilson”, 29 anos, natural do Huambo DATA: 21 de Janeiro de 2017 LOCAL: bairro do Compão, Kikolo, município de Cacuaco OCORRÊNCIA: Tilson tinha fama de “batuqueiro” (ladrão de viaturas) e também era conhecido como colaborador do SIC, segundo familiares e amigos. O jovem tinha acabado de regressar do hospital, para onde levara o seu irmão Emílio Chicomo, que se encontrava doente. “Apareceu em casa um
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amigo dele e, enquanto conversavam, recebeu um telefonema. Ouvimo-la a dizer ‘yá wi [indivíduo] estou a vir”, conta a irmã Isabel Cardoso. “Afinal, já estavam à espera dele no beco à saída da nossa casa. Mal ele saiu, com o filho de cinco anos a segurar-lhe na mão, ouvimos tiros e a criança a gritar. Sabíamos que era ele e ficámos com medo.” Segundo os vizinhos, que se encontravam a beber na cantina adjacente ao local onde o jovem foi fuzilado, os algozes despacharam Tilson enquanto ele segurava o filho pela mão, que gritava, aterrorizado. Isabel Cardoso confirma os dados da vizinhança, segundo os quais o seu irmão era colaborador do SIC. “Para não o acusarem de ter cometido crimes, ele colaborava indicando os delinquentes do bairro”, explica. “Atingiram-no com dois tiros na cabeça e três no peito, do lado esquerdo. Os vizinhos acorreram para o socorrer, mas ele morreu no caminho”, conta. Isabel Cardoso descreve o comportamento da polícia e da investigação criminal, após a morte do irmão, como sendo estranho. “Vieram ao local e informaram-nos de que não sabiam de nada, e que quem telefonou ao meu irmão foi quem o matou. Depois, nunca mais disseram nada.” Para agravar a tragédia da família, ao saber do assassinato do irmão, de quem era próximo, Emílio Chicomo “teve um ataque, o coração começou a bater muito e morreu no dia seguinte”, lamenta a irmã. CASO N.º 28: O ÚLTIMO CHARRO VÍTIMAS: Adelino Alfredo Cambeu; Miguel Arcanjo, 21 anos, natural do Huambo; Severino Condengo da Silva “Yuri Pi”, 19 anos, natural de Luanda DATA: 20 de Janeiro de 2017 LOCAL: bairro do Compão, município de Cacuaco OCORRÊNCIA: Miguel preparava-se para jantar, por volta das 19h00, quando um dos amigos, Adelino Cambeu, lhe bateu à porta para irem fumar um charro no beco. Juntaram-se-lhes Yuri Pi e Cassule. O último, segundo consta dos depoimentos recolhidos no local, tinha ido devolver uma caixa de fósforos emprestada quando se cruzou com o grupo que mataria os seus amigos.
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Adelino Cambeu encostara-se ao muro para urinar e foi o primeiro a ser atingido com dois tiros na cabeça. A seguir foi o Miguel… Cassule conta que ouviu Yuri a implorar para que não o matassem, depois de ter sido atingido no peito. Em resposta, um dos matadores atingiu-o com mais tiros. Ao todo, segundo a irmã Marta Silva, Yuri foi morto com cinco tiros no peito e na região abdominal. Por volta das 22h00, o Serviço de Investigação Criminal (SIC) procedeu à recolha dos corpos e chamou as famílias para identificação das vítimas. “Eu fui falar com eles para identificar o meu irmão e disseram-me para ir embora porque já tinham ‘os nomes desses delinquentes’”, conta Marta. “O SIC deixou um papel na morgue [do Josina Machel], com os nomes dos rapazes que abateram na nossa zona, nesse dia. O nome do Yuri não constava da lista que vimos. O investigador do SIC que encontrámos lá disse-nos: ‘Afinal o cobarde tinha um nome diferente?’ Foi assim que percebemos que eles matam à toa. Na lista estavam os nomes do Bebu, do Miguel, do Adelino e mais dois [desconhecidos].” Um dos operacionais do SIC que se encontravam no local, e que se conhece apenas pelo nome de Chalana, perguntou à família: “Estão a reclamar porquê? O vosso filho é gatuno”, cita a irmã. Para afastar Yuri da má vida, a mãe tinha-o entregado aos cuidados da sua irmã, residente no bairro do Paraíso. No dia da sua morte, “a tia Justina [com quem vivia] disse-lhe para não sair de casa porque estava com o coração apertado. O Yuri tinha recebido um telefonema para ir ao bairro e saiu às 6h00”, conta Marta. “Passou o dia todo connosco. Por volta das 18h00, o meu primo Emílio veio e sentámo-nos em família. Pedimos-lhe para arranjar um emprego para o Yuri na empresa onde trabalha. Ele indicou quais eram os documentos necessários”, explica a irmã. A seguir à conversa, Yuri foi tomar banho e pouco depois surgiu o seu amigo Adelino, que o convidou para sair. Minutos mais tarde (entre as 19h00 e 19h10), a família ouviu os tiros e o “primo Emílio regressou com as mãos na cabeça. O Yuri estava morto, ao lado do portão dele”, recorda Marta. Em Dezembro passado, Yuri esteve detido na Esquadra do Cauelele por suspeita de tentativa de assalto à residência de um vizinho. “O Ti Bula [vizinho] veio à nossa casa buscar o Yuri. Foram à Esquadra do Cauelele. Ele queria limpar o seu nome e foi detido porque era inocente do crime que o acusavam”, conta.
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O investigador, de forma inusitada, pediu à família de Yuri que encontrasse a queixosa, uma vizinha que vira a tentativa de roubo e identificou três jovens, mas que entretanto saíra do bairro. Marta da Silva explica que um dos jovens, já detido, indicou o nome do seu irmão “porque os amigos dele o ameaçaram de que matariam o seu pai se ele os denunciasse e por causa da tortura da polícia”. Durante uma semana, a família procurou pela vizinha noutros bairros, seguindo pistas de vizinhos e familiares, para provar a inocência de Yuri. Quando a encontraram, levaram-na até à esquadra, onde, alegadamente, ela revelou que também estava sob a ameaça de outros dois jovens e inocentou Yuri. “A polícia disse-nos então que, como o meu irmão era inocente, nós tínhamos de pagar 50 mil kwanzas para ele ser libertado, senão iriam encaminhá-lo para a Comarca Central de Luanda”, revela Marta Silva. Após pagamento, Yuri foi libertado, a 17 de Dezembro de 2016. “Só ouvia dizer que o meu irmão ‘mexia’ [assaltava]. Mas esta foi a única vez em que ele esteve detido”, conclui a irmã. Sobre o Miguel, vários vizinhos testemunharam que era um jovem muito calmo, cujo crime maior era o hábito de fumar liamba. CASO N.º 29: O FILHO DO TENENTE-CORONEL VÍTIMA: Avelino Zacarias António “Bebu”, 20 anos, natural de Luanda (pai do Uíge, mãe do Huambo) DATA: 20 de Janeiro de 2017 LOCAL: bairro do Compão, município de Cacuaco OCORRÊNCIA: Em Setembro de 2016, Avelino “Bebu” foi detido, na companhia de dois amigos, quando se encontravam a beber cervejas numa pracinha perto de casa. Zeca assume que o irmão fazia parte do gangue Bate à Toa. O caso a propósito do qual foi detido é revelador do estado da investigação criminal, conforme explica o pai. O tenente-coronel José António acompanhou o filho
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durante os quatro meses em que este esteve detido, com breves passagens na Esquadra do Cauelele e no Comando Municipal de Cacuaco, bem como na Penitenciária de Kakila, onde cumpriu pena. “O investigador do Serviço de Investigação Criminal que estava com o processo exigiu-me um pagamento de 270 mil kwanzas pela libertação do meu filho. Vendi a minha viatura, paguei ao investigador e ele recebeu a soltura em Dezembro”, conta. Dias depois, “entre 10 e 15 de Dezembro, se não me engano, um indivíduo das FAA, fardado, veio a minha casa com os homens do SIC e detiveram novamente o meu filho. Acompanhei-o até à sede do SIC, onde me informaram que era apenas para fazer o controlo”. Bebu ficou lá detido seis dias e recebeu soltura. Na semana seguinte, nova visita do SIC, desta vez por um “agente vizinho identificado como Zé”, que o deteve novamente e aos outros dois amigos. “Os três passaram mais seis dias nas celas do SIC, e o agente Zé cobrou-nos mais 30 mil kwanzas pela libertação do miúdo”, informa o pai. Segundo o tenente-coronel António, o seu filho raramente saía de casa após a sua soltura em Dezembro e as duas semanas subsequentes que passou nas celas do SIC. Foi nesse ambiente doméstico que os matadores o encontraram, depois das 18h00, sentado frente ao portão de casa, a brincar com os sobrinhos que o ladeavam. Estava com Joel, de sete anos, que brincava com o seu telefone, e o Gelson, de cinco anos. Os atacantes circulavam em duas viaturas Hyundai i10 ou i20. As testemunhas têm dificuldades em distinguir entre os dois modelos. “Um deles, que vinha a caminhar, perguntou ao meu filho se o seu telefone tinha saldo e este respondeu que não. Dois indivíduos desceram da viatura e empurraram-no”, adianta o pai. Testemunhas oculares indicam que os ocupantes da viatura tinham um iPad para confirmar a identidade do alvo através de fotografias, tendo-lhe previamente perguntado se era o Bebu. “Eu estava no quintal e vi dois indivíduos a agarrarem o meu irmão. Ele perguntou o ‘que eu fiz?’” As mesmas testemunhas que observaram a partir da rua confirmam que a seguir os assassinos o obrigaram a voltar-se de costas para o carrasco, o que ele recusou. Foi atingido primeiro no abdómen, e depois levou o tiro fatal na cabeça. As crianças assistiram a tudo. Ao aproximar-se do corpo do irmão, os executores dispararam duas vezes contra Zeca. “Só não morri por sorte”, refere.
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“Essa é a vida do MPLA. Estamos na escravatura. Matam-se as pessoas como se fossem cabritos e não temos onde nos queixarmos”, lamenta o tenente-coronel. O pai enlutado acusa directamente o Serviço de Investigação Criminal (SIC) e a Polícia Nacional de serem responsáveis pela onda de assassinatos que também ceifou o seu filho. “Bandidos não matam assim: tantos no mesmo dia, com listas, três ou quatro carros com vidros fumados? É impossível. O meu sobrinho é inspector da Polícia Nacional, e fizemos diligências junto do SIC. Como são eles próprios a matar, não investigam. Não dão valor, estão a matar cabritos”, vocifera o veterano de guerra. O tenente-coronel conta que o grupo que matou o seu filho procedeu ao abate de outros jovens minutos depois, na vizinhança. “Vivemos junto a uma unidade da UPIP [Unidade de Protecção de Individualidades Protocolares] e estes não se envolveram porque sabem que são os colegas que estão a matar”, denuncia. “Estou no MPLA há muito tempo. O colono e a UNITA assassinavam às escondidas. O MPLA mata abertamente. Nem cabrito ou galinha se mata assim. Sinto muita dor”, afirma. Durante dois anos, o tenente-coronel comandou o Batalhão 106 em missões na República Democrática do Congo. Esteve antes na República do Congo e recusou cumprir uma terceira missão na Guiné-Bissau, o que lhe valeu o corte dos seus salários.
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CASO N.º 30: DROGA! O TIO ENFORCA-SE TAMBÉM VÍTIMA: Joaquim Diogo Bandessa, 42 anos, natural de Malanje DATA: 6 de Janeiro de 2017 LOCAL: bairro Cambiri, município de Viana OCORRÊNCIA: Bandessa encontrava-se em casa de um vizinho quando viu um grupo de indivíduos a levarem a sua motorizada, que se encontrava estacionada lá fora. Testemunhas oculares relatam que “alguns deles estavam vestidos à civil, mas um deles tinha o colete de identificação do SIC”. Em nome da família da vítima, António Patrício Diogo, conta que “um dos indivíduos ofendeu a minha mãe, e o meu irmão tentou reagir. O outro deu-lhe um tiro nas costas e ele correu para a casa de um amigo a pedir socorro. À porta do vizinho, deram-lhe mais três tiros nas costas”. Segundo o seu depoimento, “depois de morto, em menos de cinco minutos, os polícias já lá estavam para recolher o corpo. Tudo aquilo parecia combinado, e a motorizada foi só uma emboscada”. António Patrício Diogo afirma que o seu irmão Bandessa esteve detido uma vez por dez dias, em 2010, na Esquadra do Mirú, por venda de estupefacientes. “No dia em que ele foi baleado, ainda fez vendas de estupefacientes”, revela o irmão. “No Comando Municipal de Viana, o meu tio Martins Diogo Salomão foi informado de que o seu sobrinho [Bandessa] tinha sido abatido pelo SIC, por envolvimento no tráfico de drogas. Semanas depois [7 de Fevereiro], o meu tio enforcou-se”, relata António Diogo.
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CASO N.º 31: CAÇA AO MANINHO — PROCURADO PARA SER MORTO VÍTIMA: Basílio Canjengo “Na Cela”, 20 anos DATA: 16 de Dezembro de 2016 LOCAL: bairro Mulenvos de Cima, município de Viana OCORRÊNCIA: “O meu filho está a ser procurado pela DNIC [actual SIC] para ser assassinado”, denuncia Angelina Cahundo, mãe de Na Cela. “No dia 16 de Dezembro, a DNIC [SIC] veio a minha casa. Veio um clarinho, tipo mulato, alto, que é quem está a acabar com os jovens aqui. Chamamlhe de Van Damme. Tem uma cicatriz perto da boca, até à orelha esquerda. É assim forte”, conta. Segundo a senhora, o Van Damme fez-se acompanhar de um colaborador conhecido por Jojó. “Este é que fica junto da polícia a indicar os jovens que devem ser abatidos”, acrescenta. “Chegaram às 5h00. Bateram à porta e eu abri. Chamaram a minha filha e perguntaram pelo irmão, e ela disse-lhes que o Na Cela não estava em casa. Revistaram o quarto dele e não viram uma agulha.” “O Van Damme olhou para o meu filho Gabriel, de 8 anos, e disse-lhe que, se o irmão estivesse em casa, seria o último dia dele. Passaram mais oito vezes, até ao dia 23 de Dezembro”, conta. Para além dessas visitas, Van Damme e o seu colaborador passaram a rondar a bancada onde a mãe vende roupa em segunda mão e onde Na Cela muitas vezes a ajudava. “O vizinho Simão Catequele é quem fez a lista dos jovens para serem abatidos. O filho dele chama-se Cinquentado. Eles recebem sempre os homens da DNIC [SIC], os assassinos e os polícias fardados na casa deles, onde bebem e combinam o trabalho”, denuncia Angelina Cahundo. “Quando o senhor Catequele fez a lista com os filhos, estava um jovem presente que viu os nomes e avisou alguns dos amigos. Passadas duas horas, a polícia foi buscar dois dos que estavam na lista, o Jambito e o Simão [Caso n.º 36].”
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Pelo que a mãe sabe, Na Cela esteve detido uma vez, no ano passado. “Vinha do serviço, biscate de pedreiro, bêbado, e levaram-no para a esquadra. Passou lá uma noite. A polícia cobrou-me 20 mil kwanzas e libertaram-no”, explica. “O meu filho bebe muito e fuma liamba, mas não rouba. Sou eu quem o sustenta. Ele também é cabeleireiro e frequenta a igreja”, acrescenta.
CASO N.º 32: EXECUTADO NO VELÓRIO DO AMIGO VÍTIMA: Anderson Francisco Avelino Agostinho “Da Saia”, 22 anos, natural de Luanda DATA: 5 de Dezembro de 2016 LOCAL: bairro da Bananeira, município de Cacuaco OCORRÊNCIA: Na noite de 5 de dezembro, Anderson foi ao velório de um amigo dar os seus pêsames. Juntou-se aos amigos, que se encontravam sentados na rua, à porta e junto à casa. Por volta das 22h00, segundo depoimento do irmão Carlos Agostinho, um jovem chamou o Da Saia para uma conversa a sós e este afastou-se do círculo de amigos. Foi atraído para um sítio mais isolado, onde encontrou a morte. “Estavam uns indivíduos a beber, à civil, e um deles atingiu o meu irmão com dois tiros na cabeça e outro no peito”. “O Garantia ‘Bad Langa’ testemunhou e identificou os assassinos como sendo operacionais da DNIC [SIC]. Ele conhecia-os bem e informou-nos. Em finais de Fevereiro, os indivíduos que abateram o meu irmão também eliminaram o Garantia”, revela Carlos. Em liberdade condicional, Da Saia dirigia-se duas vezes por semana à Esquadra da Bananeira para assinar. Tinha sido libertado em Outubro passado, após sete meses de detenção “por ter espancado e aleijado um moço”, conforme depoimento do irmão. Em 2014, passou nove meses detido também “por luta”.
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“No dia da sua morte, tinha estado na esquadra para assinar, e os investigadores disseram-lhe que era a última vez que assinava. Ameaçavam-no sempre que o matariam”, revela Carlos. Depois do seu assassinato, a família recebeu a notícia de que Da Saia havia sido seleccionado para trabalhar na fábrica de detergentes Madar. “Lutámos tanto para lhe arranjar um emprego. Infelizmente, não fomos a tempo”, lamenta o irmão. CASO N.º 33: OS IRMÃOS DOMINGO E O MATADOR DE NADA VÍTIMAS: Irmãos António Domingos “Tony”, 20 anos, e Ernesto Sapalo Domingos “René”, 18 anos, naturais do Huambo; Mais dois jovens identificados apenas como sendo residentes do município do Cazenga DATA: 18 de Novembro de 2016 LOCAL: “Campo da Morte”, bairro 6, município de Viana OCORRÊNCIA: Três dias antes, a 15 de Novembro, por volta das 22h00, os irmãos confraternizavam na rua com os amigos, quando foram detidos. “Os vizinhos testemunharam a detenção dos meus irmãos por elementos do SIC, que vestiam coletes [de identificação] e se faziam transportar num Toyota Land-Cruiser branco”, revela o irmão mais velho, Alberto Domingos. Logo após a detenção, Alberto passou pelas esquadras de Viana à procura dos seus entes queridos, sem sucesso. “Fomos à Esquadra do Mirú e disseram-nos para irmos ao Comando Municipal de Viana. Chegados lá, disseram-nos que não sabiam de nada”, recorda. Alberto estava a trabalhar quando, por volta das 14h30, recebeu telefonemas de vizinhos a informarem-no de que os seus irmãos tinham sido fuzilados minutos antes no ora conhecido “Campo da Morte”, Correu para lá. “Como somos conhecidos no bairro, as testemunhas informaram-me de que os meus irmãos tinham sido levados para o campo num Toyota
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Land-Cruiser branco, junto com outros dois rapazes. Havia quatro agentes vestidos com os coletes azuis da DNIC [SIC]. Mandaram-nos descer um por um da viatura, com os olhos vendados, e obrigaram-nos a correr”, conta. “Eram abatidos mal desciam do carro, com todo mundo a ver, mesmo ali junto à escola e com o sol aberto. Estavam de tronco nu. O Tony foi atingido com dois tiros. Um na cabeça e outro nas costas. O Ernesto virou-se para ver os agressores e levou quatro tiros no abdómen”, descreve o irmão. Os dois desconhecidos foram assassinados com dois tiros nas costas cada um. Em menos de 15 minutos, chegaram ao local as viaturas de recolha de cadáveres, com efectivos da Polícia Nacional. Estes ali se mantiveram até às 19h00, impedindo que os familiares se aproximassem das vítimas enquanto prolongavam a exibição dos mortos. Alberto Domingos refere que o chefe de missão dos assassinos, e um dos principais executores, é bem conhecido no bairro. “Ele é afamado como o De Nada. Primeiro, era colaborador do SIC, agora é agente de campo colocado na Esquadra do Mirú”, revela. Os irmãos ficaram órfãos de pai muito cedo e, há três anos, perderam a mãe. “Os meus irmãos não eram de mexer [roubar]. Eu cuidava deles. Era eu quem os sustentava”, afirma, acrescentando que “nunca tiveram problemas com a justiça”. “Se calhar foram apenas confundidos”, remata, como se se tratasse apenas de um caso de má-sorte. Testemunhos presenciais corroboram a versão apresentada por Alberto Domingos.
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CASO N.º 34: INJECÇÃO DE ÁGUA DE BATERIA? VÍTIMAS: Hilário Caetano Muzumbi “Mala de Dinheiro”, 20 anos, natural do Kwanza-Norte; mais quatro indivíduos não identificados DATA: 16 de Novembro de 2016 LOCAL: Esquadra da Ponte Partida, município de Viana OCORRÊNCIA: Nelson Silveira afirma que o sobrinho se encontrava em Luanda há quatro dias, com o propósito de levar a esposa para a sua terra natal, para onde se mudara quatro meses antes. Saiu com um grupo de amigos, que faziam parte de um gangue com um nome bastante ofensivo e vulgar [omitido]. Um dos membros, conta o tio, esqueceu-se da mochila no táxi [candongueiro] onde circulavam. Na mochila guardava uma arma de fogo. O taxista entregou a mochila a agentes da Polícia Nacional, que aguardaram pelo proprietário. Pouco depois, por volta das 17h00, quando regressaram para recuperar a mochila, os cinco amigos foram detidos. “O fim deles foi [assassinado] na Esquadra. Os outros ficaram [foram mortos] no terreno e foram deitados no dia seguinte em locais diferentes. O meu sobrinho e mais um foram deitados na zona do Morro da Areia, outros dois foram atirados juntos à Escola do Mobel (bairro Mulenvos de Cima), próximo das suas residências, e o quinto foi morto no dia seguinte”, conta Nelson Silveira. “Tiraram os telefones dos rapazes e ligaram anonimamente a todos os familiares, informando-os da localização dos corpos.” Nelson Silveira explica que o irmão da mãe de Hilário Caetano, um alto oficial da Polícia Nacional destacado em Malanje [nome e cargo propositadamente omitidos] se deslocou a Luanda para apurar as circunstâncias e a causa da morte do sobrinho. “O tio mandou fazer uma autópsia ao sobrinho, conversou directamente com os homens do hospital e soube então que o rapaz foi injectado com água de bateria”, revela Nelson Silveira.
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O interlocutor não esconde que o sobrinho se havia refugiado no Kwanza-Norte porque estava a ser procurado pela Polícia Nacional e temia pela vida. Os seus amigos também passaram algum tempo no Kwanza-Norte, mas acabaram por regressar a Luanda. Hilário “Mala de Dinheiro” tinha marcado o regresso ao Kwanza-Norte para o dia em que foi enterrado. CASO N.º 35: A FESTA DE ANIVERSÁRIO DO KUDURISTA VÍTIMA: Dadi Mwanza, 24 anos, natural de Luanda DATA: 23 de Outubro de 2016 LOCAL: bairro Vila da Mata, município do Cazenga OCORRÊNCIA: Dadi Mwanza passou o dia em casa a lavar a sua roupa e a preparar a sua festa de aniversário, que seria na rua, no dia seguinte, conta o irmão Major. O jovem era cantor de Kuduro. Por volta das 14h00, entreteve-se a conversar com a mãe. Pouco antes das 18h00, tomou banho e saiu à rua. De acordo com Major Mwanza, a 50 metros de casa, num beco, foi fuzilado com um tiro na testa e dois nas costas. O seu corpo apenas foi removido pelo SIC no dia seguinte, às 7h00. “Fui à unidade do IFA [Comando da III Divisão da Polícia Nacional, no Cazenga] para prestar depoimento e obter uma declaração, para podermos tirar o corpo da morgue para o enterro, mas o investigador não anotou dado nenhum nem disse nada. Na morgue, a equipa do SIC autorizou-nos a retirar o cadáver, sem pedir qualquer informação à família ou dizer mais alguma coisa”, lamenta Major. “Há rumores de que o Pula-Pula [conhecido executor colocado esquadra do IFA] esteve a rondar o bairro, segundo pessoas que o conhecem bem”, nota o irmão. Dadi Mwanza esteve detido por uma semana em Maio de 2016, na esquadra policial do IFA [IFA é o nome dos camiões da antiga Alemanha do Leste, que eram montados numa fábrica ali localizada], por suspeita de
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assalto a uma cantina, mas como não tinha processo foi libertado. Antes, estivera detido duas vezes no IFA: em 2015, altura em que a família pagou cem mil kwanzas [então equivalentes a mil dólares]; em 2016, ocasião em que os investigadores locais se ajustaram à desvalorização da moeda e cobraram um valor equivalente pela libertação. O kudurista também foi detido por um breve período na unidade da Terra Vermelha — conhecida como a esquadra descartável da Terra Vermelha — sempre por suspeita de actos delinquentes. “No kuduro do bairro não faltam bandidagem e lutas. Isso não posso negar sobre o meu irmão”, diz Major, quando questionado sobre o passado de Dadi Mwanza. CASO N.º 36: OS SOBREVIVENTES E A LISTA DOS ALVOS VÍTIMAS: Samuel Jamba “Jambito”, 23 anos, natural de Benguela (família do Huambo); Simão Celestino, 24 anos, natural de Benguela DATA: 10 de Outubro de 2016 LOCAL: bairro Mulenvos de Cima, município de Viana OCORRÊNCIA: “Eu estava em casa quando um jovem bateu à porta e perguntou por mim. Ele disse-me ‘não tenhas medo, só queria conhecer-te’”, recorda Jambito Minutos depois, dois agentes da Polícia Nacional apareceram em sua casa com o referido jovem e detiveram-no. Levaram-no para a Esquadra da Ponte Partida, “onde me torturaram com uma catana, nas costas, até ficar despelado, tipo frango”, denuncia Jambito. “O tal jovem foi quem mais me torturou. Acusaram-me de ter assaltado a casa de um vizinho, coronel na reserva, e de ter roubado saldo [cartões de recarga de telefone], documentos e passadores militares ”, conta. No dia seguinte, o seu amigo Simão Celestino também foi detido pelo mesmo “crime”, que ambos afirmam não ter cometido. E passaram mais dois dias a serem torturados com tábuas e mangueiras. Depois de terem sido libertados, a partir da cela do Comando Municipal da Polícia Nacional, em Viana, Jambito teve a coragem de apresentar queixa
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contra os seus torturadores. “Deram-me uma soltura sem número de processo, sem nada. O oficial que recebeu a queixa disse apenas que iriam punir os torturadores e nunca mais me disseram nada.” “Eu nunca estive detido, nunca tive problemas com a lei, trabalho como moto-taxista para ganhar o meu sustento”, revela o jovem. Esse caso é tanto mais extraordinário quanto nos revela a mãe de Jambito, corroborada por outras mães da vizinhança. Aparentemente, o motivo da detenção resumia-se à inclusão dos seus nomes numa lista elaborada por um vizinho, identificado como Simão Catequele [vendedor de cartões de recarga de telefone], e seus filhos, para a “limpeza” de supostos marginais. E, no caso de Jambito, havia por trás um enredo passional. “Os agentes [da Polícia Nacional] primeiro perguntaram-me, como mãe, se o meu filho estava a namorar com aquela moça [nome omitido]. Começaram a espancá-lo aqui em casa, na minha presença”, diz Joaquina Nana. “Perguntei por que estavam a bater no meu filho. E disseram-me que ele era bandido e fumador de liamba. Eu disse-lhes: ‘vocês são da lei, têm de explicar o que a pessoa cometeu. Revistaram a casa e não encontraram nada”, continua. A mãe argumenta que, se fosse gatuno, o seu filho não estaria, naquele dia, “a almoçar pão com lambula [sardinha], que o vizinho lhe deu porque não havia comida em casa. Se tivesse dinheiro do roubo não comeria do dinheiro que roubou?” Após a soltura do filho, Joaquina Nana levou-o à casa de Simão Catequele para mostrar o resultado da sua denúncia. “O Catequele respondeu-me apenas que não foi ele quem bateu no meu filho. Eu disse-lhe que ‘você é quem lhe bateu porque foi você quem fez a lista’”, afirma Joaquina Nana. “O Ti Simão [Catequele] explicou-me que houve um mal-entendido da Polícia, que houve engano no nome que estava na lista dele. Sinto uma grande dor no peito. Não fiz nada”, desabafa Jambito. O modo como a vizinhança teve conhecimento desta lista de alvos está explicado em detalhe no Caso n.º 31.
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CASO N.º 37: UM CASO PASSIONAL VÍTIMA: Fabião Pedro Mandume “Fábio”, 27 anos DATA: 20 de Setembro de 2016 LOCAL: bairro da Baixa de Kassanje, município de Viana OCORRÊNCIA: Fábio nem sequer pôde curar a sarna contraída na Penitenciária de Viana, de onde fora libertado três semanas antes, após sete meses em prisão preventiva. “Ele praticamente não saía de casa por causa da sarna, por isso o Mendes veio matá-lo em casa”, denuncia Eusébio Pedro “Zeca”, irmão da vítima. A mãe da vítima, Beatriz Pedro Watele, contextualiza a detenção inicial. De acordo com o seu testemunho, o filho e o seu algoz eram rivais, supostamente por causa de uma mulher. “Como o meu filho não tinha feito nada, o Mendes da DNIC [SIC], da esquadra Móvel da Baixa de Kassanje, inventou um crime, veio buscá-lo a casa e deteve-o na sua esquadra. No dia seguinte transferiu-o para a Esquadra da Boa Fé.” O jovem foi então encaminhado para a Esquadra do Kapalanca, que o remeteu para o Estabelecimento Prisional de Viana, onde passou grande parte do tempo da detenção preventiva. “[Depois de Fábio ter sido libertado] o Mendes foi a minha casa à meia-noite, para matar o meu filho. O meu filho ouviu um barulho no quintal e saiu do quarto [separado da casa grande] para ver o que se passava. Depois, ouvimos os tiros e o meu filho a gritar”, conta Beatriz Watele. “’Bia [a mãe], olha, o Mendes quer matar-me! Bia, o Mendes está a matar-me!”, foi assim que encontrei o meu filho já no chão, a gritar junto à porta do quarto dele”, descreve a mãe. Segundo o irmão Zeca, que se encontrava presente, Fábio foi atingido com um tiro no abdómen e outro no pulso esquerdo. “Depois de ter feito os disparos, o Mendes fugiu. Mas o meu irmão ainda estava vivo e disse-nos que foi o Mendes”, reitera o irmão. “No bairro, sabemos todos que o Mendes é da DNIC [SIC]. Ele detinha muitos jovens aqui, levava-os para a Esquadra Móvel [da Baixa de Kassanje]. A polícia tinha conhecimento das operações dele”, enfatiza Zeca.
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Beatriz Watele realça que, antes de levarem o filho para o Hospital Maria Pia, onde acabou por falecer no bloco operatório, “passámos pela Esquadra Móvel para, informar sobre o caso. A polícia limitou-se a tirar fotos ao meu filho. Não fizeram mais nada. O caso ficou assim”. A família conta que, após o crime, o assassino enviou uma mensagem (SMS) a uma amiga comum, sua e de Fábio, informando-a de que o tinha matado. “De manhã, a Massada veio a minha casa com uma amiga, e perguntou pelo Fábio. Ficaram horrorizadas quando a minha irmã lhes confirmou a verdade”, revela Zeca. CASO N.º 38: A ÚLTIMA CHAMADA VÍTIMA: Bernardo Domingos Futa, 31 anos, natural de Malanje DATA: 11 de Setembro de 2016 LOCAL: Pracinha do Salalé, bairro da Estalagem, Viana OCORRÊNCIA: Mário Futa conta-nos que, por volta das 9h00, o seu irmão Bernardo recebeu três telefonemas para ir a um encontro. Dada a insistência, acedeu à última chamada e deslocou-se à pracinha, perto de casa. Segundo depoimentos dos vizinhos, foi de imediato emboscado por vários homens à paisana. Estes homens, em número não determinado, levaram consigo um patrulheiro da Polícia Nacional, que deixaram estacionado a algumas ruas do local da ocorrência. Fizeram vários disparos para o ar, de modo a afugentar a população, e, ali mesmo, fuzilaram Bernardo Futa com dois tiros no abdómen e um terceiro no coração. “O meu irmão cumpriu uma pena de oito anos por delinquência, e fora libertado em 2012. Desde então trabalhava como cobrador de táxi e fazia serviço de mototáxi. Não teve mais problemas com a lei”, refere Mário Futa. “Havia rondas à volta de casa, nos locais de consumo de bebidas alcoólicas. Os agentes perguntavam sempre por ele e por outros, que depois fugiram. O meu irmão teve de sair do bairro por um mês, em Março, e regressou em Abril”, conclui.
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CASO N.º 39: A FESTA ACABOU VÍTIMAS: Aspirante Silveiro Correia “Marcelo”, 27 anos; Jibóia DATA: 10 de Setembro de 2016 LOCAL: Rua Direita do Sucupira, bairro do Grafanil, município de Viana OCORRÊNCIA: Marcelo era um conhecido organizador de festas. Conforme testemunhas presentes no local, no dia em que foi assassinado, um grupo do SIC interrompeu a festa por volta das 22h00, deteve-o e levou-o para fora do recinto. Na rua, atingiram-no com um tiro no testa e outro tiro no peito. O seu amigo Jibóia foi alvejado com três tiros no peito e outro no pescoço. Segundo as testemunhas, essa operação foi comandada pelo agente Flávio Tavares, conhecido como Pula-Pula. CASO N.º 40: FUZILADOS NA CAMA VÍTIMAS: Francisco Nadinho “Kobe”, 25 anos; José Calosanse “Zé Badalho”, 23 anos; Domingos Paulo, 18 anos, todos naturais de Benguela. DATA: 9 de Setembro de 2016 LOCAL: bairro 6, município de Viana OCORRÊNCIA: Os primos Kobe e Zé Badalho, assim como o amigo Domingos, encontravam-se a dormir num quarto de chapas, no quintal do tio Miguel Canganjo, onde residiam há vários meses. “Um dos agentes ficou à minha porta e disse-nos que se alguém tentasse sair de casa seria morto. Eu, a minha esposa e as crianças ficámos ali calados até eles [o grupo operacional] terminarem a missão”, relata Miguel Canganjo. O relógio marcava 4h20 da madrugada. De acordo com o tio, “os agentes tiraram uma chapa do quarto dos miúdos, um deles entrou, disparou um tiro e abriu a porta para os outros”.
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“O Zé Badalho foi morto com um tiro na cabeça e outro no abdómen, na cama onde dormia. O Kobe morreu com dois tiros na cabeça e um nas costas. Mexeu-se e alvejaram-no nas costas, ali mesmo, na cama”, revela o tio. Já o amigo, Domingos Paulo, “morreu com dois tiros, um na cabeça e outro no peito. Levantou-se da cama e caiu ao lado da porta”. Minutos depois da retirada dos assassinos, uma patrulha da Polícia Nacional fez-se presente no local do crime. “Um primeiro subchefe, que liderava a patrulha, veio ter comigo e mandou-me ficar quieto, porque o trabalho tinha sido feito pela DNIC [SIC]”, revela Miguel Canganjo. “Perguntei qual era a razão de tal trabalho, e o primeiro subchefe disse-me directamente que os meus sobrinhos eram gatunos e as motos eram roubadas para justificar o assassinato deles”, denuncia. “Eu ajudei-os a comprar a primeira motorizada. Os sobrinhos viviam em Benguela e primeiro veio o Kobe, que começou a trabalhar como moto- -taxista. Ganhou dinheiro e foi buscar o primo. As motos não eram roubadas”, afirma o tio. Miguel Canganjo não esconde o comportamento dos sobrinhos: “Meteram-se na vida da delinquência”. Mas reitera que foi ele quem os ajudou, com fundos próprios, a comprar a primeira motorizada. Se os sobrinhos praticassem actos de delinquência relevantes — observa —, não estariam a viver num quarto improvisado feito de chapas, com falta de condições. Mais, afirma que nenhum dos três tinha cadastro criminal. “O Francisco esteve detido uma vez, na Esquadra dos Contentores (44ª Esquadra, Estalagem de Viana), por atropelamento de uma senhora que, entretanto, saiu ilesa. A polícia cobrou-me 15 mil kwanzas para o libertar, assim como à motorizada. Juntei o dinheiro, paguei e ele saiu em liberdade.”
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CASO N.º 41: O VIZINHO MATADOR VÍTIMA: Alexandre Carlos “Da Cazanga”, 18 anos, natural de Luanda DATA: 7 de Setembro de 2016 LOCAL: bairro 6, rua 2, próximo do Campo da Morte, município de Viana OCORRÊNCIA: “Três meses antes, o meu vizinho da DNIC [SIC], ‘Ti Paulo’, veio ter comigo e disse-me para enviar o meu filho para o mato, porque ele estava na lista para ser morto”, conta Carlos Francisco Alexandre. Agradecido, o pai enviou o filho ao município de Calulo, na província do Kwanza-Sul. “Mas, como esses miúdos são teimosos, ele regressou contra a minha vontade”, conta. Passou a ser vigiado pelos operacionais do SIC. “No dia 6, por volta das 7h00, o meu filho pediu 50 kwanzas à mãe e foi à cantina comprar detergente para lavar a sua roupa. Quem o agarrou, na cantina, foi o próprio chefe Paulo. Como ele estava acompanhado por mais outro operacional, o miúdo resistiu mas conseguiram amarrá-lo e meteram-no numa motorizada”, conta. É comum, nessas operações, o capturado ser levado até à esquadra e/ou local de execução numa motorizada, entre dois agentes. Carlos Francisco Alexandre seguiu o vizinho e encontrou o seu filho amarrado na subunidade [conhecida como das madres] da Esquadra dos Contentores [Estalagem], e o responsável das operações, o seu vizinho Paulo. “O chefe Paulo perguntou-me se eu não tinha vergonha de acudir o meu filho depois de me ter dito para enviá-lo para a província. Respondi que, como pai, era meu dever saber sobre o meu filho”, conta. “O chefe Paulo perguntou-me por que o meu filho voltou do mato. E disse-me: ‘vai preparar o caixão porque vamos matá-lo hoje mesmo. Enxotou-me dali”, denuncia. Persistente, o pai dirigiu-se à esquadra principal para interceder pela vida do seu filho. “Os agentes da DNIC disseram-me: ‘Vamos te educar.’ Levaram-me para uma sala, pegaram numa catana, e com o lado, bateram-me nas palmas das mãos, muitas vezes, até as mãos ficarem todas inflamadas.” Mesmo com as mãos inflamadas, depois de libertado, o pai foi em busca de pão para alimentar o seu filho. Permitiram-lhe que o entregasse.
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No dia seguinte, logo pela manhã, deslocou-se à referida unidade para saber da situação do filho. Enquanto aguardava, o filho e um outro jovem desconhecido foram levados pelos operacionais até à sua rua, passando perto de sua casa. Foram executados a poucos metros da casa, próximo do Campo da Morte. Da Cazanga foi fuzilado com dois tiros na cabeça e um terceiro na perna direita. Tinham passado seis dias desde que regressara de Calulo. Os assassinos separaram os cadáveres e deixaram o jovem não identificado mais adiante. “O único dia em que o meu filho esteve detido foi no dia anterior ao seu fuzilamento. Ele gostava de lutar na rua, era confusionista, mas não era bandido. Alguns desses polícias, que conheço bem, têm filhos altamente delinquentes mas não os matam, protegem-nos”, afirma o pai. CASO N.º 42: BICHO MAU VÍTIMA: Sebastião Monteiro Viegas “Bicho Mau”, 25 anos, natural de Luanda; Léo Baba, Irmão do Toca-Lá; mais duas vítimas não identificadas. DATA: 6 de Setembro de 2016 LOCAL: Primeira dos Carneiros, bairro 6 (Abega), uma rua depois do Campo da Morte OCORRÊNCIA: “Às cinco da manhã, mais de sete agentes fardados da Polícia Nacional vieram buscar-me a casa. Por não terem encontrado o Sebas, espancaram o irmão menor, Arnaldo Monteiro de Quintas, de 15 anos, com porretes, e levaram-no para a Esquadra dos Contentores [Estalagem]”, conta Teresa Monteiro. Os agentes exigiram à mãe que os levasse até à residência de Sebas, no bairro Palanca, onde este vivia com a esposa. “Pelo caminho, os agentes do SIC disseram-me: ‘Mamá, prepara o caixão. Hoje será o dia da morte do teu filho.’ Eu respondi: ‘Seja feita a vossa vontade”, revela Teresa Monteiro. Já em casa do filho, os agentes dedicaram-se a esbofetear a sua nora na cara, diante dos filhos de cinco e três anos, que choravam. Obrigaram-na
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a telefonar ao marido pedindo-lhe que fosse ter consigo para uma emergência. Retiraram a fotografia do jovem da sala e foram emboscá-lo. “Saí da casa do meu filho sozinha. Como não tinha dinheiro para o transporte de regresso a casa, fui pedir apoio a alguns familiares que viviam ali perto e avisá-los sobre o que ia acontecer”, recorda Teresa Monteiro. “Às 7h30 ao chegar a minha casa, recebi a notícia de que o meu filho já tinha sido morto com quatro tiros. Dois na cabeça, um no peito e outro no abdómen”, afirma. “Soube que ele e o amigo tinham sido apanhados no bairro da FTU, quando desciam do táxi, a caminho da sua casa. Trouxeram-nos até aqui, a cerca de 300 metros da minha casa, onde foram fuzilados.” A foto de Bicho Mau, morto, com uma arma sobre o peito, e do amigo ao lado, tornou-se viral nas redes sociais. Algumas testemunhas entrevistadas afirmaram que, depois de o terem executado, um dos agentes colocou a arma no peito da vítima, para que assim fosse fotografada. No patrulheiro que levou Teresa Monteiro à casa do seu filho, estavam dois jovens manietados por um único par de algemas. Tiveram o mesmo destino. “Esses dois jovens, que não sei quem eram, também foram fuzilados aqui no meu bairro, noutra rua. Já não sei se foi pouco antes ou depois do meu filho e do seu amigo. Nesse mesmo dia, aqui nessa zona, as autoridades mataram mais de 15 jovens”, acrescenta. Teresa Monteiro assume que o seu filho era delinquente. “Como mãe, nunca mandei o meu filho roubar. Se ele foi delinquente, vamos defendê-lo mais como? Tenho medo”, afirma. Um mês antes, a 7 de Agosto, Teresa Monteiro foi visitada de manhã por cinco ou seis indivíduos que se identificaram como sendo operacionais do SIC. Disseram-lhe que nesse dia o filho tinha assaltado uma residência. “Encontraram-me no quarto a vestir-me e pedi-lhes que esperassem. Disseram-me logo: ‘Vais morrer também.’ Esses indivíduos levaram a minha botija de gás. Um deles olhou para o meu televisor pequeno, muito antigo, e disse: ‘A mãe do gatuno tem esse televisor? Aqui não tem nada de jeito para levar”, recorda. Depois, os homens conduziram Teresa Monteiro à casa assaltada. “Disseram-me que ele tinha assaltado dois televisores, telemóveis, uma botija de gás e não sei mais o quê. Giraram comigo de carro durante uma hora e depois decidiram levar-me à esquadra dos Contentores, na Estalagem.”
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Segundo Teresa Monteiro, o oficial de serviço repreendeu os agentes, lembrando-lhes que o crime é intransmissível e que não tinham o direito de tirar a mãe de casa. Terá então encaminhado os agentes para uma cela. “A polícia ligou para o meu filho, na minha presença, e ele confessou o crime por telefone. Ali mesmo, o oficial disse-me: ‘Mãe, prepara já o caixão para o teu filho”, revela. Teresa Monteiro, corroborada por dois outros munícipes, descreve a onda de terror que tem varrido o município de Viana, e conta que os assassinos institucionais tem uma quota de alvos a abater, a qual divulgam junto de familiares das vítimas. “Aqui nessa zona, eles diziam que tinham marcado a morte de 250 jovens. Os grandes bandidos, aqueles que podem pagar pela sua liberdade, esses andam aí. Matam esses miúdos que roubam telemóveis, botijas de gás e muitos inocentes.” CASO N.º 43: A CORRIDA VÍTIMA: Daniel Soempia Cambalo “Bruno Lamba”, 18 anos; Tomás Bonifácio “923” DATA: 6 de Setembro de 2016 LOCAL: bairro 6, município de Viana OCORRÊNCIA: Dois indivíduos circulavam em motorizadas próximo do mercado da Mamá Gorda em busca de dois gatunos. Um dos jovens que interpelaram para obter informações falou com o Maka Angola. O jovem, que prefere o anonimato, identificou os indivíduos: um era agente da Polícia Nacional, fardado; outro era do SIC, ambos alegadamente afectos à 44ª Esquadra. “Disseram-me que estavam a perseguir dois gatunos. Vinham a reboque, em duas motorizadas diferentes. Conheço bem os rostos deles”, afirma o jovem, que lhes indicou o caminho por deveriam seguir. “Um deles [dos alvos] foi esconder-se em minha casa. Mal o meu pai o viu, expulsou-o logo. Ele nem sequer conseguiu falar, não estava armado e não tinha nada consigo”, conta a testemunha. “O meu pai não se atreveria a expulsar alguém que tivesse uma arma ou que fosse ameaçador. Lá fora, o rapaz foi logo baleado.”
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Segundo a activista Laurinda Gouveia, que esteve no local minutos após o sucedido, os jovens foram encurralados num quintal de muros altos, que não conseguiram saltar, e ficaram à mercê dos agentes: “Os corpos estavam mesmo ao lado do muro. O jovem de t-shirt amarela, identificado como Bruno Lamba, levou um tiro na testa, outro no peito e mais outro no braço direito. O do casaco azul, conhecido como Tomás 923, do grupo Perturbados, foi executado com um tiro na nuca.” Os corpos estiveram expostos durante quatro horas no referido quintal, que é habitualmente usado para a prática de judo, até que foram removidos pelo SIC. O jovem-testemunha afirma peremptoriamente que o acto foi cometido por agentes da Polícia. “Todos nós aqui podemos comprovar que são polícias. O da ordem pública andou aqui a correr com a pistola em punho na mão direita. O do SIC também. Todos nós vimos.” “Segundo nos disse um dos agentes com quem falámos, de outra unidade e que seguiu o caso, a matança foi intencional”, revela o jovem. Luciano Domingos, pai de Daniel Soempia Cambalo, tinha convidado o filho para o acompanhar nas suas diligências: “Ele recusou. Disse-me que tinha outros compromissos. Quando regressei a casa, fui informado da morte do meu filho.” “O meu filho nunca teve processos de crime, nunca se envolveu em actos de delinquência. Trabalhava numa padaria. Eu sabia que ele tinha alguns amigos com desvios [delinquentes], mas um pai não pode saber e decidir sobre os amigos do seu filho”, continua. É com gratidão que recorda como o filho ajudava muito a família: “Eu estou desempregado, sou ex-militar. O meu filho contribuía para o sustento da família com o que ganhava na padaria.” Luciano Domingos explica por que fez o enterro do filho sem apresentar queixa às autoridades: “Se foi a polícia e o SIC quem matou o meu filho, como viram as testemunhas, achei desnecessário. Entreguei o caso às mãos de Deus e fiquei apenas com a dor.” “A polícia e o SIC não estão a fazer um bom trabalho. Seria bom trabalho caso levassem os suspeitos à justiça para investigarem primeiro, antes de matarem. Tinham de apurar antes a verdade, não é só matar”, critica. Para si, “as pessoas que apoiam esses assassinatos da polícia também são assassinas. O artigo 30.º da Constituição proíbe a pena de morte. Onde está o respeito pela vida humana neste país?”, questiona.
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CASO N.º 44: A MISSÃO INGRATA VÍTIMA: Ruben Fernandes Manuel “Nuno”, 21 anos, natural do Huambo DATA: 26 de Agosto de 2016 LOCAL: bairro Santa, município de Viana OCORRÊNCIA: De acordo com o testemunho de familiares e amigos, Nuno era procurado por agentes do SIC, por suspeita de actos delinquentes. No dia do seu assassinato, por volta das 20h00, um grupo de homens à paisana perseguiu-o até a um beco sem saída, onde o executou com sete tiros. Nuno foi atingido com dois tiros na cabeça, três no abdómen, um na mão direita e outro no pé esquerdo. Ao seu pai, identificado como sendo funcionário do SIC, foi atribuída a missão de recolher o cadáver do seu filho, passadas duas horas do fuzilamento. Um dos amigos de Nuno, que prefere o anonimato, refere que o jovem tinha sido libertado há três meses, depois de ter passado igual tempo detido na Comarca de Viana. Inicialmente, foi membro do gangue “Criminal Família”, tendo depois aderido aos “Metidos”. CASO N.º 45: MICUIA VÍTIMA: Fernando Joaquim “Micuia”, 19 anos, natural do Kwanza-Norte DATA: 16 de Junho de 2016 LOCAL: junto ao Campo da Morte, bairro 6, município de Viana OCORRÊNCIA: Às seis da manhã, vários elementos identificados com coletes da DNIC — predecessora do SIC — bateram à porta de Omelina Fernandes na área do Caprédio. De acordo com um familiar seu, que prefere o anonimato, os referidos operacionais detiveram o seu filho e trancaram-na no quarto, porque ela tentou desesperadamente defender o filho.
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“Mais tarde fomos à Esquadra dos Contentores [44ª Esquadra], onde a polícia nos informou de que o Micuia já tinha sido fuzilado. Segundo o polícia, o Micuia andava com bandidos e, por isso, também era bandido e todos tinham de ser mortos”, refere o familiar. A família soube então que o corpo de Micuia, com três tiros, um dos quais na cabeça, jazia nas proximidades do Campo da Morte. Com Micuia, foram fuzilados mais três jovens, cujas identidades se desconhecem. O familiar de Micuia apenas lhes viu os corpos. CASO N.º 46: “O MEU TIO ERA MESMO GATUNO” VÍTIMA: Mateus André Manuel “Cabeça”, 27 anos, natural de Malanje; três outros jovens cuja identidade se desconhece DATA: 6 de Junho de 2016 LOCAL: bairro 6, Campo da Morte, município de Viana OCORRÊNCIA: “O meu tio era mesmo gatuno. Já esteve detido quatro vezes. Mexia mesmo”, relata a sobrinha de Mateus “Cabeça”, preferindo não ser identificada. Já passava das seis da manhã quando Cabeça foi encontrado em casa da irmã, no bairro 6, em conversa com dois amigos que a família desconhecia. “Foi o SIC quem os tirou de casa. Deram um giro com eles e por volta das 8h00 levaram-nos para o Campo da Morte, onde foram fuzilados. O tio Cabeça levou dois tiros na cabeça”, explica. “Os corpos passaram a noite no local do crime, porque não havia carros para a recolha de cadáveres. Nesse dia, o SIC matou muito. Foram cerca de 14 pessoas ao todo”, revela. A sobrinha indica que Cabeça “arranjava muitos problemas para a família”. Como forma de o afastarem da delinquência, enviaram-no para Malanje, onde passou seis meses. “Mas não ouvia conselhos.” Regressou para a morte.
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CASO N.º 47: DA ESQUADRA DOS CONTENTORES PARA O CAMPO DA MORTE VÍTIMAS: Marcolino Hossi “Litana”, 22 anos; mais dois jovens não identificados DATA: 5 de Maio de 2016 LOCAL: Campo da Morte, bairro 6, município de Viana. OCORRÊNCIA: Litana, também conhecido por “Todas as Tias”, pela popularidade de que gozava entre as mães da sua área de residência, tinha um historial de delinquência, como conta o seu primo Pedro Sabino Fito. Dias antes do fatídico acontecimento, Litana e alguns amigos assaltaram um vizinho, efectivo das Forças Armadas Angolanas, e roubaram-lhe o telemóvel. A vizinhança identificou-o. “Apanharam-no, deram-lhe uma surra ali mesmo no bairro e levaram-no para a Esquadra dos Contentores (na Estalagem). Foi a partir dessa esquadra que o levaram directamente para o Campo da Morte”, narra o primo. Por volta das 9h00, dois agentes de campo, com coletes bem identificados do SIC, e um indivíduo à paisana dirigiram-se ao campo num Toyota Land- -Cruiser de cor branca, vidros fumados e sem matrícula. Da viatura, retiraram três jovens, incluindo o Marcolino Hossi “Litana”, de 26 anos. Pedro Fito, que testemunhou o fuzilamento, conta que os agentes obrigaram os jovens a dar alguns passos para frente sem olharem para trás. “O Litana recusou-se e disse que podiam matá-lo assim mesmo, de frente”, realça a testemunha. “O primeiro, ao tentar dar um passo, apanhou um tiro nas costas e outro na nuca, que lhe atravessou o olho. O Litana levou um tiro nas costas e outro na cabeça.” O terceiro também foi assassinado com um tiro na cabeça. Segundo depoimentos de C.F., na altura dos fuzilamentos “decorria um jogo de futebol no campo e havia muitas crianças a assistir, que acabaram também por presenciar as execuções”.
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“Muitos [transeuntes e residentes locais] vieram aplaudir a acção do SIC, dizendo ‘bem feito’, porque os jovens atormentavam a população e a polícia estava a fazer um bom trabalho”, denuncia Pedro Fito. “A população pisoteou os corpos dos malogrados. Outros diziam que [os mortos] estavam a ressuscitar e atiravam-lhes areia.” “Apesar de o meu primo ter sido um delinquente, a forma desumana como a população celebrou a sua morte e a dos outros jovens é muito triste”, conclui. CASO N.º 48: “DISSE APENAS QUE AMAVA MUITO A MINHA MÃE” VÍTIMA: Manuel Monteiro, 37 anos, natural do Uíge DATA: Abril de 2016 LOCAL: bairro do Belo Monte, município de Viana OCORRÊNCIA: “O meu pai vendia drogas e assaltava carros”, conta Denilson Monteiro. Manuel Monteiro encontrava-se à porta de casa quando, por volta das 23h00, parou diante de si uma minivan Toyota Hiace de vidros fumados. De acordo com as declarações prestadas pelo filho, alguns indivíduos, em número não especificado, desceram da viatura e descarregaram dez tiros sobre o peito e o abdómen do seu pai. “O meu pai era muito grande. Era um kaenche [lutador de grande porte físico].” Denilson e a mãe, que se encontravam no quintal, a poucos passos da porta, acorreram em seu socorro mal notaram o estranho movimento da viatura, o desembarque dos passageiros e a abordagem da vítima. “Depois dos disparos, aproximámo-nos dele aos gritos, a chorarmos, e ele ainda estava vivo. Disse apenas que amava muito a minha mãe e pediu-lhe para cuidar bem de nós, os três filhos”, testemunha Denilson.
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“Ele era bandido. Esteve detido muitas vezes. Sabíamos que ele poderia acabar morto por causa dos seus actos e também vimos que aquela operação não poderia ter sido realizada por bandidos iguais. Tinha de ser a polícia a matá-lo”, acusa. A área onde vivem é muito isolada, “tipo no fim do mundo”, explica. E pouco depois da operação já lá estava a viatura de recolha de cadáveres afecta ao Serviço de Investigação Criminal. “Só poderia ter sido em coordenação com os que mataram, pois sabiam o local exacto onde isso aconteceu.” Segundo Denilson, as esquadras locais não têm viaturas de recolha de mortos, as quais só aparecem em bairros como Belo Monte para recolher supostos delinquentes que tenham sido assassinados. CASO N.º 49: DEPOIS DO FUNERAL, A MORTE VÍTIMA: Manuel Rui Luís da Silva “PCB”, 19 anos, natural de Luanda; António Agostinho Manuel “Stony Latchutcho”, 20 anos, natural do Uíge; “Da Menina”; e mais um indivíduo não identificado DATA: 19 de Abril de 2016 LOCAL: Campo da Morte, bairro 6, município de Viana OCORRÊNCIA: Depois de assistirem ao funeral de um vizinho, os quatro jovens ficaram a conversar na primeira rua do bairro 6. De acordo com o depoimento de Zinha, irmã de PCB, pelas 13h00 os jovens foram cercados e detidos por vários elementos à paisana, que se identificaram como agentes do SIC. “Foram pessoas do SIC, os mesmos que fizeram a razia no bairro”, conta. Transportados numa carrinha até ao Campo da Morte, a poucos minutos do local de detenção, os rapazes foram então fuzilados. “O meu irmão apanhou cinco tiros, dois da cabeça”, revela Zinha. Sem revelar o seu nome, a irmã de Stony Latchutcho confirma que este foi cravejado com seis tiros, incluindo na cabeça. Latchutcho encontrava-se em liberdade desde Janeiro anterior, depois de ter passado seis meses na
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Comarca Central de Luanda. “Ele e os amigos tinham furtado uma botija de gás. Ele não trabalhava”, explica a irmã. Ao todo, Latchutcho esteve detido três vezes por furto. Em Dezembro do ano anterior, PCB estivera detido por semana na Esquadra dos Contentores (junto à Moagem do Kikolo), por suspeita de furto. Estudava a 11ª Classe e tinha conseguido arranjar emprego. Estava a dias de começar a trabalhar quando foi fuzilado, conforme relato da irmã. CASO N.º 50: DESESPERADAMENTE EM BUSCA DE UM CORPO VÍTIMA: Moisés Domingos Capitão “Oficial”, 22 anos, natural de Luanda DATA: 13 de Abril de 2016 LOCAL: bairro Kilamba-Kiaxi OCORRÊNCIA: Oficial chegou a casa por volta das 16h00, depois de mais uma jornada de trabalho como ladrilhador. Mudou de roupa e foi jogar à bola com os amigos na rua. Ao cair da noite, segundo depoimento dos familiares, regressou a casa, tomou banho e foi dormir. “À meia-noite, vários homens armados arrombaram a porta do quarto dos rapazes. Tiraram o meu irmão Kotchongo, de 21 anos, e perguntaram-lhe se era o Oficial, ao que ele respondeu que não. O Oficial dormia profundamente e arrancaram-no da cama. Nós, familiares, assistimos a tudo”, recorda Lena, irmã da vítima. Segundo Lena, os raptores que levaram Oficial — sem exibirem qualquer mandado de captura — estacionaram um Toyota Land-Cruiser “com barra cor de laranja e vidros fumados” mesmo diante do portão da residência. “De manhã muito cedo fomos à Esquadra da Calemba 2. Informaram-nos de que a viatura era deles [ao serviço da Esquadra] e que os operacionais tinham saído com ela por volta das 21h00 do dia anterior e ainda não tinham regressado”, conta Lena. Entretanto, de acordo com a família, ao segundo dia a Esquadra da Calemba 2 apresentou uma segunda versão do caso, negando o envolvimento
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no caso. “Disseram-nos depois que no dia em que o meu irmão foi levado ninguém trabalhou. Ao terceiro dia, fomos lá outra vez e à DPIC [Direcção Provincial de Investigação Criminal], e disseram-nos que os operacionais não trabalharam àquela hora.” Durante três semanas de pesadelo, a família percorreu as esquadras de Calemba, Kilamba Kiaxi, Talatona, Fubu e Kapolo, em busca de uma resposta sobre o paradeiro de Oficial. “Diziam-nos que ele tinha sido raptado por bandidos e os polícias não sabiam de nada.” À terceira semana, a família recebeu um telefonema de uma prima, residente na zona do Bita, em Viana, a informar que o corpo de Oficial havia sido largado nas matas do Kilamba. “Fomos lá e confirmámos que o corpo era dele. Não havia sinais de tiro nem de espancamentos. O miúdo nunca foi criminoso, nunca esteve detido”, lamenta a irmã.
AGRADECIMENTOS
AGRADECIMENTOS
O “CAMPO DA MORTE”
91O CAMPO DA MORTE RELATÓRIO SOBRE EXECUÇÕES SUMÁRIAS EM LUANDA 2016-2017
A disponibilidade, a coragem e os depoimentos de familiares, amigos e vizinhos das vítimas, bem como de testemunhas dos crimes, foram instrumentais para a realização deste relatório. Sem o contributo de todos esses cidadãos, o trabalho não teria sido possível, pelo que aqui lhes prestamos um agradecimento especial. Também agradecemos a forma desinteressada e anónima com que um homem de negócios angolano patrocinou a pesquisa de campo por parte de quinze assistentes. A bondade deste homem também serviu, em situações extremas, para apoiar pontualmente alguns familiares e vítimas, como no caso da mãe que tinha desistido de enterrar o filho porque não dispunha de meios para comprar o caixão. A colaboração dos já referidos assistentes foi inestimável. Residentes locais, conhecem as áreas onde ocorreu grande parte dos assassinatos, o que lhe permitiu identificar casos, localizar familiares, amigos, vizinhos e testemunhas. A seu cargo esteve a difícil tarefa de convencer as pessoas a falar, promovendo a cultura de denúncia da violação dos direitos humanos. Por razões de segurança, optámos por não revelar os nomes destes assistentes, mas eles sabem que como lhes estamos gratos pelo extraordinário trabalho que realizaram. De forma voluntária, Rui Verde e Inês Hugon ofereceram, respectivamente, aconselhamento jurídico e revisão do relatório. Bem hajam pela vossa amizade. Este trabalho foi realizado de forma voluntária e sem qualquer apoio institucional. À família, que sofre com as consequências da dedicação à causa do respeito pelos direitos hum
RAFAEL MARQUES DE MORAIS
ÍNDICE
INTRODUÇÃO 5 A HISTÓRIA DOS ESQUADRÕES DE MORTE 9
A DINÂMICA DAS EXECUÇÕES SUMÁRIAS EM ANGOLA 12
PARA QUE SERVEM AS LEIS E O DIREITO À VIDA? 15
O CONTRADITÓRIO 16
METODOLOGIA 19
CASOS
CASO N.º 1: “ACABADO” NA ESQUADRA 22 6 de Novembro de 2017 CASO N.º 2: UM MAU TRABALHO 24 30 de Setembro de 2017 CASO N.º 3: CENOURA 28 10 de Setembro de 2017 CASO N.º 4: “SÃO GATUNOS E MERECERAM MORRER” 29 20 de Abril de 2017 CASO N.º 5: CERCADOS 32 15 de Abril de 2017 CASO N.º 6: O GATUNO É O SETENTA 33 12 de Abril de 2017 CASO N.º 7: AVISO: NO BAIRRO 6 ESTÃO A MATAR 35 9 de Abril de 2017 CASO N.º 8: NÃO FAZ SENTIDO DEFENDÊ-LO 36 21 de Março de 2017 CASO N.º 9: OS LOBOS E OS MINI-LOBOS 36 23 de Fevereiro de 2017
CASO N.º 10: TÃO LOGO SAIU EM LIBERDADE 37 29 de Janeiro de 2017 CASO N.º 11: FUZILAMENTOS COM VISÃO CRISTÃ 40 8 de Março de 2017 CASO N.º 12: O MATADOR TROCA-TIROS 41 7 de Março de 2017 CASO N.º 13: CELEBRAÇÃO DO PRIMEIRO ANO DO CURSO DE DIREITO 43 7 de Março de 2017 CASO N.º 14: CIRCULAR ATÉ MORRER 44 1 de Março de 2017 CASO N.º 15: QUEM MATOU FOI O PULA-PULA 45 1 de Março de 2017 CASO N.º 16: A AVÓ MORRE TAMBÉM 46 27 de Fevereiro de 2017 CASO N.º 17: A ÚLTIMA CONFISSÃO 47 16 de Fevereiro de 2017 CASO N.º 18: ABEGA OU DROGBA É IGUAL 48 4 de Fevereiro de 2017 CASO N.º 19: O CRIME É TRANSMISSÍVEL? CALA BOCA 50 4 de Fevereiro de 2017 CASO N.º 20: POLÍCIA NÃO ACODE GATUNOS 51 3 de Fevereiro de 2017 CASO N.º 21: SALVAR O AMIGO É INTERFERIR NO TRABALHO DA POLÍCIA 52 28 de Janeiro de 2017 CASO N.º 22: “A CABEÇA DELE JÁ NÃO TRABALHAVA” 54 27 de Janeiro de 2017 CASO N.º 23: A VIAGEM DA NOIVA 55 26 de Janeiro de 2017 CASO N.º 24: MÃE VÊ QUEM MATA O FILHO 56 24 de Janeiro de 2017
CASO N.º 25: A FOTO DELE ESTAVA NO TABLET 57 24 de Janeiro de 2017 CASO N.º 26: A EMBOSCADA DA GASOLINA 58 24 de Janeiro de 2017 CASO N.º 27: DE COLABORADOR A VÍTIMA 59 21 de Janeiro de 2017 CASO N.º 28: O ÚLTIMO CHARRO 60 20 de Janeiro de 2017 CASO N.º 29: O FILHO DO TENENTE-CORONEL 62 20 de Janeiro de 2017 CASO N.º 30: DROGA! O TIO ENFORCA-SE TAMBÉM 65 6 de Janeiro de 2017 CASO N.º 31: CAÇA AO MANINHO — PROCURADO PARA SER MORTO 66 16 de Dezembro de 2016 CASO N.º 32: EXECUTADO NO VELÓRIO DO AMIGO 67 5 de Dezembro de 2016 CASO N.º 33: OS IRMÃOS DOMINGO E O MATADOR DE NADA 68 18 de Novembro de 2016 CASO N.º 34: INJECÇÃO DE ÁGUA DE BATERIA? 70 16 de Novembro de 2016 CASO N.º 35: A FESTA DE ANIVERSÁRIO DO KUDURISTA 71 23 de Outubro de 2016 CASO N.º 36: OS SOBREVIVENTES E A LISTA DOS ALVOS 72 10 de Outubro de 2016 CASO N.º 37: UM CASO PASSIONAL 74 20 de Setembro de 2016 CASO N.º 38: A ÚLTIMA CHAMADA 75 11 de Setembro de 2016 CASO N.º 39: A FESTA ACABOU 76 10 de Setembro de 2016
CASO N.º 40: FUZILADOS NA CAMA 76 9 de Setembro de 2016 CASO N.º 41: O VIZINHO MATADOR 78 7 de Setembro de 2016 CASO N.º 42: BICHO MAU 79 6 de Setembro de 2016 CASO N.º 43: A CORRIDA 81 6 de Setembro de 2016 CASO N.º 44: A MISSÃO INGRATA 83 26 de Agosto de 2016 CASO N.º 45: MICUIA 83 16 de Junho de 2016 CASO N.º 46: “O MEU TIO ERA MESMO GATUNO” 84 6 de Junho de 2016 CASO N.º 47: DA ESQUADRA DOS CONTENTORES PARA O CAMPO DA MORTE 85 5 de Maio de 2016 CASO N.º 48: “DISSE APENAS QUE AMAVA MUITO A MINHA MÃE” 86 Abril de 2016 CASO N.º 49: DEPOIS DO FUNERAL, A MORTE 87 19 de Abril de 2016 CASO N.º 50: DESESPERADAMENTE EM BUSCA DE UM CORPO 88 13 de Abril de 2016
AGRADECIMENTOS 90
INTRODUÇÃO
INTRODUÇÃO
O “CAMPO DA MORTE”
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Os 50 casos de execuções sumárias reportados neste relatório ocorreram entre Abril de 2016 e Novembro de 2017, sobretudo nos municípios de Cacuaco e Viana, os mais populosos de Luanda. Cerca de metade da população da capital do país, estimada em sete milhões de habitantes, vive nesses dois municípios. Trata-se de uma pequena amostra ilustrativa de uma actividade metódica e sistemática que afecta muitas outras centenas de vítimas: o assassinato, por parte de operacionais do Serviço de Investigação Criminal (SIC) — dirigido pelo comissário Eugénio Pedro Alexandre —, de jovens tidos como delinquentes ou simplesmente indesejados. Não se trata de casos esporádicos, mas sim de um mecanismo de exterminação montado pelo SIC, com a colaboração de alguns cidadãos, os quais indicam, através de listas ou apenas verbalmente, os jovens a serem abatidos, sem qualquer procedimento de investigação. A título de exemplo, o jovem Abega (ver Caso n.º 18) foi confundido com um outro, de nome Drogba, um presumível delinquente. Foi levado para as traseiras de um autocarro e atingido com dois tiros, um no olho esquerdo e outro nas costas. Acreditando que ele estava morto, os polícias abandonaram-no, mas Abega sobreviveu para contar a sua história. Depois de, em Abril de 2017, termos reportado e partilhado todos os casos em nossa posse, recolhidos à data, com o ministro do Interior, Ângelo de Barros Veiga Tavares, verificou-se um longo período de acalmia, que coincidiu também com a campanha eleitoral e o primeiro mês pós-eleitoral. Depois das eleições de 23 de Agosto e da tomada de posse do novo presidente a 26 de Setembro, a 30 de Setembro, porém, os agentes do SIC voltaram às campanhas de assassinatos. Para além de Cacuaco e Viana — os dois municípios sobre os quais incide o nosso levantamento de casos — também no município do Cazenga ocorreram incontáveis assassinatos. Alguns casos constam da lista descritiva do relatório e, pelo seu carácter inaugural e paradigmático, este município merece lugar de destaque na introdução. Na realidade, a comuna do Kikolo, onde ocorreu grande parte dos assassinatos, era até recentemente parte do município de Cacuaco, mas foi dividida administrativamente para fins eleitoralistas. Grande parte do
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seu território passou a estar sob jurisdição do Cazenga. Cacuaco tornou-se o principal bastião eleitoral da oposição. A anexação de grande parte do Kikolo (o foco maior da UNITA) ao Cazenga, onde o partido no poder — o MPLA — domina, facilita a correcção da assimetria eleitoral a favor do MPLA. No relatório, mantemos o Kikolo como parte integral de Cacuaco, porque grande parte da população local, e não só, ignora a mudança administrativa. Nos casos onde o comando municipal da Polícia Nacional no Cazenga tem jurisdição operacional, fazemos a devida referência. O primeiro caso de retorno pós-eleitoral à campanha de execuções sumárias, devidamente identificado, ocorreu precisamente no Cazenga. Por volta das três da madrugada de 30 de Setembro de 2017, os jovens Milton e Lami-Py dirigiam-se a casa, no bairro da Mabor, vindos de uma festa na Casa Dubai, no bairro Hoji-Ya-Henda, quando foram apanhados na perseguição de dois supostos delinquentes, um dos quais conhecido por Jó do Boy, por operacionais do SIC. Segundo testemunhas oculares, os quatro agentes estavam devidamente identificados com coletes do SIC, e faziam a perseguição a pé, enquanto outros dois seguiam num Toyota Land-Cruiser branco de vidros fumados. António Domingos Miguel, pai de Milton, narra o sucedido através dos depoimentos recolhidos junto dos vizinhos e outras testemunhas oculares. A 28 de Setembro, na cidade de Malanje, onde ambos viviam, Milton informara-o de que visitaria a mãe em Luanda naquele fim-de-semana. E assim fez. “A 50 metros de casa, os jovens foram surpreendidos pelo SIC. Os vizinhos que escutaram pela janela disseram-me que o meu filho ainda conversou com os homens do SIC. Explicou-lhes que vivia em Malanje, tinha terminado o curso de electrónica.” Durante a conversa, um dos agentes fez um disparo para o chão e, segundo dois jovens que assistiam, a bala atingiu a perna esquerda de Milton, que logo gritou por socorro. Uma vizinha abriu a porta para atestar o bom carácter dos jovens. “Os rapazes imploraram, disseram que nunca foram bandidos. Os homens do SIC ainda consultaram as suas listas de alvos a abater, mas um deles fez logo um disparo que atingiu Milton no peito. O meu filho morreu na estrada”, conta o pai. Por sua vez, Lameth, ao ver o amigo tombado, encetou a fuga aos gritos de socorro. Tentou entrar em casa da vizinha, que, em vão, alertou
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os perseguidores de que os jovens eram “bons” filhos do bairro. “Cala a boca e fecha a porta, se não queres morrer”, ameaçou um dos agentes, segundo depoimentos recolhidos no local. Lameth fugiu por um beco sem saída, o mesmo por onde seguira Jó do Boy. Escondeu-se na casa de banho (separada da casa) de uma vizinha. “Fuzilaram-no na casa de banho, à queima-roupa, com um tiro do lado direito da cabeça e outro da testa, no canto onde estava de cócoras. Deixaram-no aí”, relata um dos vizinhos. “O meu vizinho Bebucho, que assistiu a tudo, foi quem apanhou o Jó do Boy na fuga. Os agentes algemaram-nos a ambos e ali mesmo perguntou ao Bebucho se este os tinha visto a matarem os seus amigos. Libertaram-no”, conta o pai de Milton. Acto contínuo, os agentes conduziram Jó do Boy à esquadra policial do Hoji-ya-Henda. Os corpos dos malogrados foram recolhidos pelo SIC, por volta das cinco da manhã, sem qualquer perícia legal. O comandante Quintas, dirigiu-se ao local do crime para se inteirar do caso e, diante de vários residentes, disse apenas: “Mais um mau trabalho." “O Jó do Boy foi morto nessa mesma noite pelo SIC, e o seu corpo depositado directamente na morgue. Os familiares foram ter com o meu vizinho, que explicou apenas tê-lo agarrado. Um agente teve pena da família e, a 2 de Outubro, informou-os de que o Jó do Boy fora morto no mesmo dia e que o seu corpo se encontrava na morgue, entre os não identificados”, refere António Domingos Miguel. É assim que, tipicamente, estes “esquadrões da morte” operam. Organizados em grupos armados com beneplácito oficial, procedem a assassinatos selectivos extrajudiciais com finalidades específicas1.
1 Jeffrey A. Sluka (ed.), Death Squad: The Anthropology of State Terror (The Ethnography of Political Violence), Filadélfia, 2000.
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A HISTÓRIA DOS ESQUADRÕES DE MORTE Na história moderna, os “esquadrões da morte” foram iniciados pelo Partido Comunista bolchevique, após o seu triunfo na Revolução Russa de 1917. Através da sua polícia política, a Cheka, os bolcheviques procediam à eliminação, sem qualquer julgamento, dos “inimigos do povo”. Este método foi aprofundado pela NKVD (Comissariado do Povo para os Assuntos Internos) de Estaline, que se destacou pela criação de listas de alvos a abater e pela imposição de quotas de assassinatos a executar2. Do lado oposto, na Alemanha nazi, as Unidades Móveis de Extermínio das SS também se especializaram nos assassinatos extrajudiciais de inimigos do Reich, de judeus e de outras minorias3. A metodologia utilizada é sempre a mesma: o assassinato baseado em listas criadas por grupos com apoio do poder político. Em Viana não é diferente: um vendedor de cartões de recarga telefónica, Simão Catequele, é responsável por elaborar a lista de extermínios do seu bairro, Mulenvos de Cima. Nessa lista, inclui dois vizinhos, que são levados para a esquadra local, onde agentes policiais lhes esfolam as costas com catanas. Aparentemente, trata-se de um ajuste de contas, um caso passional em que Catequele usou o poder arbitrário da sua lista para que as forças do Estado eliminassem os seus rivais (ver Casos n.os 31 e 36). O modelo dos “esquadrões da morte” foi adoptado em vários países, sobretudo em ditaduras. Um dos casos mais próximos de Angola ocorreu no Brasil durante a Ditadura Militar de 1964-1985. O relatório brasileiro posterior aos eventos descreve-os da seguinte forma: “A formação de grupos [esquadrões da morte] se deu em São Paulo no final dos anos 1960. O Esquadrão paulista surgiu justificado numa espécie de ‘ofensiva contra o crime’. Os agentes envolvidos foram apontados como autores de tortura e morte de civis e presos políticos.” Muitas vezes, acrescenta o relatório, estes grupos estavam 2 George Leggett, The Cheka: Lenin’s Political Police, Oxford,1987. 3 Richard Rhodes, Masters of Death: The SS-Einsatzgruppen and the Invention of the Holocaust, Nova Iorque, 2003.
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envolvidos com a criminalidade, agindo a favor “de diversos interesses, com ligações directas com as economias criminais, como, por exemplo, o jogo do bicho, a prostituição e também o tráfico de entorpecentes, além de torturas e assassinatos”4. E esta é uma primeira questão que se coloca em Angola: os “esquadrões da morte” obedecem a ordens da hierarquia e do poder político ou estão ao serviço de organizações ligadas ao crime? Em todo o caso, as duas realidades, a política e a criminosa, acabam por se confundir. No Brasil, o mesmo aconteceu. Roberto Abreu Sodré, por exemplo, à época governador de São Paulo, foi um dos principais defensores dos “esquadrões da morte”, afirmando que estes acabavam com os marginais. O que posteriormente se comprovou foi que estes esquadrões matavam quem quer que se lhes opusesse, marginal ou não, quem se opusesse ao governo e/ou aos interesses das organizações criminosas que patrocinavam os polícias. Para demonstrar que a estratégia do extermínio não combate o crime, a Human Rights Watch reportou, em 2015, o assassinato policial de cerca de 3345 pessoas no Rio de Janeiro5, onde as estatísticas criminais aumentam todos os dias, e a insegurança também6. Presentemente, um dos países mais assolados por execuções extrajudiciais são as Filipinas. Segundo dados publicados7, mais de 3600 pessoas foram assassinadas nas Filipinas desde 1 de Julho de 2016, ou seja, desde que Rodrigo Duterte tomou posse como presidente e iniciou a sua guerra contra as drogas e o crime. Os assassinatos em massa provocaram preocupação internacional e geraram um clima de anarquia e de terror. Para o nosso relatório, devido às semelhanças com o caso angolano, interessa revelar o esquema de funcionamento da campanha de morte promovida pelo governo e as autoridades das Filipinas. Tal como em Angola, o governo recorre às forças de autoridade para executar os seus planos de aniquilação de cidadãos indesejados. 4 Comisão da Verdade do Estado de São Paulo, disponível [online] em http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/relatorio/ tomo-i/parte-i-cap2.html (acedido a 12-10-2017). 5 HRW, “Brazil police abuses feed cycle violence”. https://www.hrw.org/news/2017/01/12/brazil-police-abuses-feed-cycle-violence 6 https://www.hrw.org/news/2016/07/07/brazil-extrajudicial-executions-undercut-rio-security 7 Kate Lamb, Philippines secret death squads: officer claims police teams behind wave of killings, disponível [online] em https://www.theguardian.com/world/2016/oct/04/philippines-secret-death-squads-police-officer-teams-behind-killings (08-03-2017).
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De acordo com informações transmitidas por um alto oficial filipino, a polícia e os serviços secretos do seu país organizaram equipas de operações especiais que “neutralizam” (i. e. matam) os indesejáveis. Este oficial deixa bem claro: o governo criou esquadrões de morte para matar os criminosos. Existem dez equipas de operações especiais da polícia, que foram recentemente formadas e são altamente secretas, cada uma com 16 membros. Essas equipas são coordenadas para executar uma lista de alvos: suspeitos de utilização de drogas, traficantes e criminosos em geral. Nas Filipinas, os assassinatos ocorrem maioritariamente durante a noite, com os oficiais encapuçados e vestidos de preto. As operações decorrem de modo simples: os polícias acertam os seus relógios, e têm um minuto ou dois para extrair os indivíduos-alvo de suas casas, matando-os de imediato — com rapidez e precisão, sem testemunhas. Depois, despejam os corpos na cidade vizinha ou debaixo de uma ponte. Como veremos, em Angola o modus operandi é o mesmo. A diferença mais evidente é a maior impunidade e descontracção com que os agentes policiais angolanos actuam — à luz do dia, como os fuzilamentos no Campo da Escolinha, bairro 6, perante uma audiência de alunos em recreio, por vezes interrompendo jogos de futebol para as matanças. Um dos efeitos, aparentemente contraditórios, das políticas de extermínio de “marginais” é a forma como os verdadeiros mandantes e beneficiários do crime acabam por ser protegidos pelo abate dos mais fracos. Não por acaso, o filho do presidente das Filipinas foi recentemente acusado, no Senado, de ser um dos grandes traficantes de droga das Filipinas. E no entanto, assim que tomou posse, Rodrigo Duterte esclareceu as suas intenções, anunciando que ofereceria medalhas e dinheiro aos cidadãos que matassem traficantes de droga. “Cumpra com o seu dever e se, de caminho, matar mil pessoas porque está a cumprir com o seu dever, eu protegê-lo-ei.”8
Noutra alocução, no mesmo dia, Duterte declarou: “Se conhece algum drogado, mate-o você mesmo, porque obrigar os pais a fazê-lo será muito doloroso.”9 Portanto, o corolário lógico dessa ordem seria a carta-branca para que as autoridades policiais matassem o seu filho sem qualquer averiguação nem julgamento. Entretanto, obviamente o filho de Duterte reagiu à acusação do Senado recorrendo à presunção de inocência e a todos os meios legais disponíveis para se defender. 8 http://time.com/4495896/philippine-president-rodrigo-duterte/ 9 Idem.
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A DINÂMICA DAS EXECUÇÕES SUMÁRIAS EM ANGOLA Em Angola, como se sabe, os maiores bandidos encontram-se entre os dirigentes políticos e sua rede clientelar. A aceitar a lógica que preside às execuções extrajudiciais sancionadas pelo governo, qualquer cidadão pode matar os dirigentes corruptos e cleptomaníacos, não os sujeitando a qualquer julgamento ou processo legal. No entanto, o governo angolano parece considerar que só os pilha-galinhas, os pequenos ladrões e delinquentes, merecem ser abatidos, e que os grandes criminosos, os grandes corruptos verdadeiramente responsáveis pela miséria do país, não podem ser tocados. Acreditam sem dúvida que estas campanhas de extermínio geram entre o povo a ilusória sensação de que algo está a ser feito pela sua segurança. E assim, no barulho das luzes, os tubarões do crime seguem caminho tranquilamente. Várias são as consequências do comportamento delinquente de inúmeros dirigentes e funcionários públicos que roubam o dinheiro destinado ao exercício das funções do Estado, ou que se apoderam dos recursos naturais e patrimoniais do país — terras e tudo o mais que lhes possa garantir lucro ou poder. Isto para não mencionar o esbulho permanente de bens, negócios e actividades profissionais levadas a cabo por meros cidadãos, desde investidores até pequenos comerciantes e zungueiras. Os dirigentes criminosos deixaram Angola com a mais alta taxa de mortalidade infantil do mundo; com cerca de 20 milhões de pessoas no limiar da pobreza (num total de 24 milhões de habitantes). Que se saiba, nenhum dirigente foi até hoje punido pela morte desnecessária dos infantes angolanos, nem pela miséria a que condenam quotidianamente 20 milhões de pessoas. São estes mesmos dirigentes que promovem campanhas de assassinato de marginais. Que conceito têm, então, de “marginal”? Marginal é aquele que rouba o telemóvel ou aquele que conduz à morte, todos os anos, milhares e milhares de crianças por conta dos seus actos delinquentes? Ou ambos? E qual deles o pior? Afinal de contas, o que é mais grave: deixar os hospitais sem meios para salvar vidas ou roubar um telemóvel?
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No decurso das nossas investigações, muitas testemunhas contactadas foram peremptórias ao afirmar que os bandidos tiram a vida de inocentes e, por isso, merecem morrer também. “Bandido bom é bandido morto”, repetiram incontáveis cidadãos residentes nos locais de crime e nas redes sociais. Nunca lhes ocorria o facto de não haver pena de morte em Angola e de termos uma Constituição que consagra a presunção de inocência. Se o alegado bandido cai nas mãos das autoridades, porque não julgá-lo e punilo de acordo com a legislação em vigor? Para se compreender a gravidade das reacções de grande parte dos cidadãos às execuções sumárias, veja-se o caso de Marcolino Hossi “Litana” e seus amigos (ver Caso n.º 47). A 5 de Maio de 2016, Litana, de 22 anos, e outros dois jovens foram fuzilados no “Campo da Morte” (como se tornou conhecido o campo junto à Escola Primária e do 1º Ciclo do Ensino Secundário nº 5113, no bairro 6), em Viana, com crianças a assistir. Conforme relata Pedro Fito, primo de Litana, “muitos [transeuntes e residentes locais] vieram aplaudir a acção do SIC, dizendo ‘bem feito’, porque os jovens atormentavam a população e a polícia estava a fazer um bom trabalho”. Ainda de acordo com o seu relato, “a população pisoteou os corpos dos malogrados. Outros diziam que [os mortos] estavam a ressuscitar e atiravam-lhes areia”. Perante cidadãos partidários de acções do Estado que violam a Constituição e demais legislação angolana, ainda por cima de modo desumano e cruel, para que servem afinal as leis? Por que motivo a sociedade angolana parece em grande parte apoiar, sem questionar, as execuções de presumíveis pilha-galinhas e ladrões de telemóveis, muitas vezes inocentes, mas não dos reis do crime? A estes, nem sequer se lhes pede que se sujeitem às leis vigentes no país — porquê? A política de assassinatos do governo assenta num plano demagógico: ao abater o vizinho supostamente criminoso, num bairro pobre, isso tem impacto no ethos da comunidade, e a população sente que o Estado está a combater o crime. Em contrapartida, quando se mata um inocente, é apenas um mau trabalho (como lamentou o comandante Quintas). Entre as comunidades pobres, o ministro, o general, o governador — que moram em zonas privilegiadas e não têm qualquer contacto directo com a população — acabam por ser apenas figuras do imaginário. Estas comunidades encontram-se também distantes, excluídas, da chamada classe média e dos supostos sectores intelectuais e de intervenção cívica — que deveriam ser os mediadores entre o poder, a elite reinante e a maioria da população.
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Devido ao enorme distanciamento entre o poder e o povo, aquilo que os ministros, os generais, os governadores, suas famílias e associados fazem ou o que lhes acontece não é sentido pelos pobres e excluídos como tendo impacto nas suas vidas diárias. Como resultado, a esmagadora maioria da população sente que o combate ao crime passa por matar o vizinho delinquente, e não por prender o ministro que rouba o dinheiro destinado a apetrechar hospitais e a comprar medicamentos para o povo. Impossibilitado de sair do ciclo de exclusão económica, social e cultural, sem condições dignas de vida, muito menos qualquer espécie de literacia, este mesmo povo não é capaz de associar a falta de empregos — que afecta profundamente a juventude e potencia a delinquência — à má governação. É este o cenário que sustenta a estratégia das execuções extrajudiciais.
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PARA QUE SERVEM AS LEIS E O DIREITO À VIDA? O respeito pela vida humana, em Angola, nunca foi uma premissa dos governantes, que sempre viram na violência arbitrária e na impunidade as principais formas de controlo da ordem e de manutenção do poder. Por consequência, a desvalorização da vida humana enraizou-se na sociedade. Nos comentários das redes sociais sobre execuções sumárias, verifica- -se que muitos cidadãos celebram a morte dos supostos delinquentes. Para esses cidadãos, não é necessário qualquer raciocínio sobre o Estado de direito. Conforme procurámos demonstrar, esta perspectiva é induzida pelo distanciamento dos poderes públicos em relação ao povo. O objectivo destas execuções é precisamente explorar e alimentar os medos mais directos das populações, como forma de afastar ainda mais o cidadão das reivindicações sobre os seus direitos elementares, incluindo o direito à vida. As execuções sumárias comprovam que, em Angola, o suposto Estado de direito apenas serve de capa para legitimar os detentores do poder e como instrumento de impunidade para os mais fortes. Por exemplo, o governo angolano proclama alto e bom som a sua soberania — evocando leis, protocolos internacionais e imunidades que concede a refinados ladrões — para tão-somente impedir que o ex-vice presidente Manuel Vicente seja julgado em Portugal, onde é acusado de crimes de corrupção, branqueamento de capitais e falsificação de documentos. Manuel Vicente é um dos dirigentes que mais saquearam Angola e que mais contribuíram para empobrecer a população. Ao mesmo tempo, neste “Estado de direito” não se aplicam quaisquer leis que defendam os mais fracos. Não defendemos bandidos, assim como não defendemos os actos arbitrários do governo. Defendemos, sim, a justiça e o Estado de direito. Se existem leis, há que fazê-las cumprir.
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O CONTRADITÓRIO A 26 de Abril de 2017, escrevemos ao ministro do Interior, comissário- -chefe Ângelo de Barros Veiga Tavares, informando-o acerca do trabalho de investigação sobre as execuções sumárias em Cacuaco e Viana. A mesma carta também foi endereçada ao então comandante-geral da Polícia Nacional, comissário-geral Ambrósio de Lemos; ao procurador-geral da República, general João Maria de Sousa; ao presidente da Assembleia Nacional, comissário-chefe (res.) Fernando da Piedade Dias dos Santos; e ao então ministro da Justiça e dos Direitos Humanos, Rui Mangueira. A 29 de Maio, o ministro Veiga Tavares concedeu-nos uma audiência, na presença de dois assessores, durante a qual referiu ter encaminhado o relatório para a Procuradoria-Geral da República para averiguações, escusando-se a tomar quaisquer medidas. Afirmámos ao ministro que não tínhamos qualquer razão para suspeitar de que as ordens de execução sumária proviessem dele, mas entendíamos que, enquanto responsável político e administrativo do SIC, a ele competia empreender todas as acções necessárias para punir os responsáveis e os executores, além de garantir a actuação legal dessa força policial. Apesar de toda a informação detalhada que fornecemos ao ministro e às restantes entidades acima mencionadas, não fomos até ao momento notificados da abertura de qualquer processo de investigação, fosse por parte da Procuradoria-Geral da República, fosse por parte do Ministério do Interior. Não obtivemos sequer uma resposta formal à nossa carta e respectivo relatório de casos. Para conhecimento público, abaixo transcrevemos o conteúdo integral dessa carta.
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CARTA AO MINISTRO (26 DE ABRIL DE 2017)
Exmo. Sr. Ministro do Interior, Sr. Ângelo de Barros Veiga Tavares
[C/C: Comandante-Geral da Polícia Nacional, Comissário-Geral Ambrósio de Lemos Procurador-Geral da República, General João Maria de Sousa Presidente da Assembleia Nacional, Comissário-Chefe (Res.) Fernando da Piedade Dias dos Santos Ministro da Justiça e dos Direitos Humanos, Sr. Rui Mangueira]
Luanda, 26 de Abril de 2017
Assunto: Execuções extra-judiciais em Cacuaco e Viana
Exmo. Sr. Ministro do Interior,
Na qualidade de jornalista e defensor dos direitos humanos, tenho estado a investigar, há vários meses, uma série de execuções sumárias levadas a cabo nos municípios de Cacuaco e Viana. Estas execuções sumárias têm sido regulares e, regra geral, são imputadas a colaboradores ou agentes do Serviço de Investigação Criminal. Até ao momento, consegui obter a devida identificação de perto de cem indivíduos indefesos que foram executados no período de um ano. Além destes casos devidamente identificados, obtive ainda informações sobre mais dezenas de casos de execuções sumárias. Portanto, a minha investigação contabilizou perto de 200 execuções sumárias. Quer isto dizer que, em apenas um ano, pelo menos 200 indivíduos foram assassinados, sem direito a julgamento nem a qualquer tipo de defesa, ao que tudo indica por forças da lei. A maioria dos fuzilados — mas nem todos — tem antecedentes de detenção ou cumpriu penas de prisão, o que dá a entender que estas execuções sumárias são uma forma brutal e criminosa que as autoridades encontraram para “eliminar” a delinquência. Algumas das vítimas, porém, são inocentes, e tive a oportunidade de entrevistar dois sobreviventes: o marceneiro Emílio Manuel Mbaxi, de 22 anos, foi atingido com três tiros (abdómen, membros superior e inferior), a 21 de Janeiro de 2017; o taxista Pedro Avelino Eduardo “Abega”, de 25 anos, foi atingido com um tiro no olho e outro nas costas, que lhe atravessou o abdómen, a 4 de Fevereiro passado. Os seus testemunhos são bem elucidativos acerca dos crimes em série que estão a ser cometidos alegadamente por agentes ou colaboradores do SIC. Vale a pena, Senhor Ministro, ouvir as suas experiências.
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Nos termos do artigo 4.º, n.º 3 b) do seu Estatuto, o SIC é um serviço executivo central do Ministério do Interior, a par da Polícia Nacional, mas independente desta. Assim, o responsável imediato pelo SIC é o Ministro do Interior, a quem compete dirigir e superintender os serviços executivos centrais (artigo 7.º c) do referido Estatuto). Tendo em conta que a autoria das referidas execuções sumárias tem sido sistematicamente atribuída a agentes ou colaboradores do SIC, pedimos que o Senhor Ministro — enquanto hierarquia máxima dessa instituição policial —intervenha urgentemente, para travar e prevenir futuros crimes alegadamente cometidos por esses agentes. Assim, pela presente, solicito os V/ bons ofícios no sentido de me conceder uma audiência para apresentar — com garantias de segurança para as vítimas sobreviventes, os familiares, as testemunhas e amigos denunciantes — os resultados preliminares da minha investigação. Outrossim, poderei submeter as minhas questões por escrito. No final de Maio ou princípio de Junho, deverei publicar um relatório completo com os resultados da minha investigação, de modo a tornar públicos estes graves crimes. Nesse relatório, gostaria de poder afirmar que as autoridades competentes actuaram entretanto, por todos os meios e com toda a sua eficiência, tendo conseguido estancar a onda de assassinatos e tendo implementado medidas correctivas e formativas para que semelhantes horrores não se repitam no futuro. Na expectativa de merecer a V/ atenção, subscrevo-me com saudação patriótica.
Sinceramente,
Rafael Marques de Morais
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METODOLOGIA Dois factores essenciais determinaram a escolha dos municípios de Viana e de Cacuaco, em Luanda, como locais de investigação. Em primeiro lugar, foi aqui que se registou a ocorrência sistemática e geograficamente concentrada de execuções sumárias. Por exemplo, ao longo de vários meses, os agentes do SIC fuzilaram muitos jovens no bairro 6, município de Viana, todos eles no campo junto à Escola Primária e do 1º Ciclo do Ensino Secundário nº 5113 em plena luz do dia. Tornou-se comum que os alunos assistissem aos fuzilamentos enquanto decorriam os intervalos das aulas e, muitas vezes, os matadores interrompiam o jogo de futebol para realizarem o seu trabalho. Apesar de não ter sido possível identificar a maioria das vítimas do “Campo da Morte”, por terem sido para lá levadas de outras zonas de Viana, conseguimos contactar dezenas de testemunhas, a partir das quais pudemos compreender o modus operandi dos assassinos ao serviço do Estado. Em Cacuaco, António Bernardo, cujo filho foi fuzilado a 27 de Janeiro de 2017 frente a sua casa, descreveu o modo como eram perpetradas as execuções no bairro do Cauelele: “São mesmo os do SIC. Eles matam e depois os polícias da esquadra vêm recolher os corpos. Eles estão a matar por bairros. Iniciaram no Compão e agora passaram para o nosso bairro.” Em segundo lugar, contámos com a colaboração de 15 assistentes de campo, todos residentes nas áreas onde ocorreu o maior número de assassinatos. O seu contributo foi essencial para identificarmos os casos e para estabelecermos o primeiro contacto com os familiares das vítimas, que depois entrevistámos. Em alguns casos, não foi possível realizar entrevistas presenciais. Devido à actividade intensa dos informadores locais do SIC e às constantes rondas dos próprios matadores e agentes policiais, a tensão nos bairros afectados era excessiva. Nesses casos, optámos por entrevistar telefonicamente os familiares, junto dos quais se encontrava um dos nossos assistentes. A presença do assistente passava despercebida nestes bairros, mas dava garantias aos entrevistados sobre o nosso compromisso com os direitos humanos, e contribuía para esbater o medo que as pessoas sentiam perante o clima de terror.
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Efectuámos a recolha directa de depoimentos orais de testemunhas, familiares, vizinhos e sobreviventes. Houve também casos em que, de forma anónima, agentes envolvidos nas matanças ou chamados a “limpar” o local do crime contribuíram para reconstituir determinadas operações. Sempre que possível, para cada caso, cruzámos vários depoimentos de fontes diferentes, de modo a verificar e contraverificar os relatos. Muitos familiares, testemunhas e vizinhos inicialmente entrevistados por telefone, sentindo-se mais confortáveis, acabaram por optar espontaneamente por um contacto pessoal com o investigador principal, em locais neutros onde pudessem falar à vontade. Os depoimentos prestados por familiares e amigos não serviram, em momento algum, para inocentar as vítimas dos eventuais delitos que cometeram em vida. Trata-se do testemunho que cada um tem direito a prestar, cabendo-nos apenas fazer o seu enquadramento. Algumas famílias assumiram abertamente que os seus familiares assassinados haviam sido delinquentes, e houve mesmo quem tivesse exprimido alívio pela sua morte. Para além dos depoimentos, tivemos também a oportunidade de recolher vários documentos: certificados de autópsia, mandados de soltura, fotografias e outros elementos que nos permitiram um melhor apuramento dos factos. De fora, ficaram mais de uma centena de vítimas. Apesar de as suas mortes estarem confirmadas, não obtivemos informação suficiente para as incluir neste relatório. Na zona dos Mulenvos de Baixo, em Viana, por exemplo, seguimos relatos de fuzilamentos regulares, em números que ultrapassavam cinco a oito vítimas por cada operação. Depois das execuções, os corpos eram atirados para valas ou lixeiras. Todavia, talvez porque — conforme sugeriram os moradores locais — a maioria dos fuzilados fosse desconhecida naquela zona, não conseguimos aprofundar as investigações. Os casos que se seguem foram organizados por ordem cronológica, começando pelo mais recente.
CASOS
CASOS
O “CAMPO DA MORTE”
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CASO N.º 1: “ACABADO” NA ESQUADRA VÍTIMAS: Zito João Gonçalves “Zé Pik”, 21 anos, natural de Luanda; Juliano Chitumba “Leão”, 22 anos, natural do Huambo; Basílio Afonso Ngueve “Obama”, 18 anos, natural de Luanda DATA: 6 de Novembro de 2017 LOCAL: bairro do Compão, Kikolo, município de Cacuaco OCORRÊNCIA: Zé Pik, bailarino do grupo musical Bate à Toa, actuou num evento musical realizado junto à administração do Kikolo, até às 23 horas. De seguida, Zé Pik e dois amigos — Leão e Obama — decidiram prolongar a noite de diversão, juntando-se a uma festa no bairro da Bandeira. À meia-noite, a segunda festa foi interrompida, e os três jovens seguiram para uma terceira no salão de festas da Electro Jennifer. De madrugada fora, quando abandonaram a festa, já na via pública, três homens ordenaram aos rapazes que parassem. “A rua tinha muita iluminação e eu estava a poucos metros dos jovens. Os três jovens saíram de uma rua a correr. Três indivíduos mandaram-nos pôr as mãos ao ar”, conta uma das testemunhas. Estavam defronte da Igreja Católica local. “O Zezito [Zé Pik] parou e atingiram-no no peito. O Basílio apanhou um tiro na mão e gritou ‘não me matem só’. O Leão levou um tiro no pé e outro na barriga. Parecia morto, afinal fingiu-se, ainda tinha muita vida”, descreve. Segundo a mesma testemunha, “Basílio pulou para o outro lado da estrada e foi morto com quatro tiros na cabeça e mais um noutra mão”. Uma prima de Basílio corrobora a informação. Outra testemunha, que também prefere o anonimato, indica que os assassinos se retiraram de imediato e que Leão gritou por socorro. “Ela ainda estava bem vivo, fingiu-se de morto durante a acção.” Uma das testemunhas conta que durante o crime estava presente o Big, conhecido no bairro como colaborador do SIC e indivíduo responsável
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por indicar os alvos a abater naquela zona. “Quando os jovens são mortos nessa área, o Big está sempre presente. É ele quem mostra. O irmão dele é um grande gatuno, mas ele protege-o e manda matar muitos inocentes”, denuncia uma das testemunhas. Depoimentos de familiares e amigos indicam que Leão foi levado por um patrulheiro da Polícia Nacional. Um tio de Leão, que se recusa a falar publicamente sobre o assunto, acompanhou o sobrinho, tendo seguido também na viatura policial. Segundo vários depoimentos recolhidos, a polícia informou o tio de que o ferido teria de ser levado para a Esquadra do IFA [Comando da III Divisão, município do Cazenga], e de que só depois de aí assinado um termo de responsabilidade poderiam transferi-lo para o hospital. Consta que o ferido ainda falou com o seu tio na viagem até à esquadra. Depois, enquanto registava a ocorrência dentro da esquadra, o tio ouviu tiros, conforme declarações corroborados por familiares e amigos. Ao sair, viu o corpo do seu sobrinho no chão, já coberto. Fora assassinado dentro da esquadra com dois tiros na cabeça. “Os mesmos homens que assassinaram o Zé Pik e o Obama e deixaram o Juliano vivo foram terminar o trabalho na esquadra”, explica um dos familiares das vítimas. “Os homens que estão a fazer esse trabalho dos assassinatos são controlados pela esquadra do IFA”, denuncia outro dos familiares. Ainda outro familiar refere que um dos agentes do SIC disse ao tio que o seu sobrinho estava a ser muito procurado, estava na lista “e tinham de acabá-lo ali mesmo”. Na eventual origem destes assassinatos, os familiares revelam que, na tarde de 3 de Novembro, Leão e Obama haviam puxado a carteira de uma senhora que passava de motorizada. Consta que essa senhora regressou ao local do assalto com Big, tendo conseguido identificar os assaltantes e a residência dos respectivos familiares. “O Big disse: ‘esses miúdos vão mamar’”, conta a prima de um dos malogrados. As famílias confirmam que Zé Pik não participou no assalto, e que os meliantes obtiveram 12 mil kwanzas do roubo. Em Janeiro, no pico das matanças naquela área, a família de Obama mudou-se, procurando mantê-lo em segurança. Passados três meses, contra a vontade da família, Obama regressou, pois acreditava que nada tinha feito que justificasse a sua execução.
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“O Basílio bebia muito. Quando fazia os seus assaltos era só para beber. Uma semana antes de ser morto já estava a ser procurado. No dia da sua morte, dois agentes da DNIC [SIC] ainda se sentaram com eles na pracinha e pagaram-lhes cervejas e combinaram encontrar-se na festa”, revela a prima do malogrado. “Afinal estavam a combinar a morte deles”, afirma. CASO N.º 2: UM MAU TRABALHO VÍTIMAS: Domingos António Gaspar “Milton”, 25 anos; Lameth Pepito Laurindo “Lami-Py”, 20 anos, ambos naturais de Luanda DATA: 30 de Setembro de 2017 LOCAL: bairro da Mabor, município do Cazenga OCORRÊNCIA: Por volta das três da madrugada, os jovens Milton e Lami-Py dirigiam-se a casa, no bairro da Mabor, vindos de uma festa na Casa Dubai, no bairro Hoji-Ya-Henda, quando foram apanhados na perseguição de dois supostos delinquentes, um dos quais conhecido por Jó do Boy, por operacionais do SIC. Segundo testemunhas oculares, os quatro agentes estavam devidamente identificados com coletes do SIC, e faziam a perseguição a pé, enquanto outros dois seguiam num Toyota Land-Cruiser branco de vidros fumados. António Domingos Miguel, pai de Milton, narra o sucedido através dos depoimentos recolhidos junto dos vizinhos e outras testemunhas oculares. A 28 de Setembro, na cidade de Malanje, onde ambos viviam, Milton informara-o de que visitaria a mãe em Luanda naquele fim-de-semana. E assim fez. “A 50 metros de casa, os jovens foram surpreendidos pelo SIC. Os vizinhos que escutaram pela janela disseram-me que o meu filho ainda conversou com os homens do SIC. Explicou-lhes que vivia em Malanje, tinha terminado o curso de electrónica.” Durante a conversa, um dos agentes fez um disparo para o chão e, segundo dois jovens que assistiam, a bala atingiu a perna esquerda de Milton, que logo
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gritou por socorro. Uma vizinha abriu a porta para atestar o bom carácter dos jovens. “Os rapazes imploraram, disseram que nunca foram bandidos. Os homens do SIC ainda consultaram as suas listas de alvos a abater, mas um deles fez logo um disparo que atingiu Milton no peito. O meu filho morreu na estrada”, conta o pai. Por sua vez, Lameth, ao ver o amigo tombado, encetou a fuga aos gritos de socorro. Tentou entrar em casa da vizinha, que, em vão, alertou os perseguidores de que os jovens eram “bons” filhos do bairro. “Cala a boca e fecha a porta, se não queres morrer”, ameaçou um dos agentes, segundo depoimentos recolhidos no local. Lameth fugiu por um beco sem saída, o mesmo por onde seguira Jó do Boy. Escondeu-se na casa de banho (separada da casa) de uma vizinha. “Fuzilaram-no na casa de banho, à queima-roupa, com um tiro do lado direito da cabeça e outro da testa, no canto onde estava de cócoras. Deixaram-no aí”, relata um dos vizinhos. “O meu vizinho Bebucho, que assistiu a tudo, foi quem apanhou o Jó do Boy na fuga. Os agentes algemaram-nos a ambos e ali mesmo perguntou ao Bebucho se este os tinha visto a matarem os seus amigos. Libertaram-no”, conta o pai de Milton. Acto contínuo, os agentes conduziram Jó do Boy à 13ª Esquadra da Polícia Nacional, do Hoji-ya-Henda. Os corpos dos malogrados foram recolhidos pelo SIC, por volta das cinco da manhã, sem qualquer perícia legal. O comandante Quintas, dirigiu-se ao local do crime para se inteirar do caso e, diante de vários residentes, disse apenas: “Mais um mau trabalho.” O seu comentário gerou algazarra entre os moradores e vizinhos dos jovens assassinados, tendo o pai de Lameth, o oficial das FAA, Pepito Laurindo, acalmado os ânimos. A Esquadra do IFA [Comando da III Divisão da Polícia Nacional no município do Cazenga], é onde opera o famoso executor Pula-Pula, descrito em vários casos aqui reportados. “O Jó do Boy foi morto nessa mesma noite pelo SIC, e o seu corpo depositado directamente na morgue. Os familiares foram ter com o meu vizinho, que explicou apenas tê-lo agarrado. Um agente teve pena da família e, a 2 de Outubro, informou-os de que o Jó do Boy fora morto no mesmo dia e que o seu corpo se encontrava na morgue, entre os não identificados”, refere o pai.
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Para António Domingos Miguel, “o comando da Polícia Nacional no Cazenga sabe quem fez o trabalho. Estão a esconder os assassinos”. “O Toledo, chefe de buscas e capturas, teve a ousadia de me perguntar — na minha cara — se o meu filho e o amigo não eram do grupo do Jó do Boy”, denuncia. “Precisamos de justiça. É uma dor que não vai acabar. Eu estava a formar este filho”, lamenta. A propósito de Toledo, vale a pena evocar a memória do assassinato de três jovens a 3 de Junho de 2014. MEMÓRIA SOBRE O TOLEDO Eis os trechos da história publicada no Maka Angola a 6 de Junho de 2014, os quais revelam que as execuções sumárias obedecem a um padrão e que as autoridades protegem e promovem abertamente os assassinos. (https://www.makaangola.org/2014/06/foi-hoje-o-funeral-dos-tres-jovens-assassinados-no-golf-ii/) “Os três jovens assassinados a 3 de Junho, na Zona do Golf II, por indivíduos identificados como sendo membros do Grupo Operativo da 32ª Esquadra da Polícia Nacional, foram a enterrar hoje no Cemitério da Camama, em Luanda. Joice Neto assistiu ao assassinato dos três jovens, incluindo do seu irmão mais velho, Damião Zua Neto “Dani”, de 27 anos, a poucos passos da sua residência. O Maka Angola esteve nos funerais e deslocou-se ao local do crime, onde Joice reconstituiu os momentos do ataque. O ASSASSINATO Pouco depois do meio-dia, do seu quarto, Dani pediu à irmã para ir atender à porta, supondo ser um cliente interessado em comprar gelado de múcua, que a família produz e vende em casa. Joice Neto saiu à rua, ouviu um estrondo e viu uma viatura Hyundai Accent imobilizada, com dois ocupantes, na esquina da rua, enquanto uma viatura Toyota Hiace bloqueava a estrada e alguns dos seus ocupantes saíam armados. Ao reconhecer um amigo ao volante, o seu irmão saiu de casa e dirigiu-se ao carro, “para saber o que se passava”, contou Joice. Ainda de acordo com o seu depoimento, “os agentes deram dois tiros para o ar, para afugentar as pessoas, e depois dispararam contra o meu irmão. Um tiro atingiu-o na cabeça e outro na virilha”.
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“Comecei a gritar ai, meu irmão! Ai, meu irmão! O meu irmão levantou a cabeça, olhou-me apenas e morreu. Eu estava a gritar demais”, acrescenta Joice.Seguiu-se uma saraivada de tiros contra o carro. O amigo de Dani que se encontrava ao volante da viatura, Gosmo Pascoal Muhongo Quicassa “Smith”, de 25 anos, morreu cravejado com 14 tiros, concentrados na parte esquerda do corpo, segundo o resultado da autópsia, revelado ao Maka Angola pelo padrasto Manuel Contreiras, de 26 anos, foi atingido no pé. Desceu da viatura e, segundo as testemunhas, implorou aos executores que poupassem a sua vida, porque tinha pedido apenas uma boleia até à estrada principal, onde deveria apanhar um táxi até Viana e dali o transporte para a sua terra natal, na província de Malanje. “O assassino olhou-o apenas. O motorista do Hiace desceu da viatura e com a AK atingiu o meu irmão no abdómen e deu-lhe outro tiro na cabeça”, lamentou Samuel Contreiras, irmão do malogrado. As primeiras testemunhas informaram o Maka Angola de que Manuel se encontrava no assento de trás. A informação errada deveu-se à disposição em que os corpos se encontravam quando as testemunhas se aproximaram do local do crime. Dani morreu junto à roda da frente, do lado direito da viatura, e Manuel, que dela descera, foi abatido junto às portas. (…) QUEM MATOU? O irmão mais velho de Manuel, Tiago Contreiras, em casa de quem aquele pernoitara e com quem tinha tomado o pequeno-almoço bem cedo, é primeiro subchefe do Posto Policial do Fubu, no município de Belas. Depois dos assassinatos, Tiago Contreiras foi chamado pelo oficial Beto Kinjila, chefe da Linha Operativa do Kilamba Kiaxi, que dispõe de um gabinete no referido posto. “O chefe Beto informou-me de que o grupo operativo, comandado pelo Toledo, tinha abatido três marginais no Golf e ordenou-me que fosse com uma patrulha fazer a remoção dos corpos. Eu disse que aquela zona era da responsabilidade da Unidade do Kilamba Kiaxi e saí para cuidar de outra missão”, disse ao Maka Angola o subchefe Tiago Contreiras. Vários minutos depois, alguns familiares, não tendo conseguido telefonar-lhe, apareceram no posto, para o informar do sucedido.
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Só então me apercebi de que os meus colegas mataram o meu irmão. Fui perguntar ao senhor Beto Kinjila sobre quem matou aqueles três marginais. Nessa altura, ele [Beto Kinjila] já sabia que os seus homens tinham matado o meu irmão. Então, ele disse-me que eu estava a acusá-lo e que faria uma informação a pedir a minha demissão e expulsão da polícia”, conta Tiago Contreiras. “Eu conheço bem o Toledo, sabia que ele ia ao volante do Hiace. E todos os outros elementos, depois disso, vieram ao Posto. São colegas. Só não sabia que tinham assassinado o meu irmão”, disse o policial enlutado no dia a seguir aos assassinatos. (…) CASO N.º 3: CENOURA VÍTIMA: “Cenoura” DATA: 10 de Setembro de 2017 LOCAL: Campo da Morte, bairro 6, município de Viana OCORRÊNCIA: “Cerca de seis ou sete elementos, trajados com coletes do SIC ao avesso, detiveram o Cenoura em casa, entre as três e as quatro da madrugada. Eu vi quando o levaram para um Toyota Land-Cruiser de vidros fumados”, explica um vizinho sob anonimato. Cenoura vivia a poucos metros do Campo da Morte, em casa da sua mãe. Por volta das seis da manhã, os mesmos agentes regressaram com Cenoura e encaminharam-no para o Campo da Morte, onde o fuzilaram com um tiro na cabeça e outro no peito. O mesmo vizinho explica que Cenoura era apenas estudante. “Tinha más companhias, mas não víamos nada no comportamento dele que justificasse ser fuzilado.” Entre a vizinhança, consta que a mãe de Cenoura, viúva, abandonou a casa por desgosto pela morte do único filho, com quem vivia.
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CASO N.º 4: “SÃO GATUNOS E MERECERAM MORRER” VÍTIMAS: Mendik Pedro Samuel “Kabila”, 22 anos, natural do Uíge; Inácio Fernando Romão, 21 anos, natural de Luanda DATA: 20 de Abril de 2017 LOCAL: bairro Malueca, município de Cacuaco OCORRÊNCIA: Mendik Pedro Samuel “Kabila” residia em Caxito, província do Bengo, e deslocava-se regularmente a Luanda para visitar os pais e irmãos no bairro Malueca, município de Cacuaco, e, em particular, a mulher e a filha, residentes no bairro do Golf. Em 20 de Abril passado, visitou primeiro os pais, dirigindo-se depois ao Golf, em companhia do amigo Inácio Fernando Romão, ao encontro da esposa e da filha, junto de quem jantou. Os pais e irmãos falaram com Kabila pela última vez depois do jantar, quando este telefonou ao irmão (Guilherme Pedro Samuel “Gui”) para saber da veracidade de uma mensagem que entretanto recebera de fonte não especificada. Segundo essa falsa mensagem, o irmão Matondo, de 18 anos, fora capturado. A família explica que, tal como tem acontecido com outros jovens por todo o bairro, o adolescente “está a ser procurado pela DNIC [SIC], para ser abatido”. Em 2014, Matondo estivera detido duas vezes, num total de seis dias, por suspeita de furto. Por volta das 4h00, uma vendedeira de pão viu dois corpos a serem despejados de uma viatura minivan JinBei (pintada de azul e branco) por dois indivíduos. Os corpos foram atirados na lama, num beco ao lado de uma padaria, no desvio de Malueca. A vendedeira alertou a vizinhança. A família de Kabila acorreu ao local e deparou-se com o seu cadáver e o de Inácio, identificando sinais de que tinham estado amarrados e haviam sido torturados. Gui notou que o seu irmão Kabila tinha sido injectado com um líquido no braço esquerdo, que provocara bolhas na pele. De acordo com Eva Paulina, mãe de Kabila, um dos três investigadores do SIC presentes no local informou-a apenas de que os defuntos “são gatunos e mereceram morrer”.
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Por sua vez, o pai de Inácio, Fernando Romão, conta que os três investigadores lhe pediram que os acompanhasse até ao quintal da padaria, para anotarem os dados de identificação do seu filho e da família. “Um deles tirou a mochila das costas, tirou de lá um caderno de apontamentos e tirou também fotografias. Mostrou-mas e disse-me: ‘Esses [jovens] são perigosos, um deles estava fugido, mas já está a ser procurado e faltam esses [para serem eliminados].’” “Vi também as fotografias do Inácio e do Kabila [enquanto vivos] e perguntei porquê”, prossegue Fernando Romão. “Eles responderam-me que eram da investigação criminal e perguntaram-me se eu queria julgá-los ou se eram eles quem tinha o direito e o poder de julgar.” “Então, perguntei-lhes se tinham sido eles a matar o meu filho e o amigo Kabila. Responderam-me que eu estava a acusar a autoridade e estava estressado. Disseram-me que a polícia não mata. Prende e entrega ao Ministério Público”, acrescenta. Fernando Romão viu dez fotos e afirma que “esses que faltam [para serem eliminados]” são oito. “Então fiquei a saber que foram eles [elementos do SIC] que mataram o meu filho e o seu amigo. Entreguei-lhe os dados que me pediram, meteram o caderno e as fotografias na mochila e saímos do quintal”, conclui. Conceição Pedro Samuel, irmã de Kabila, sublinha que três agentes do SIC, afectos à Esquadra do Alfa-5, foram depois a casa da namorada do irmão mais novo de Kabila (Luís Pedro Samuel “Matondo”), dizendo-lhe: “Já matámos o teu cunhado, só falta o teu namorado.” Dois dias mais tarde, quando foram à morgue para levantar os cadáveres e realizar o funeral, os familiares passaram por novo episódio envolvendo o SIC. Eva Paulina recorda a troca de palavras que tiveram com o médico legista porque o SIC havia registado no seu relatório de remoção de cadáveres que os jovens foram mortos a tiro. O médico exigia dos familiares explicações sobre aquela inverdade oficial. Por sua vez, “os homens do SIC, lá na morgue, perguntaram de que é que o meu filho morreu? Respondi-lhes que quem sabia já estava morto [o filho] e que eu não tinha presenciado o homicídio. Então, insistiram que eu, como pai, sabia por que o meu filho morreu”, relata Fernando Romão. Os investigadores informaram ainda o pai de Inácio sobre o conteúdo do relatório que traziam consigo, no qual o filho e o amigo eram descritos como delinquentes.
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Por ter defendido que o filho era bem-educado e “limpo” enquanto cidadão, os agentes acusaram Fernando Romão de irrealismo. O pai explica que Inácio esteve de facto detido durante um ano (foi libertado em Junho de 2016), por suspeita de furto, mas que o suposto crime nunca foi devidamente explicado à família nem esclarecido perante ninguém. “Um dia, a polícia e a DNIC [SIC] apareceram-me aqui em casa com o meu filho algemado e muito torturado, todo ensanguentado. Nem sequer conseguia abrir os olhos, de tão inflamados que estavam. Perguntei-lhes qual era o crime e disseram-me que ele foi apanhado a fazer um assalto mas não podiam revelar mais nada, porque era segredo de justiça. Fiquei sem saber o que tinha sido assaltado”, recorda. E acrescenta que o seu filho foi denunciado por um desconhecido que havia sido bastante torturado e obrigado a indicar alguém. Conceição Pedro Samuel, irmã de Kabila, conta ter sido detida nesse mesmo dia pelos mesmos agentes do SIC, às 4h00 da madrugada, sem contudo se lembrar da data: “Eu estava em casa havia dois dias, depois de ter passado três semanas no Hospital do Cajueiro, onde o meu filho de sete meses esteve internado. O Inácio, depois de levar tanta porrada que lhe abriram a cabeça, deu o nome do meu irmão Kabila. Como não o encontraram, deram-me bofetadas e levaram-me a mim e ao meu bebé.” “Levaram-me a casa da minha irmã, onde os polícias roubaram o plasma [televisor], a botija de gás e o computador do cunhado dela. Ficaram a girar comigo o dia todo, passei também pela Divisão do Rangel e depois abandonaram-me distante de casa”, acrescenta Conceição Pedro Samuel. Já no Comando de Divisão do distrito urbano do Rangel, onde Inácio havia sido torturado, os agentes solicitaram ao pai que comprasse medicamentos para salvar a vida do filho, que entretanto perdera os movimentos nas mãos devido à tortura. “Arranjei o enfermeiro que o observou e, durante 15 dias, fui à esquadra todos os dias para lhe fazer massagens até ele recuperar os movimentos. Depois de ele melhorar, foi julgado e condenado.” “Perguntei ao juiz por que o condenou a um ano de prisão? Não havia provas, testemunhas, nem mesmo a polícia que o prendeu. No MPLA não há nada disso, provas. Isso era no tempo colonial”, lamenta. Entretanto, entre 2015 e 2016, Kabila passou mais de um ano em prisão preventiva, na comarca de Viana. Na altura, segundo a família, foi detido por um colaborador do SIC (ligado às Esquadras do Bom Pastor, Alfa-5 e Asa Branca). “Esse Francisco [o referido colaborador] queria a motorizada do
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meu irmão, que estava devidamente legalizada, e passou a usá-la como sua”, denuncia a irmã. “O meu irmão foi condenado pelo Tribunal Municipal de Cacuaco sem que tivesse aparecido um único queixoso, nem mesmo a polícia a informar sobre o crime que ele tinha cometido. Obrigaram-nos a pagar 150 mil kwanzas de caução e mais 30 mil kwanzas ao homem que o foi tirar da cela”, prossegue. Quatro dias antes, de acordo com depoimentos da família, um vizinho, devidamente identificado como colaborador do SIC e conhecido apenas por Big, entregou um número de telefone a Gui, irmão de Kabila, para que este último lhe telefonasse mas a partir de um telefone estranho. “O Kabila ligou do número dele e quatro dias depois estava morto. O Big deixou de circular na vizinhança”, afirma Eva Paulina. CASO N.º 5: CERCADOS VÍTIMAS: Moisés Ângelo Fernando “Picatchu”, 22 anos, natural de Luanda; Eduardo Chilombo “Edu”, 21 anos, natural do Kwanza-Sul; Chilala (não foi possível obter mais informações sobre o jovem) DATA: 15 de Abril de 2017 LOCAL: bairro Ngola Kiluange, município de Cacuaco OCORRÊNCIA: Na noite de 14 de Abril, três amigos tomavam bebidas alcoólicas na rua quando se envolveram numa altercação entre si. “Uns indivíduos do SIC estavam a passar e perguntaram [a algumas testemunhas oculares da briga] se os jovens eram delinquentes”, conta uma das testemunhas, sob anonimato. Perto das seis da manhã, de regresso a casa, os rapazes foram cercados na zona do Colégio Jeremias, junto à residência de Moisés. De acordo com os depoimentos recolhidos no local, Chilala foi o primeiro a ser morto com quatro tiros na região abdominal. Picatchu fugiu para a casa de uma vizinha, em cuja varanda foi crivado de balas: sete tiros no peito e um no pé. Morreu ali mesmo.
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Picatchu tinha cadastro criminal. Em 2013, fora detido por ter roubado 25 pares de chinelas de plástico e 50 mil kwanzas, permanecendo no cárcere por três anos. Pouco depois da sua libertação, em 2016, em mês não preciso, o jovem foi de novo parar à cadeia, desta vez por seis meses, por suspeita de furto de telemóvel. A irmã mais velha de Picatchu, Júlia, afirma que, durante a detenção pelo furto do telemóvel, ele e os seus amigos haviam sido apanhados com uma arma na mochila. “Nós [família] pagámos cem mil kwanzas aos investigadores do SIC, no Comando Municipal de Cacuaco, por insistência da minha mãe, que queria o filho em liberdade. E ele foi libertado”, revela Júlia. À data da sua morte, Picatchu encontrava-se em liberdade havia apenas um mês. “O que esse tipo de pessoas espera? Dói-nos, como família. Como mais velhos, vimos o bem e o mal, e aconselhámo-lo a seguir o caminho do bem, mas ele não ouvia, queria cometer. Era drogado e faltava ao respeito à família”, lamenta a irmã. “Não posso defendê-lo. Não tenho como. Senti uma dor de leve, mas não esperava outra coisa. Os vizinhos informaram-nos de que foi a DNIC [SIC] quem os matou. Eu não vi, porque estava a dormir. Soube também que, quando estavam a lutar à noite, os homens da DNIC passaram e perguntaram sobre o que se estava a passar”, conclui. CASO N.º 6: O GATUNO É O SETENTA VÍTIMA: Eduardo Mbuta Mbindiangani “Tonton”, 36 anos, natural do Uíge DATA: 12 de Abril de 2017 LOCAL: bairro da Mabor, município do Cazenga OCORRÊNCIA: Após ter assistido o jogo de futebol entre o Barcelona e a Juventus, para a Liga dos Campeões, Tonton e amigos puseram-se à conversa na rua, para comentar o resultado da partida e falar de assuntos da igreja a que todos pertenciam. “O meu sobrinho [Tonton] estava a conversar quando esse gatuno afamado do bairro, conhecido como Setenta, apareceu e ficou a ouvi-los.
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Três polícias fardados, que tinham deixado o carro escondido junto à igreja muçulmana, vieram”, descreve o tio Lucau. A seguir, “o senhor da DNIC [SIC] aproximou-se do grupo. Não deu boa noite e disparou logo contra o meu sobrinho, atingindo-o na perna com uma bala incendiária. O meu sobrinho gritou logo e perguntou por que razão lhe estavam a dar um tiro, se o gatuno estava ali ao lado”, continua Lucau. “Então, os polícias deram conta do engano. O que disparou deixou o meu sobrinho e foi contra o gatuno, que já estava a fugir. Deu-lhe um tiro nas costas e outro no fígado. Ele caiu no outro quintal”, afirma o tio, porta-voz da família. Os agentes policiais deram Setenta como morto e, quando se retiravam do local, foram confrontados por Tando, irmão de Lucau, que assistiu ao episódio: “O meu irmão disse-lhes ‘vocês deram tiro a um inocente. Deixaram o gatuno e agora vão embora sem socorrerem o inocente?’” Entretanto, Setenta foi socorrido pela mãe e levado para o Hospital Américo Boavida. Sobreviveu. Tonton faleceu no mesmo hospital, 24 horas após ter sido alvejado. De acordo com família e vizinhos, Eduardo Buta Mbindiangani “Tonton” dedicava-se ao comércio na fronteira do Luvo (Mbanza-Kongo), Kinshasa (RDC) e Congo. “O meu sobrinho estava para viajar na mesma semana para Londres. Já o tinha visto, tinha tudo organizado para ir viver lá”, conta o tio. A família nota que Tonton “nunca esteve detido, nunca teve problemas. Era muito conhecido na Mabor. Mataram-no por engano”. O tio Lucau afirma que os executores provinham da Esquadra da D. Amália, “que está sob comando da Esquadra do Kimakieto”. “Apresentámos queixa à DNIC [SIC] e não obtivemos nenhum resultado. Na Esquadra da D. Amália disseram-nos apenas ‘eh pá, isso aconteceu. Pronto’. Não deram importância nenhuma”, explica. Persistente, a família dirigiu-se à Direcção Provincial de Investigação Criminal (DPIC), onde apresentou nova queixa. “Tiraram umas notas sobre o que dissemos e mais nada. Esses homens não dão valor à vida humana”, lamenta.
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CASO N.º 7: AVISO: NO BAIRRO 6 ESTÃO A MATAR VÍTIMAS: Bruno Sebastião da Silva Rodrigues, 20 anos, natural de Luanda; Osvaldo Bumba “Juquinha”, 17 anos, natural de Luanda DATA: 9 de Abril de 2017 LOCAL: Rua da Mamá Gorda, bairro 6, município de Viana OCORRÊNCIA: Juquinha despediu-se da família, residente no bairro do Rocha Pinto, numa sexta-feira (7 de Abril), para ir a uma festa no bairro 6, onde vive a sua mãe e onde antes residia. “Eu avisei-o para não voltar ao bairro 6, porque lá estão a matar. O Bruno veio buscá-lo a casa”, conta José Bumba, irmão da vítima. No dia fatídico, Juquinha e o amigo foram levados por quatro agentes que circulavam em duas motorizadas, cada um entre dois agentes. No local do assassinato, Juquinha e Bruno Sebastião foram retirados das motorizadas. “O meu irmão foi atingido com dois tiros nas costas e um na cabeça”, revela José Bumba. “Eles [os dois amigos] foram encontrados numa sentada [convívio social]. Acredito que as autoridades que os mataram têm de ter uma ordem superior. Os órgãos superiores têm motivos, em função do comportamento dos jovens”, explica o tio de Juquinha, que prefere não ser identificado pelo nome.“O meu sobrinho mexia [cometia actos de delinquência]. Passou um ano e meio, entre 2015 e 2016, na Remar [ONG] do Porto Amboim, para ser reeducado, mas voltou e continuou com a sua vida”, explica. Teresa Sebastião Domingos revela apenas que foi informada da morte do seu filho Bruno passadas duas horas, e que chegou ao local por volta das 16h00. Bruno tinha sido libertado em Janeiro passado, depois de ter estado detido na Esquadra dos Contentores [44.ª Esquadra, em Viana] e quase dois anos na Comarca Central de Luanda. “Esteve esse tempo todo detido, sem nunca ter sido ouvido e sem ter sido julgado por suspeita de assalto a uma cantina”, lamenta a mãe.
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CASO N.º 8: NÃO FAZ SENTIDO DEFENDÊ-LO VÍTIMA: Bráulio Matias “Fogo de Deus”, 24 anos DATA: 21 de Março de 2017 LOCAL: bairro da Cuca, zona do Curtume OCORRÊNCIA: Por volta das 19h30, agentes do SIC detiveram Fogo de Deus em casa, diante dos familiares. Pouco mais de uma hora depois, alguns amigos encontraram o seu corpo na berma da estrada, com dois tiros no abdómen. A irmã de Fogo de Deus, que preferiu não ser identificada, confirmou que o seu irmão era delinquente. “Não faz sentido defendê-lo”, disse, quando questionada sobre o assassinato. CASO N.º 9: OS LOBOS E OS MINI-LOBOS VÍTIMA: Catenda João Fernando “Scooby-Doo”, 35 anos DATA: 23 de Fevereiro de 2017 LOCAL: bairro da Calemba OCORRÊNCIA: Scooby-Doo encontrava-se numa festa, no Campo da Tourada, quando um conhecido seu o informou de que a namorada se encontrava fora do recinto da festa e gostaria de falar com ele, com urgência. Scooby-Doo saiu à rua, mas não viu a namorada. Enquanto falava com uma vendedeira de pinchos, recebeu um tiro na nuca e outro nas costas. A vítima caiu de joelhos e o seu algoz executou-o com um tiro da cabeça e outro pescoço. “O que chamou é um. O que fez o disparo é outro. A família conhece ambos, porque vivem no bairro”, refere António Diogo, primo da vítima.
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Scooby-Doo esteve detido duas vezes. A primeira, no ano passado, durante quatro meses. Dias antes de ter sido morto esteve detido por uma semana, mas a família não revelou os motivos destas detenções. Segundo o primo, Scooby-Doo fez parte do grupo “Lobos do Jumbo”, que realizava festas raves. “Havia outro grupo, os mini-lobos, que eram marginais, e um deles tinha adoptado também a alcunha do meu primo”, sublinha António Diogo.
CASO N.º 10: TÃO LOGO SAIU EM LIBERDADE VÍTIMAS: Senas Pedro Kiala “Senacristo”, 25 anos; António Matias da Conceição, 31 anos, natural do Bengo; Osvaldo Miguel Arriaga, 26 anos; um indivíduo não identificado; Hélder Pedro Kiala, 20 anos [irmão de Senacristo, morto a 16 de Junho de 2016] DATA: 29 de Janeiro de 2017 LOCAL: Traseiras do Estádio 11 de Novembro, município de Viana OCORRÊNCIA: Em Junho de 2015, Senacristo e mais oito membros do seu grupo foram detidos por suspeita de assalto a um banco. A 15 de Dezembro de 2016, foram libertados. O caso de Senacristo proporciona um melhor entendimento sobre o modus operandi do SIC. Em 2015, o SIC deteve Senacristo, o pai, duas irmãs e a esposa. “Eu também fui espancado na Esquadra da Centralidade do Kilamba. O chefe da investigação acusou-me de ser cúmplice do meu filho. Eu e o meu filho fomos espancados na mesma sala. Pedi que o torturassem longe da minha presença ou que nos matassem a ambos. Levei uma bofetada tão violenta na cara que caí”, recorda António Kiala. “Um chefe que veio do Comando Provincial [da Polícia Nacional] exigiu a minha soltura, das filhas e da minha nora, tendo afirmado que o crime não
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é transmissível. O mesmo chefe perguntou se todos os que são detidos são-no com as suas famílias”, relata. Passados dois dias, os mesmos familiares foram de novo detidos, desta vez incluindo um irmão de Senacristo, João Pedro, e conduzidos à casa do suspeito, nas imediações do Estádio 11 de Novembro, em Viana, para mostrarem as armas. Sem o conhecimento da restante família, João Pedro e a cunhada tinham enterrado quatro Kalashnikovs e uma pistola pertencentes a Senacristo. Os dois passaram três meses detidos como cúmplices. “A partir daí, o SIC vinha sempre a minha casa, como se fossem regularmente a um restaurante deles. Ameaçavam-me directamente, como aconteceu na Esquadra do Kilamba, que matariam o Senacristo tão logo ele saísse em liberdade”, revela o pai. Depois, numa das suas visitas regulares, os homens do SIC constaram que havia mais filhos: “Afinal este mais velho tem muitos filhos [eu tinha sete filhos e duas filhas] e a nossa missão é a de matar, mas quando chegamos aqui há sempre intervenção.” António Kiala explica que um dos agentes envolvidos na detenção de Senacristo, conhecido com Mapanda, “ligou ao chefe a pedir autorização para matá-lo, mas o chefe recusou”. “É isso que eles consideravam intervenção”, enfatiza. “Esse Mapanda namorava com a mulher do meu filho e, por isso, não queria que eles voltassem a viver juntos. Quando o meu filho saiu da cadeia, exigi que deixasse a mulher e ficasse comigo na lavra, em Caxito, mas ele não me ouviu. O amor é mesmo assim”, denuncia. Com Senacristo e João detidos, António Kiala encontrou conforto na visita do seu filho Eduardo, de 19 anos, estudante universitário no Uíge. No dia em que este chegou a Luanda, a casa do pai, foi imediatamente detido pelos agentes do SIC e passou uma noite na cadeia, “sem motivo”. A 16 de Junho de 2016, Hélder Pedro Kiala, de 20 anos, que também estudava no Uíge, deslocou-se a Luanda para ver a família e comprar uma motorizada. “Não o vimos vivo sequer. No dia seguinte, ouvimos dizer que estava morto no bairro Hoji Ya Henda. Fomos vê-lo e não tinha sinais de tiro. Cortaram-lhe as veias da nuca. Agora entendo as ameaças dos homens do SIC, que eu tinha muitos filhos”, nota António Kiala. A 28 de Janeiro passado, Senacristo saiu de manhã para tratar de documentos pessoais. A 29 de Janeiro, de madrugada, juntamente outros três indivíduos foram executados nas imediações do Estádio 11 de Novembro, todos com
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tiros na cabeça. Um jovem postou as imagens na sua página de Facebook. Durante o dia, os corpos foram removidos e deitados noutro local, conforme depoimento que se segue. A 1 de Fevereiro, as famílias identificaram as vítimas já na Morgue Central. ANTÓNIO MATIAS O sogro Ramiro “Kito”, em casa de quem António Matias vivia, ofereceu-lhe boleia para ir buscar o bilhete de identidade de que havia tratado. António recusou, preferindo ir com amigos, por volta das 10h00. Caminhou cerca de 500 metros até à paragem de táxi, e essa foi a última vez em que familiares e amigos o viram com vida. De acordo com o sogro, o corpo de António foi lançado numa pequena lixeira em Viana, juntamente com os corpos dos dois amigos, Osvaldo e Senacristo, na noite seguinte, próximo do DreamSpace, embrulhados em sacos de plástico pretos. “Os guardas locais viram uma carrinha Mitsubishi Canter a deixar três sacos de lixo e acharam um bocado estranho que desconhecidos fossem deitar lixo ali carregado numa viatura, mas nada disseram. Depois, deram conta de que eram os corpos.” “Nas diligências por nós efectuadas, recebemos a informação de que eles foram mortos pelo Anderson ‘DCP’, pelo Coló (do Marçal), pelo Vander (da Ilha de Luanda), pelo Nucho (Luanda-Sul) e pelo Manda Mbula (Rangel). São bandidos muito famosos, colaboradores do SIC”, revela o sogro. António foi atingido com um tiro no nariz e, segundo o sogro, apresentava sinais de tortura. Os outros dois, também segundo o seu testemunho, foram mortos com tiros na cabeça e exibiam sinais de tortura. OSVALDO ARRIAGA “Eu gostaria de saber o que aconteceu. O meu irmão foi morto com um tiro na testa. Só o reconhecemos pela roupa. Parece-me que foi muito torturado, porque só tinha dois dentes na boca”, afirma Paula, irmã de Osvaldo Arriaga. Acusado de roubar um cartão multicaixa, Osvaldo estivera preso, recebendo ordem de soltura a 28 de Novembro de 2016. “A DNIC [SIC] foi a casa do meu irmão mais velho e levou uma viatura i10, uma aparelhagem de som muito cara, um Hiace e uma motorizada (que eram do meu irmão mais velho). Nunca devolveram os bens”, conta Paula.
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Segundo a jovem, pela libertação de Osvaldo, a família fora obrigada a pagar dois milhões de kwanzas, transferidos para “uma conta do Estado”. Ele não foi a julgamento e assinava quinzenalmente, sob termo de identidade e residência, no Tribunal do Kilamba Kiaxi. Os três tinham registo criminal. “O António saiu em liberdade condicional em Julho do ano passado, depois de nove meses detido por tráfico de droga”, diz Ramiro “Kito”, que o acompanhava às audiências de julgamento, em curso quando foi morto. Osvaldo e Senacristo também se encontravam em liberdade condicional, depois de terem sido detidos por assalto ao banco BIC de Viana. Quando participaram o caso ao SIC, “disseram-nos apenas: ‘está registado’. Mais nada”, lamenta Ramiro “Kito”. CASO N.º 11: FUZILAMENTOS COM VISÃO CRISTÃ VÍTIMAS: Borges Domingos Mateus “Chá Preto”, 25 anos, natural de Luanda; Josimar António Gaspar “Subeto”, 19 anos, natural de Luanda; Tunga (sem mais informações sobre a sua identidade) DATA: 8 de Março de 2017 LOCAL: bairro da Boa Fé (Caop C), município de Viana OCORRÊNCIA: Depois de terem rondado o local em observação visual — tendo sido notados por familiares e vizinhos — quatro agentes à paisana, armados com pistolas, cercaram e detiveram Chá Preto, Tunga e Subeto, em casa deste último. Subeto tentou fugir, mas foi apanhado num quintal vizinho. A família registou que eram 14h10 quando os agentes transportaram os detidos numa viatura Toyota Land-Cruiser de cor branca e vidros fumados para a Esquadra da Boa Fé. Os três rapazes eram membros do gangue “Os Mileva”. Segundo familiares e amigos, Chá Preto havia escapado à execução sumária por duas vezes, enquanto Subeto, de acordo com o seu tio Tony (assim quer ser identificado),
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esteve detido duas vezes por assaltos. “A primeira vez, em 2014, o Josimar passou sete meses na Comarca de Viana, a segunda ficou dois meses. Eles [Mileva] assaltavam os cidadãos que estivessem a passar”, explica o tio. Depois das 19h00, a família recebeu a notícia de que os três jovens tinham acabado de ser executados junto à Igreja da Visão Cristã, nas proximidades da sua residência. “Quando lá chegámos, as testemunhas [oculares] informaram-nos de que os jovens foram levados de motorizadas até ao local. Disseram às pessoas para se trancarem dentro de casa e foram mulheres que dispararam”, conta o tio Tony. “O meu sobrinho Josimar levou oito tiros na cabeça e nas costas. A maior parte foi na cabeça, e estava amarrado. O Tunga apanhou três tiros nas costas e um no pé. Chá Preto, segundo a família, morreu algemado com oito balas crivadas no corpo, incluindo várias na cabeça. Durante 15 horas, os corpos ficaram expostos no local. Foram recolhidos no dia seguinte pelo SIC, depois das 11h00. “O menino mexia [assaltava]. Sinceramente, todos nós temos os nossos erros e defeitos, mas não concordamos com esses fuzilamentos. A polícia fez isso e já não temos como reclamar”, lamenta o tio Tony. CASO N.º 12: O MATADOR TROCA-TIROS VÍTIMA: André Cardoso Pinto “Ti 500”, 22 anos DATA: 7 de Março de 2017 LOCAL: Praça do Justiceiro, Kikolo, município de Cacuaco OCORRÊNCIA: Às quatro da madrugada de 25 de Fevereiro, três investigadores do SIC e um agente da Polícia Nacional detiveram André Cardoso Pinto “Ti 500”, que se encontrava em casa de uma irmã. De manhã, a família procurou-o pelas esquadras e encontrou-o na Esquadra da Bananeira. Tinha sido torturado. Ti 500 passou três noites detido.
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“A polícia cobrou-nos 30 mil kwanzas para libertá-lo. Não tínhamos, levámos 15 mil kwanzas e eu entreguei pessoalmente o dinheiro nas mãos do investigador do caso, o Pula-Pula. Tivemos de ir à Esquadra do IFA [Comando da III Divisão da Polícia Nacional], no Cazenga, onde o Pula-Pula trabalha”, revela Delfina Teresa, uma das irmãs da vítima. Segundo relata Delfina, ao pagar, Pula-Pula avisou que o irmão seria morto em breve, ali mesmo, na esquadra. Para além de Delfina, testemunharam esta conversa a mãe, Teresa Adão, a prima Débora e a irmã Eliete. A partir de então, Ti 500 passou a ser controlado por Léu e Troca- -Tiros, pertencentes à Esquadra da Bananeira. Troca-tiros fazia-se sempre acompanhar do agente De Paiva, também conhecido como “Pega”. Segundo Teresa Manuel Adão, “Pega é o bufo que trabalha na Esquadra da Bananeira”. Delfina esclarece: “A minha irmã Eliete conhece-os muito bem, pois vive ao lado da esquadra.” Uma semana depois, no fatídico dia 7 de Março, perto das 20h00, Ti 500 saiu da casa da irmã Delfina e dirigiu-se à Praça do Justiceiro, para comprar bolinhos, conforme informação prestada pela família. “Os vizinhos viram o Troca-Tiros a atingir o meu irmão com um tiro no ombro, do lado esquerdo. Ele [irmão] correu, e o Troca-Tiros acertou-lhe com um tiro na testa e o último na bochecha esquerda”, descreve Delfina. Uma amiga que acompanhava Ti 500 correu a avisar a família. “Quando chegámos, já lá estava a polícia, à espera do carro para a recolha do corpo”, recorda a irmã. “Já não fomos ter com o Troca-Tiros nem apresentar queixa, porque a família decidiu que Deus fará justiça pela morte do Adi [Ti 500]”, acredita. Delfina Teresa descreve o irmão como um jovem “que gostava de lutar, de se envolver em brigas de grupos. Nós, os familiares, não víamos os crimes que ele cometia. Sabíamos das lutas e que ele fumava liamba”.
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CASO N.º 13: CELEBRAÇÃO DO PRIMEIRO ANO DO CURSO DE DIREITO VÍTIMA: Ramiro Agostinho António “Mitó”, 24 anos DATA: 7 de Março de 2017 LOCAL: bairro do Jacinto Tchipa, município de Viana OCORRÊNCIA: Quando regressava da Universidade Técnica de Angola (UTANGA), onde recebera a boa notícia de ter transitado para o segundo ano do curso de Direito, Mitó decidiu celebrar com um amigo. Depois de passar rapidamente por casa, foi com esse amigo beber um copo à cantina do bairro. Por volta das 16h00, enquanto caminhavam de volta a casa, “uma carrinha Toyota Hilux passou por eles e os ocupantes fizeram disparos contra eles [os dois amigos], mas não os atingiram”, conta António Quissanda, primo de Mitó. Quatro indivíduos, três dos quais armados com pistolas e Kalashnikovs, desceram da carrinha e perseguiram os jovens, que entretanto se haviam posto em fuga. “Eles conseguiram agarrar o Mitó, pediram-lhe para pôr as mãos no ar e deram-lhe um tiro na cabeça e outro no pescoço”, relata o primo. A execução foi testemunhada por muitos transeuntes e moradores, uma vez que ocorreu numa área bastante movimentada. Uma das residentes reconheceu o assassino como sendo um agente de campo do Serviço de Investigação Criminal que antes participara noutra operação similar. Informou a família, mas recusou-se a acompanhá-la ao SIC para prestar depoimentos, por temer pela sua vida. Mitó estivera detido durante três meses na Esquadra do Cantinton e na Comarca de Viana. Segundo a família, envolvera-se numa briga de rua quando acompanhava um amigo que era suspeito de roubo de telemóveis. Ambos foram detidos. “Ele não tem passado de delinquência. Era um jovem medroso”, conta António Quissanda. A mãe de Mitó é uma alta funcionária do governo provincial do Uíge e do MPLA a nível local. No Comando Municipal de Viana, aonde se dirigiu
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logo após o assassinato do seu filho, recebeu a informação de que este fora morto por bandidos. “E mais não disse, nem explicou como rapidamente se tinha chegado a tal conclusão sem nenhuma investigação”, refere António Quissanda. O primo conta ainda que a família também estabeleceu contacto com o delegado provincial do SIC, que negou qualquer envolvimento dos seus operacionais no assassinato, ainda que não tenha investigado o caso. CASO N.º 14: CIRCULAR ATÉ MORRER VÍTIMAS: Cristóvão Francisco João “Zé Du”, 26 anos, natural de Luanda; Irineu da Cruz Nogueira, 22 anos; e um terceiro cidadão não identificado DATA: 1 de Março de 2017 LOCAL: bairro da Boa Fé, município de Viana OCORRÊNCIA: Testemunhas oculares afirmam que os três jovens estavam juntos, prestes a beber cerveja e a comer pinchos, na Lanchonete da Amizade, quando foram abordados por quatro indivíduos que se faziam transportar num Hyundai i10, já passava das 15h00. Três dos agentes vestiam calções e o quarto trajava a farda da Polícia Nacional. “O meu filho perguntou-lhes porque estavam a detê-los. Não responderam. Levaram-nos apenas”, informa Isabel António, mãe de Zé Du. Quando chegou ao local do crime, as vendedeiras locais manifestaram-se solidárias para com Isabel António, partilhando com ela o que viram durante a detenção. Segundo depoimentos recolhidos no local e confirmados por esta investigação junto de outras fontes, os captores “circularam com os detidos até escurecer. Regressaram ao bairro, levaram-nos para um quintalão perto do local onde os detiveram e mataram-nos ali por volta das 21h00”, relata Tina, irmã de Zé Du. “O meu filho apanhou três tiros, um dos quais na cabeça”, lamenta Isabel António. Por sua vez, a mãe de Irineu da Cruz Nogueira, explica que o seu filho “foi morto com dois tiros nas costas e esfaqueado no lado direito do peito”.
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Irineu tinha cadastro. Segundo a mãe, passou três anos e seis meses detido, tendo passado pelas esquadras do Contentor (44.ª), Kapalanca, a Comarca Central de Luanda e a Penitenciária de Kakila. “O meu filho tinha lutado com o filho de um polícia, e este veio à minha casa detê-lo. O meu filho nunca foi julgado. Só foi ouvido uma vez na Prisão de Kakila, depois de eu ter batalhado muito. Ficou em liberdade por apenas seis meses”, refere a mãe. CASO N.º 15: QUEM MATOU FOI O PULA-PULA VÍTIMA: Geraldo Emanuel Mayaya “Mibalé”, 26 anos, natural de Luanda DATA: 1 de Março de 2017 LOCAL: Rua Direita da Pólvora, bairro Augusto Ngangula, Kikolo, município de Cacuaco OCORRÊNCIA: “Estávamos frente a uma cantina a beber cerveja, quando os homens apareceram, por volta das 13h20. Vieram em duas motorizadas, uma avançou e outra parou à nossa frente. Um deles pegou o meu irmão pelas calças”, conta Mayaya André, o irmão de Mibalé. Mayaya André explica que os indivíduos não se identificaram, nem deram qualquer explicação. “Levaram o meu irmão para um beco, a três metros do sítio onde estávamos. Eu segui-os e um deles sacou da pistola e avisou-me de que se os seguisse também seria morto”, recorda. Os irmãos encontravam- -se perto de casa. “Um deles, sem dizer mais nada, executou o meu irmão com dois tiros na cabeça, outro do braço esquerdo que lhe atravessou o coração e um quarto tiro na costela direita. Eu reconheci quem o matou. É o Pula-Pula, do SIC. Eu vi o meu irmão a ser morto e estou disposto a testemunhar em tribunal”, remata. Mayaya André refere que o seu irmão esteve detido durante um ano e dois meses, sob o Processo n.º 19/2015-BQ, tendo sido libertado a 13 de Junho de 2016 com termo de identidade e residência. Era obrigado a apresentar- -se semanalmente no Tribunal Municipal de Cacuaco.
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Segundo o interlocutor, Mibalé foi parar à cadeia em consequência de um acto de rebelião na oficina onde trabalhava como mecânico. Havia três meses que o patrão não lhe pagava, e levou consigo dois pneus de Toyota Corolla, que vendeu. Além disso, o irmão conta que, antes de arranjar emprego como mecânico, Mibalé já tinha ficha na Esquadra do Bom-Pastor, por ter sido membro do gangue “Que Pena”. “Depois de ter saído da cadeia, já não teve quaisquer problemas com as autoridades. Ajudava-me. Eu trabalho por conta própria, sou pedreiro, e ele fazia de meu ajudante”, explica Mayaya. CASO N.º 16: A AVÓ MORRE TAMBÉM VÍTIMA: João Tomás Pereira “Joãozinho”, 17 anos DATA: 27 de Fevereiro de 2017 LOCAL: bairro Augusto Ngangula, município de Cacuaco OCORRÊNCIA: Como era habitual, Joãozinho jantou com os avós. Saiu à rua para conversar com o seu melhor amigo, Aniceto Gaspar “Mano”, junto à porta da cantina que o avô construiu no quintal, mas cuja entrada para os clientes dá para a rua. O adolescente ajudava aí o avô nos seus tempos livres. Era estudante. Há já algum tempo, um carro da marca Toyota Starlet, de vidros fumados, fazia rondas na rua de forma ostensiva, causando desconfiança entre os moradores. À quarta volta, os três ocupantes da viatura encontraram os adolescentes à conversa. “Só nos disseram para entrarmos para o carro e não conseguiram. Os três [ocupantes da viatura] tinham casacos pretos e capuchos pretos que tapavam a cara. Não perguntaram sequer pelos nossos nomes”, relata Mano. “Desceram e pegaram-nos na cintura. Dissemos que éramos inocentes e estávamos em nossa casa. Eu empurrei um deles, desequilibrei-me e arrastaram-me para o porta-bagagens”, conta Mano. De seguida, o motorista desceu do carro para obrigar também Joãozinho a entrar para o porta-bagagens, conforme depoimento do amigo.
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Mano afirma o que aconteceu naquele fatídico momento: Joãozinho foi sumariamente executado, e ele apenas conseguiu fugir. “O Joãozinho recusou-se [a entrar no porta-bagagens] e segurou-se ao gradeamento. O motorista disse, ‘esses rapazes estão a dar trabalho’. Pegou-lhe na cabeça, baixou-a e deu-lhe um tiro no pescoço, do lado direito, junto da orelha.” “O [assassino] que estava comigo manipulou a pistola para disparar contra mim. Não sei como consegui fugir. Foi Deus. Fugi por um beco e já não me seguiram”, revela o sobrevivente. Mano conta que nunca esteve detido ou envolvido em actos de delinquência. A família teve de envia-lo para fora de Luanda, para protege-lo. Graça Tomás, de 64 anos, acorreu ao quintal quando ouviu o tiro e, ao ver o neto estendido no chão, teve um ataque. Pedro Pereira julgou tratar-se apenas de um desmaio. Deixou o neto e tentou socorrer a mulher, levando-a ao hospital. Estava morta. Enquanto Pedro Pereira seguia para o hospital, surgiu de imediato — com a celeridade de quem já se encontrava numa esquina à espera — uma viatura de recolha de cadáveres, que levou o corpo de Joãozinho. “Eu criei o meu neto desde pequeno. Era órfão. Nunca esteve preso, nem teve problemas. Todo o mundo aqui sabe que a minha mulher não era gatuna e morreu também. Gostaria que esse caso fosse a tribunal”, desabafa Pedro Pereira. CASO N.º 17: A ÚLTIMA CONFISSÃO VÍTIMA: Rodrino Saliomba “Hino”, 23 anos, natural do Huambo DATA: 16 de Fevereiro de 2017 LOCAL: campo de futebol da Pequena Ilha, no bairro Chimuco, município de Viana OCORRÊNCIA: Segundo depoimentos de Nuno Saliomba, a 12 de Fevereiro, uma família a quem o seu irmão Rodrino alegadamente roubara um telefone aprisionou-o e levou-o para casa, onde o torturou antes de o entregar à Polícia Nacional, na Esquadra do Mirú. Hino esteve detido nessa esquadra até ser encaminhado para o campo de futebol próximo de casa, onde foi fuzilado.
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Carlos Manuel Cassoma testemunhou a execução do seu sobrinho por acaso, quando passava por ali: “São homens do Serviço de Investigação Criminal (SIC). Trouxeram-no numa motorizada de três rodas. Obrigaram- -no a correr e atingiram-no com quatro tiros, um na cabeça e três nas costas.” “O miúdo, antes de morrer, disse-me: ‘Tiraram-me da cadeia. Pensei que fosse para me soltarem, afinal era para me abaterem’, e morreu”, revela o tio. Carlos Cassoma viu os cinco indivíduos que executaram a operação, todos trajados de jeans e sem os coletes que normalmente identificam os agentes do SIC. Segundo ele, “os agentes dispararam muitos tiros para afugentar a população e, passados poucos minutos, surgiu o patrulheiro da Polícia Nacional para recolher o corpo”. “Para ser claro e sincero, o meu irmão era delinquente e pertencia ao grupo Sete Quedas, que depois mudou de nome para Os Metidos”, revela o irmão Nuno Saliomba, de 16 anos. “Esteve detido muitas vezes, nunca por mais de seis meses, e saía sempre sem julgamento. No princípio, nós, os familiares, visitávamo-lo e aconselhávamo-lo a deixar essa vida. Como não acatava os conselhos, afastámo-nos.” CASO N.º 18: ABEGA OU DROGBA É IGUAL VÍTIMA: Pedro Avelino Eduardo “Abega”, 25 anos DATA: 4 de Fevereiro de 2017 LOCAL: bairro do Compão, município do Cacuaco OCORRÊNCIA: Enquanto bebia cerveja com uns amigos, dois indivíduos aproximaram-se de Pedro “Abega” numa viatura identificada como um Hyundai i10. “Um chamou-me de longe, o outro saiu do carro e disse-me ‘você é o Drogba, vamos te matar agora’.” As alcunhas e os diminutivos são muito comuns entre os homens angolanos, independentemente da sua condição social. Drogba é provavelmente um nome inspirado no famoso avançado da Costa do Marfim, Didier Drogba,
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assim como Abega é o nome do lendário futebolista camaronês, que brilhou nos anos 80. “Eu disse que não. Apresentei o meu documento ao mais alto e maior, para provar que não sou o Drogba. Esse queria acudir-me, mas o outro disse: ‘vamos matar-te à mesma. Tinha uma pistola com silenciador e deu-me um tiro no olho esquerdo”, conta Abega. Depois de cair, o assassino deu-lhe mais um tiro nas costas, que lhe atravessou o abdómen: “Meu irmão, eu nem sei como estou vivo.” “A minha família, ao receber a notícia, foi reclamar à polícia (Esquadra do Compão) e disseram-lhes que não me podiam remover porque eu era bandido. Os homens do SIC apareceram depois com o carro de remoção de corpos. Deram conta que eu era inocente e deixaram-me ali mesmo no chão a gemer, e foram-se embora”, relata Abega. Pedro Avelino Eduardo é motorista de profissão e ganha a vida como taxista. Vive com os seus tios. Neste dia trágico, encontrava-se de folga e passara a tarde a lavar a roupa. “Fiquei burro quando me chamaram para me matarem. Estão a matar os bandidos todos do bairro e eu não sou bandido.” Um dos companheiros que bebiam com ele uma cerveja é agente da Polícia Nacional (PN). Sob anonimato, lamenta que o seu amigo tenha sido alvo do esquadrão da morte: “Eu conheço muito bem o Abega. É um jovem muito calmo e dedicado ao seu trabalho e à família.” O patrão de Abega, dono da minivan que faz de táxi, aconselhou os jovens a evitarem o local e a não se concentrarem no período da noite, devido à onda de assassinatos de supostos delinquentes no bairro. “Eu vi o indivíduo a disparar contra a cabeça do Abega. A primeira vez a bala encravou, o colega que o acompanhava na batida também teve a bala encravada. Gritei para o Abega fugir, mas agarraram-no e arrastaram-no para detrás de um autocarro, onde lhe deram os tiros”, conta o agente da PN. “Corremos e vimo-lo já estendido no chão. O segundo assassino acrescentou-lhe um tiro nas costas.” Segundo esta mesma testemunha, os assassinatos no município do Cacuaco são efectuados por bairros, com particular incidência nos do Compão e Cauelele, mas não só. Abega perdeu o olho esquerdo, tem a orelha danificada e perdeu a audição no ouvido esquerdo. Desta vez, contra todas as expectativas, as autoridades que promovem a luta contra a criminalidade através do assassinato não causaram a morte de mais um inocente. Em vez disso, deixaram Pedro Avelino inválido, forçando-o a juntar-se à massa de jovens desempregados.
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CASO N.º 19: O CRIME É TRANSMISSÍVEL? CALA BOCA VÍTIMAS: Pedro Fernandes “KV”, 23 anos, natural de Luanda; Caramelo e mais um jovem não identificado DATA: 4 de Fevereiro de 2017 LOCAL: Desconhecido OCORRÊNCIA: “Em Novembro passado, ouvimos dizer que o Pedro Fernandes assaltou uma senhora. A família repreendeu-o e ele fugiu de casa. Só o encontrámos morto no dia 4 de Fevereiro”, conta o tio de KV, Paulo Neves. “O meu sobrinho apanhou oito tiros, incluindo na cabeça; o Caramelo levou três, incluindo um na cabeça; enquanto o desconhecido foi atingido com três tiros na cabeça.” Conforme depoimentos de familiares e vizinhos, KV e seis amigos alegadamente assaltaram um grupo de vendedeiras na Rua Direita da Kianda, no Kikolo. As senhoras compravam mercadorias a grosso nos armazéns locais e revendiam-nos na fronteira do Luvo [na província do Zaire]. Nesse dia, levavam consigo 12 milhões de kwanzas numa bolsa. Em Janeiro [dia não precisado], o SIC espancou de madrugada toda a família de KV. Os agentes acordaram as três irmãs e espancaram-nas no estado em que as encontraram no quarto, seminuas, para que denunciassem o paradeiro do irmão ou entregassem o dinheiro. Como ele não estava, levaram o tio para a Esquadra da Boa-Esperança, conta-nos Paulo Neves. “Na esquadra, perguntei se o crime é transmissível, afirmei que estavam a violar os meus direitos e mandaram-me calar a boca”, revela. Segundo investigações feitas no local, no dia anterior à execução de KV, este e Caramelo foram pernoitar no bairro da Sécil, em casa de um grupo de meliantes também procurados pela polícia. Os anfitriões acomodaram os hóspedes e não passaram a noite no local. Foi nessa residência que capturaram KV, Caramelo e outro amigo, de nome desconhecido.
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CASO N.º 20: POLÍCIA NÃO ACODE GATUNOS VÍTIMA: “Bad Lilas” (também conhecido como “Brasileiro”), 23 anos DATA: 3 de Fevereiro de 2017 LOCAL: mercado da Kianda, Kikolo, município de Cacuaco OCORRÊNCIA: Em Outubro de 2016, em data não especificada, Bad Lilas esteve detido na Esquadra do Cauelele por suspeita de roubo de telefone e assalto à mão armada. Qual anedota, conforme depoimento da mãe, retiraram-no da cela para que lavasse na rua o carro do comandante. O rapaz fez o trabalho, mas aproveitou a distracção dos agentes para fugir. Era a sua quarta detenção por suspeita de assalto desde 2013. Segundo a mãe, no dia do seu assassinato, por volta das 9h00, um amigo foi buscá-lo a casa para fazerem “um trabalho”. Antes, fumaram um charro e dirigiram-se ao mercado da Kianda, onde lhes haviam montado a cilada. De acordo com o testemunho de amigos e presentes, quatro indivíduos, dois em cada motorizada, cercaram-no e obrigaram-no a montar uma das motorizadas, tendo ficado no meio, entre os dois ocupantes iniciais. Levaram-no até ao beco de acesso ao mercado do Kikolo, a poucos metros de distância. “Bad Lilas viu um agente da Polícia Nacional a passar, conhecido como Chefe Lâmina, e pediu que o acudisse”, conta um dos jovens. “O Chefe Lâmina respondeu-lhe que não acode gatunos.” “Hoje é o teu último dia”, disse-lhe o seu executor. Foi assim que — conforme depoimentos de transeuntes que acidentalmente circulavam no beco — terminou a vida de Bad Lilas: três tiros na testa, outro no pescoço e o último no abdómen.
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CASO N.º 21: SALVAR O AMIGO É INTERFERIR NO TRABALHO DA POLÍCIA VÍTIMAS: Santos Miguel Samuel “Califa”, 22 anos, natural de Luanda; Emílio Manuel Mbaxi “Sebas”, 22 anos, natural de Luanda DATA: 28 de Janeiro de 2017 LOCAL: bairro Cardoso, Kikolo, município de Cacuaco OCORRÊNCIA: Sebas e Califa receberam a visita de duas amigas, provenientes de Viana, em casa do primeiro. Cozinharam e almoçaram juntos. Califa ausentou-se depois do almoço para ir cortar o cabelo a um cliente, no salão da irmã, onde trabalhava, e regressou depois ao convívio. “Às 18h45, formos acompanhar as duas amigas à paragem dos candongueiros [táxis colectivos]. Elas seguiram e nós ficámos ali a beber cerveja. Eu disse ao Califa para irmos a casa buscar o meu telefone, de que me havia esquecido. Já eram 19h00”, conta Sebas. De acordo com o seu testemunho, no regresso a casa, a poucos minutos do local onde se encontravam, depararam-se com dois jovens. “Mal [os dois] viram o Califa começaram a disparar [com pistolas]. Atingiram-no com um tiro no peito e um segundo na barriga. Ele virou-se para fugir e acertaram- -lhe com mais um tiro na nuca”, revela Sebas. “Quando mataram o Califa, pensei que me deixariam viver, porque eu não sabia de nada [de actos de delinquência alheios]”, diz Sebas. O jovem é marceneiro de profissão e exercia o seu ofício no mercado do Kikolo, onde tinha o seu espaço para a reparação de móveis. “Nunca roubei, nunca fiz mal a ninguém. Eu encontrava-me com o Califa apenas aos sábados e domingos, porque trabalhava de segunda a sexta- -feira”, justifica. Para os pistoleiros, nada disso interessava. “Viraram-se contra mim e os dois começaram a disparar. Atingiram-me com um tiro no braço direito. Eu já estava a correr quando o segundo tiro me atravessou o abdómen e saiu do lado direito”, narra o jovem.
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Sebas conseguiu correr alguns metros, mesmo depois de ter sido alvejado pela terceira vez, com um tiro na coxa esquerda: “Entrei num edifício de dois andares. Subi ao primeiro andar e caí [de bruços]. Os dois seguiram-me. Um dos assassinos mexeu a minha cabeça com a pistola para ver se eu ainda estava vivo. O outro disse: ‘Vamos embora, porque a população vem daqui a bocado.’ Eu mal respirava. Pensaram que já estava morto, e por isso foram-se embora.” Sebas levantou-se e saiu para a rua sem ajuda de ninguém, contrariando o conselho de uma jovem que o viu nas escadas após a saída dos perseguidores e que queria escondê-lo. “A população estava com medo de me ajudar. Como era perto de casa, um amigo meu — o Paciência — tomou logo conta do caso e apareceu com um vizinho, que tinha uma viatura, socorrendo-me. Levou-me para o Hospital dos Cajueiros, onde não havia condições, e transferiram-me para o Hospital Américo Boavida.” “Por me ter socorrido, os homens do SIC foram duas vezes a casa do Paciência”, denuncia Sebas. Paciência confirma o sucedido, relatando que, no dia a seguir ao tiroteio, os “agentes do SIC foram a minha casa à minha procura. Tive de dormir em casa da minha tia”. Passados alguns dias, a 1 de Fevereiro, “os homens do SIC interpelaram-me a caminho do serviço. Primeiro, viram se a minha cara não estava no tablet. Depois disseram-me para nunca mais interferir no trabalho da polícia”. Apesar de não saber os nomes dos agentes, Paciência garante ser capaz de os identificar. “Eram quatro agentes que circulavam num Hyundai i10, cor de vinho, com vidros fumados. Avisaram-me de que, da próxima vez encontrasse alguém naquele estado, não me devia meter no assunto. Deram-me conselhos e foram-se embora.” “Não sei porque mataram o meu irmão”, lamenta Maria da Conceição. A jovem recorda que, até 2015, Califa viveu no município do Cazenga, onde fazia parte de um grupo que volta e meia se envolvia em lutas. “Numa dessas lutas, rasgaram-lhe o queixo e os lábios com uma lâmina, e apanhou com uma catana na testa”, conta. Após esse incidente, Maria da Conceição resgatou o irmão, levando-o para viver consigo e empregando-o no seu salão como barbeiro e tatuador. Já a viver consigo, Califa esteve detido uma única vez, por uma noite, na Esquadra do Alfa-5, no bairro Combustível, por suspeita de participação
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no roubo de baterias de automóvel num parque de estacionamento no bairro Cardoso. “Depois disso, as únicas confusões que o Califa arranjava eram com os clientes a quem ele cortava o cabelo e que se recusavam a pagar”, afirma. Entretanto, cerca de nove meses após a cirurgia a que foi submetido por causa do tiro que lhe atravessou o abdómen, Sebas retomou o seu trabalho, que requer grande esforço físico e manuseamento de objectos pesados. CASO N.º 22: “A CABEÇA DELE JÁ NÃO TRABALHAVA” VÍTIMAS: Salomão Bernardo Kissanga Sacaia “Mestre Deque”, 29 anos, natural de Luanda; Kleber Monteiro José Bernardo, 17 anos, natural de Malanje DATA: 27 de Janeiro de 2017 LOCAL: bairro do Cauelele, município de Cacuaco OCORRÊNCIA: “O meu filho foi baleado frente à minha casa. Ele tentou correr e acabou por morrer no quintal do vizinho, com um tiro na mão e outro nas costas”, denuncia António Bernardo. Por volta das 19h00, Mestre Deque foi encontrado sentado à porta de casa, em conversa com Kleber, que se encontrava de visita. Viera da Lunda-Norte, onde residia e estudava no Pré-Universitário do Dundo-Central. Ironicamente, de acordo com informações prestadas pelos vizinhos, o pai de Kleber é um oficial do SIC destacado na Lunda-Norte. “Os DNIC [SIC] eram três e apareceram outra vez e pediram ao meu irmão para acompanhá-los. Ele recusou e um dos agentes sacou da pistola e deu- -lhe o primeiro tiro no braço direito”, refere o irmão Pedro. Segundo os vizinhos, Kleber foi morto onde estava, sentado, com um tiro no pescoço. António Bernardo revisita os últimos anos de vida do filho: “Ele tinha trabalhado numa empresa de segurança, numa embaixada, mas depois ficou maluco. Todos sabiam que a cabeça dele já não trabalhava. A polícia sabia e nós tentámos tudo para o ajudar, mas não deu resultado”.
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Durante o mês de Janeiro, Mestre Deque foi detido duas vezes em casa. “Na primeira semana, a polícia da Esquadra do Bate Nu [bairro Uíge] veio buscá-lo. Passadas muitas horas, soltaram-no, afirmando que ele não tinha feito nada. No dia 15 de Janeiro levaram-no outra vez, para a Esquadra do Cauelele, sem qualquer justificação, mas libertaram-no.” Segundo o pai, a 20 de Janeiro, efectivos da Polícia Nacional foram detê-lo pela terceira vez, em casa, mas não o encontraram. “Os polícias vieram com o queixoso, que disse que tinha oferecido cerveja ao meu filho e a mais três amigos seus na rua e que [durante o convívio] estes lhe tinham tirado 40 mil kwanzas”, afirma o pai. “Depois de matarem o meu filho, o comandante [da Esquadra do Cauelele] veio pessoalmente tirar os dados, enquanto os seus homens recolhiam os corpos. Deu-me o seu número de telefone, nem sequer disse o seu nome, ninguém aqui conhece o seu nome.” “São mesmo os do SIC. Eles matam e depois os polícias da esquadra vêm recolher os corpos. Eles estão a matar por bairros. Iniciaram no Compão e agora passaram para o nosso bairro”, denuncia António Bernardo. “Se alguém que mata tem direito a julgamento, como é que o meu filho não teve? Temos medo de, se falarmos, também sermos mortos. Sabíamos que o rapaz mexia [praticava furtos]. Ficamos assim”, conclui. CASO N.º 23: A VIAGEM DA NOIVA VÍTIMA: Armando Florindo Culimbala, 28 anos, natural de Luanda (família do Bié) DATA: 26 de Janeiro de 2017 LOCAL: Campo da Concórdia, Kikolo, município de Cacuaco OCORRÊNCIA: Por volta das 10h00, o jovem Armando deslocou-se à estação de autocarros Macon para adquirir um bilhete de passagem para a sua noiva, Marisa, que deveria regressar ao Uíge, onde se encontrava a estudar. Às 11h00, testemunhas oculares viram-no a ser raptado diante da administração do Kikolo e a ser forçado a entrar numa viatura de marca Jeep, de cor preta, com vidros fumados. Levaram-no para parte incerta.
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“Por volta das 19h00, algumas pessoas vieram a nossa casa informar- -nos de que viram o corpo do Culimbala a ser atirado numa lixeira, no campo da Concórdia. Fomos lá e confirmámos”, explica o seu tio, Pascoal Xangele. “O meu sobrinho trabalhava há nove anos numa loja de frescos. Nunca foi bandido. Até aqui não temos informações correctas. Morreu inocente”, lamenta. CASO N.º 24: MÃE VÊ QUEM MATA O FILHO VÍTIMA: Kilandamoko João António “Ti Porém”, 26 anos DATA: 24 de Janeiro de 2017 LOCAL: bairro do Cauelele, município do Cacuaco OCORRÊNCIA: A 9 de Dezembro de 2016, Ti Porém regressou a casa, depois de ter cumprido dois anos e sete meses de uma pena de dez anos. Foi um dos beneficiários da Lei da Amnistia. De acordo com o depoimento da sua mãe, Esperança Mafuta “Makiesse”, Ti Porém tinha de ir três vezes por semana à Esquadra do Cauelele para assinar. Conseguiu emprego numa das subestações de electricidade de Cacuaco e obteve a redução dos dias em que deveria assinar para uma vez por semana. “No dia em que o mataram, a esquadra recusou-se a aceitar a assinatura dele. Disseram que os homens da investigação criminal ainda não tinham chegado e que já não seria necessário assinar mais”, revela a mãe. Ti Porém regressou a casa para pegar no seu material e ir ao serviço. Mal atravessou a porta, a mãe ouviu o filho a gritar “Makiesse, sai, vem ver esse senhor que está a matar-me!” “Fui ver o que se passava e vi um dos homens a disparar três tiros contra o meu filho. Um tiro na mão esquerda, outro na mão direita e o terceiro na cabeça”, testemunha Esperança Mafuta “Makiesse”. Makiesse identificou o assassino como sendo um dos mais famosos assassinos, “conhecido como Pula-Pula”, que opera a partir da Esquadra do IFA e tem jurisdição sobre a Esquadra do Cauelele.
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“O próprio governo achou que tinha de soltar o meu filho. Afinal era para matá-lo assim? Já não tenho o que dizer”, lamenta Makiesse. Entretanto, Makiesse diz-nos que o pai da vítima, de quem está separada há muitos anos, é agente do Serviço de Migração e Estrangeiros. “O meu ex-marido perguntou aos polícias por que mataram o seu filho, se o governo lhe deu amnistia.” “O próprio assassino, o Pula-Pula, apareceu em minha casa no óbito e foi ao funeral. Estava sempre rodeado de polícias”, denuncia a mãe. “É o governo que está a criar a bandidagem. Se matam quem já não quer roubar. O meu filho não fugiu. Disse aos assassinos que não fez nada”, desabafa. CASO N.º 25: A FOTO DELE ESTAVA NO TABLET VÍTIMA: Eliseu Amado “Young Back”, 26 anos, natural de Luanda DATA: 24 de Janeiro de 2017 LOCAL: rua Ngola Kiluanje, Kikolo, município de Cacuaco OCORRÊNCIA: Eliseu ganhou fama como líder do grupo B-12, dedicado a disputas físicas entre jovens do bairro. Também era conhecido como assaltante de telemóveis. A mãe, Teresa Fernando, conta que, dias antes da sua morte, Eliseu esteve detido durante dois dias na Esquadra do Cauelele, depois de, embriagado e envolvido numa altercação, ter atirado uma pedra e partido o vidro de um carro. “Eu tinha dinheiro, paguei o vidro e ele foi libertado”, conta. No dia da sua morte, por volta das 16h00, Eliseu passou pela casa da mãe, que lhe deixara dinheiro para jantar. “Estava desempregado, passava o dia na pracinha como ‘chamador dos táxis’ [a atrair clientes para os taxistas], mas ganhava pouco e eu apoiava-o”, explica a mãe, vendedeira de quissângua. Depois de ter recebido o dinheiro das mãos da irmã, Eliseu dirigiu-se à paragem de táxi, onde comprou “pincho”[carne no espeto], decidindo jantar ali mesmo.
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Testemunhas oculares afirmam que uma viatura de marca Hyundai i10 de cor preta parou diante do jovem e que um dos quatro ocupantes o chamou, perguntando-lhe se era o Young Back. “Eles [ocupantes da viatura] viram a foto do Young Back no tablet, disseram-lhe que era delinquente e obrigaram-no a subir para o carro, mas ele recusou”, descreve uma das testemunhas, que prefere não ser identificada, corroborada por uma segunda. “Os homens do SIC e da Polícia desceram do carro e levaram-no à força para um beco, onde o abateram”, acusa Fernanda. As mesmas testemunhas afirmam que os assassinos de Eliseu o “obrigaram a dar um passo em frente no beco. Ele recusou. Três tiros atingiram-lhe a cabeça e outros três, as costas”. “Meia hora depois foram matar o primo dele”, Pai Kwan, denuncia a mãe. CASO N.º 26: A EMBOSCADA DA GASOLINA VÍTIMA: Hernâni Domingos “Pai Kwan”, 19 anos, natural de Luanda DATA: 24 de Janeiro de 2017 LOCAL: rua Ngola Kiluanje, Kikolo, município de Cacuaco OCORRÊNCIA: Com a morte da mãe, em 2015, com quem vivia, Hernâni Domingos — então um adolescente de 17 anos — envolveu-se com um grupo. “Conversei com ele para seguir o bom caminho, mas não me ouviu. Afastou-se de mim”, conta o seu primo Fernando. Semanas após essa referida conversa, Pai Kwan foi detido por suspeita de participação num assalto à mão armada. Passou um ano e meio na Comarca de Luanda. O pai, Alberto Pinto, interveio, chamando-o à sua guarda e arranjando- -lhe emprego como mecânico. “Como já tinha ficha na Esquadra Policial do Bom Pastor, quando estes receberam ordens para apagá-los a todos, ele também não escapou”, denuncia o primo.
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No dia do assassinato, depois das 16h00, os quatro carrascos dirigiram-se à oficina de automóveis Cambota (junto ao Mercado das Peças), onde Hernâni trabalhava, fazendo-se transportar numa viatura Hyundai (i10 ou i20, segundo os testemunhos) de cor preta. Conversaram com o supervisor e pediram-lhe que enviasse o Pai Kwan para lhes comprar gasolina, com um bidão, nas bombas de combustível mais próximas. Mal o jovem saiu, os ocupantes da referida viatura abandonaram a oficina, conforme depoimentos dos colegas de Pai Kwan. Os operacionais emboscaram Young Back enquanto este aguardava por um moto-táxi junto à Igreja Universal do Reino de Deus, para regressar à oficina já abastecido da gasolina. De forma despachada, os perseguidores “chamaram o Young Back [para junto da viatura], mostraram-lhe a fotografia dele num tablet e disseram-lhe, ‘você sabe’”, conta uma das testemunhas presentes no local. Os homens ordenaram a Young Back que caminhasse e, quando este deu as costas aos seus interlocutores, “acabaram com ele com dois tiros na cabeça e um das costas, do lado esquerdo”, relatam outras testemunhas. “O meu filho já morreu. Já não há nada a fazer ou a dizer. O país tem o seu dono e se ele decidiu [que as pessoas devem ser executadas] assim...”, resigna-se Alberto Pinto, desligando o telefone. CASO N.º 27: DE COLABORADOR A VÍTIMA VÍTIMA: Lucas Gonçalves “Tilson”, 29 anos, natural do Huambo DATA: 21 de Janeiro de 2017 LOCAL: bairro do Compão, Kikolo, município de Cacuaco OCORRÊNCIA: Tilson tinha fama de “batuqueiro” (ladrão de viaturas) e também era conhecido como colaborador do SIC, segundo familiares e amigos. O jovem tinha acabado de regressar do hospital, para onde levara o seu irmão Emílio Chicomo, que se encontrava doente. “Apareceu em casa um
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amigo dele e, enquanto conversavam, recebeu um telefonema. Ouvimo-la a dizer ‘yá wi [indivíduo] estou a vir”, conta a irmã Isabel Cardoso. “Afinal, já estavam à espera dele no beco à saída da nossa casa. Mal ele saiu, com o filho de cinco anos a segurar-lhe na mão, ouvimos tiros e a criança a gritar. Sabíamos que era ele e ficámos com medo.” Segundo os vizinhos, que se encontravam a beber na cantina adjacente ao local onde o jovem foi fuzilado, os algozes despacharam Tilson enquanto ele segurava o filho pela mão, que gritava, aterrorizado. Isabel Cardoso confirma os dados da vizinhança, segundo os quais o seu irmão era colaborador do SIC. “Para não o acusarem de ter cometido crimes, ele colaborava indicando os delinquentes do bairro”, explica. “Atingiram-no com dois tiros na cabeça e três no peito, do lado esquerdo. Os vizinhos acorreram para o socorrer, mas ele morreu no caminho”, conta. Isabel Cardoso descreve o comportamento da polícia e da investigação criminal, após a morte do irmão, como sendo estranho. “Vieram ao local e informaram-nos de que não sabiam de nada, e que quem telefonou ao meu irmão foi quem o matou. Depois, nunca mais disseram nada.” Para agravar a tragédia da família, ao saber do assassinato do irmão, de quem era próximo, Emílio Chicomo “teve um ataque, o coração começou a bater muito e morreu no dia seguinte”, lamenta a irmã. CASO N.º 28: O ÚLTIMO CHARRO VÍTIMAS: Adelino Alfredo Cambeu; Miguel Arcanjo, 21 anos, natural do Huambo; Severino Condengo da Silva “Yuri Pi”, 19 anos, natural de Luanda DATA: 20 de Janeiro de 2017 LOCAL: bairro do Compão, município de Cacuaco OCORRÊNCIA: Miguel preparava-se para jantar, por volta das 19h00, quando um dos amigos, Adelino Cambeu, lhe bateu à porta para irem fumar um charro no beco. Juntaram-se-lhes Yuri Pi e Cassule. O último, segundo consta dos depoimentos recolhidos no local, tinha ido devolver uma caixa de fósforos emprestada quando se cruzou com o grupo que mataria os seus amigos.
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Adelino Cambeu encostara-se ao muro para urinar e foi o primeiro a ser atingido com dois tiros na cabeça. A seguir foi o Miguel… Cassule conta que ouviu Yuri a implorar para que não o matassem, depois de ter sido atingido no peito. Em resposta, um dos matadores atingiu-o com mais tiros. Ao todo, segundo a irmã Marta Silva, Yuri foi morto com cinco tiros no peito e na região abdominal. Por volta das 22h00, o Serviço de Investigação Criminal (SIC) procedeu à recolha dos corpos e chamou as famílias para identificação das vítimas. “Eu fui falar com eles para identificar o meu irmão e disseram-me para ir embora porque já tinham ‘os nomes desses delinquentes’”, conta Marta. “O SIC deixou um papel na morgue [do Josina Machel], com os nomes dos rapazes que abateram na nossa zona, nesse dia. O nome do Yuri não constava da lista que vimos. O investigador do SIC que encontrámos lá disse-nos: ‘Afinal o cobarde tinha um nome diferente?’ Foi assim que percebemos que eles matam à toa. Na lista estavam os nomes do Bebu, do Miguel, do Adelino e mais dois [desconhecidos].” Um dos operacionais do SIC que se encontravam no local, e que se conhece apenas pelo nome de Chalana, perguntou à família: “Estão a reclamar porquê? O vosso filho é gatuno”, cita a irmã. Para afastar Yuri da má vida, a mãe tinha-o entregado aos cuidados da sua irmã, residente no bairro do Paraíso. No dia da sua morte, “a tia Justina [com quem vivia] disse-lhe para não sair de casa porque estava com o coração apertado. O Yuri tinha recebido um telefonema para ir ao bairro e saiu às 6h00”, conta Marta. “Passou o dia todo connosco. Por volta das 18h00, o meu primo Emílio veio e sentámo-nos em família. Pedimos-lhe para arranjar um emprego para o Yuri na empresa onde trabalha. Ele indicou quais eram os documentos necessários”, explica a irmã. A seguir à conversa, Yuri foi tomar banho e pouco depois surgiu o seu amigo Adelino, que o convidou para sair. Minutos mais tarde (entre as 19h00 e 19h10), a família ouviu os tiros e o “primo Emílio regressou com as mãos na cabeça. O Yuri estava morto, ao lado do portão dele”, recorda Marta. Em Dezembro passado, Yuri esteve detido na Esquadra do Cauelele por suspeita de tentativa de assalto à residência de um vizinho. “O Ti Bula [vizinho] veio à nossa casa buscar o Yuri. Foram à Esquadra do Cauelele. Ele queria limpar o seu nome e foi detido porque era inocente do crime que o acusavam”, conta.
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O investigador, de forma inusitada, pediu à família de Yuri que encontrasse a queixosa, uma vizinha que vira a tentativa de roubo e identificou três jovens, mas que entretanto saíra do bairro. Marta da Silva explica que um dos jovens, já detido, indicou o nome do seu irmão “porque os amigos dele o ameaçaram de que matariam o seu pai se ele os denunciasse e por causa da tortura da polícia”. Durante uma semana, a família procurou pela vizinha noutros bairros, seguindo pistas de vizinhos e familiares, para provar a inocência de Yuri. Quando a encontraram, levaram-na até à esquadra, onde, alegadamente, ela revelou que também estava sob a ameaça de outros dois jovens e inocentou Yuri. “A polícia disse-nos então que, como o meu irmão era inocente, nós tínhamos de pagar 50 mil kwanzas para ele ser libertado, senão iriam encaminhá-lo para a Comarca Central de Luanda”, revela Marta Silva. Após pagamento, Yuri foi libertado, a 17 de Dezembro de 2016. “Só ouvia dizer que o meu irmão ‘mexia’ [assaltava]. Mas esta foi a única vez em que ele esteve detido”, conclui a irmã. Sobre o Miguel, vários vizinhos testemunharam que era um jovem muito calmo, cujo crime maior era o hábito de fumar liamba. CASO N.º 29: O FILHO DO TENENTE-CORONEL VÍTIMA: Avelino Zacarias António “Bebu”, 20 anos, natural de Luanda (pai do Uíge, mãe do Huambo) DATA: 20 de Janeiro de 2017 LOCAL: bairro do Compão, município de Cacuaco OCORRÊNCIA: Em Setembro de 2016, Avelino “Bebu” foi detido, na companhia de dois amigos, quando se encontravam a beber cervejas numa pracinha perto de casa. Zeca assume que o irmão fazia parte do gangue Bate à Toa. O caso a propósito do qual foi detido é revelador do estado da investigação criminal, conforme explica o pai. O tenente-coronel José António acompanhou o filho
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durante os quatro meses em que este esteve detido, com breves passagens na Esquadra do Cauelele e no Comando Municipal de Cacuaco, bem como na Penitenciária de Kakila, onde cumpriu pena. “O investigador do Serviço de Investigação Criminal que estava com o processo exigiu-me um pagamento de 270 mil kwanzas pela libertação do meu filho. Vendi a minha viatura, paguei ao investigador e ele recebeu a soltura em Dezembro”, conta. Dias depois, “entre 10 e 15 de Dezembro, se não me engano, um indivíduo das FAA, fardado, veio a minha casa com os homens do SIC e detiveram novamente o meu filho. Acompanhei-o até à sede do SIC, onde me informaram que era apenas para fazer o controlo”. Bebu ficou lá detido seis dias e recebeu soltura. Na semana seguinte, nova visita do SIC, desta vez por um “agente vizinho identificado como Zé”, que o deteve novamente e aos outros dois amigos. “Os três passaram mais seis dias nas celas do SIC, e o agente Zé cobrou-nos mais 30 mil kwanzas pela libertação do miúdo”, informa o pai. Segundo o tenente-coronel António, o seu filho raramente saía de casa após a sua soltura em Dezembro e as duas semanas subsequentes que passou nas celas do SIC. Foi nesse ambiente doméstico que os matadores o encontraram, depois das 18h00, sentado frente ao portão de casa, a brincar com os sobrinhos que o ladeavam. Estava com Joel, de sete anos, que brincava com o seu telefone, e o Gelson, de cinco anos. Os atacantes circulavam em duas viaturas Hyundai i10 ou i20. As testemunhas têm dificuldades em distinguir entre os dois modelos. “Um deles, que vinha a caminhar, perguntou ao meu filho se o seu telefone tinha saldo e este respondeu que não. Dois indivíduos desceram da viatura e empurraram-no”, adianta o pai. Testemunhas oculares indicam que os ocupantes da viatura tinham um iPad para confirmar a identidade do alvo através de fotografias, tendo-lhe previamente perguntado se era o Bebu. “Eu estava no quintal e vi dois indivíduos a agarrarem o meu irmão. Ele perguntou o ‘que eu fiz?’” As mesmas testemunhas que observaram a partir da rua confirmam que a seguir os assassinos o obrigaram a voltar-se de costas para o carrasco, o que ele recusou. Foi atingido primeiro no abdómen, e depois levou o tiro fatal na cabeça. As crianças assistiram a tudo. Ao aproximar-se do corpo do irmão, os executores dispararam duas vezes contra Zeca. “Só não morri por sorte”, refere.
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“Essa é a vida do MPLA. Estamos na escravatura. Matam-se as pessoas como se fossem cabritos e não temos onde nos queixarmos”, lamenta o tenente-coronel. O pai enlutado acusa directamente o Serviço de Investigação Criminal (SIC) e a Polícia Nacional de serem responsáveis pela onda de assassinatos que também ceifou o seu filho. “Bandidos não matam assim: tantos no mesmo dia, com listas, três ou quatro carros com vidros fumados? É impossível. O meu sobrinho é inspector da Polícia Nacional, e fizemos diligências junto do SIC. Como são eles próprios a matar, não investigam. Não dão valor, estão a matar cabritos”, vocifera o veterano de guerra. O tenente-coronel conta que o grupo que matou o seu filho procedeu ao abate de outros jovens minutos depois, na vizinhança. “Vivemos junto a uma unidade da UPIP [Unidade de Protecção de Individualidades Protocolares] e estes não se envolveram porque sabem que são os colegas que estão a matar”, denuncia. “Estou no MPLA há muito tempo. O colono e a UNITA assassinavam às escondidas. O MPLA mata abertamente. Nem cabrito ou galinha se mata assim. Sinto muita dor”, afirma. Durante dois anos, o tenente-coronel comandou o Batalhão 106 em missões na República Democrática do Congo. Esteve antes na República do Congo e recusou cumprir uma terceira missão na Guiné-Bissau, o que lhe valeu o corte dos seus salários.
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CASO N.º 30: DROGA! O TIO ENFORCA-SE TAMBÉM VÍTIMA: Joaquim Diogo Bandessa, 42 anos, natural de Malanje DATA: 6 de Janeiro de 2017 LOCAL: bairro Cambiri, município de Viana OCORRÊNCIA: Bandessa encontrava-se em casa de um vizinho quando viu um grupo de indivíduos a levarem a sua motorizada, que se encontrava estacionada lá fora. Testemunhas oculares relatam que “alguns deles estavam vestidos à civil, mas um deles tinha o colete de identificação do SIC”. Em nome da família da vítima, António Patrício Diogo, conta que “um dos indivíduos ofendeu a minha mãe, e o meu irmão tentou reagir. O outro deu-lhe um tiro nas costas e ele correu para a casa de um amigo a pedir socorro. À porta do vizinho, deram-lhe mais três tiros nas costas”. Segundo o seu depoimento, “depois de morto, em menos de cinco minutos, os polícias já lá estavam para recolher o corpo. Tudo aquilo parecia combinado, e a motorizada foi só uma emboscada”. António Patrício Diogo afirma que o seu irmão Bandessa esteve detido uma vez por dez dias, em 2010, na Esquadra do Mirú, por venda de estupefacientes. “No dia em que ele foi baleado, ainda fez vendas de estupefacientes”, revela o irmão. “No Comando Municipal de Viana, o meu tio Martins Diogo Salomão foi informado de que o seu sobrinho [Bandessa] tinha sido abatido pelo SIC, por envolvimento no tráfico de drogas. Semanas depois [7 de Fevereiro], o meu tio enforcou-se”, relata António Diogo.
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CASO N.º 31: CAÇA AO MANINHO — PROCURADO PARA SER MORTO VÍTIMA: Basílio Canjengo “Na Cela”, 20 anos DATA: 16 de Dezembro de 2016 LOCAL: bairro Mulenvos de Cima, município de Viana OCORRÊNCIA: “O meu filho está a ser procurado pela DNIC [actual SIC] para ser assassinado”, denuncia Angelina Cahundo, mãe de Na Cela. “No dia 16 de Dezembro, a DNIC [SIC] veio a minha casa. Veio um clarinho, tipo mulato, alto, que é quem está a acabar com os jovens aqui. Chamamlhe de Van Damme. Tem uma cicatriz perto da boca, até à orelha esquerda. É assim forte”, conta. Segundo a senhora, o Van Damme fez-se acompanhar de um colaborador conhecido por Jojó. “Este é que fica junto da polícia a indicar os jovens que devem ser abatidos”, acrescenta. “Chegaram às 5h00. Bateram à porta e eu abri. Chamaram a minha filha e perguntaram pelo irmão, e ela disse-lhes que o Na Cela não estava em casa. Revistaram o quarto dele e não viram uma agulha.” “O Van Damme olhou para o meu filho Gabriel, de 8 anos, e disse-lhe que, se o irmão estivesse em casa, seria o último dia dele. Passaram mais oito vezes, até ao dia 23 de Dezembro”, conta. Para além dessas visitas, Van Damme e o seu colaborador passaram a rondar a bancada onde a mãe vende roupa em segunda mão e onde Na Cela muitas vezes a ajudava. “O vizinho Simão Catequele é quem fez a lista dos jovens para serem abatidos. O filho dele chama-se Cinquentado. Eles recebem sempre os homens da DNIC [SIC], os assassinos e os polícias fardados na casa deles, onde bebem e combinam o trabalho”, denuncia Angelina Cahundo. “Quando o senhor Catequele fez a lista com os filhos, estava um jovem presente que viu os nomes e avisou alguns dos amigos. Passadas duas horas, a polícia foi buscar dois dos que estavam na lista, o Jambito e o Simão [Caso n.º 36].”
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Pelo que a mãe sabe, Na Cela esteve detido uma vez, no ano passado. “Vinha do serviço, biscate de pedreiro, bêbado, e levaram-no para a esquadra. Passou lá uma noite. A polícia cobrou-me 20 mil kwanzas e libertaram-no”, explica. “O meu filho bebe muito e fuma liamba, mas não rouba. Sou eu quem o sustenta. Ele também é cabeleireiro e frequenta a igreja”, acrescenta.
CASO N.º 32: EXECUTADO NO VELÓRIO DO AMIGO VÍTIMA: Anderson Francisco Avelino Agostinho “Da Saia”, 22 anos, natural de Luanda DATA: 5 de Dezembro de 2016 LOCAL: bairro da Bananeira, município de Cacuaco OCORRÊNCIA: Na noite de 5 de dezembro, Anderson foi ao velório de um amigo dar os seus pêsames. Juntou-se aos amigos, que se encontravam sentados na rua, à porta e junto à casa. Por volta das 22h00, segundo depoimento do irmão Carlos Agostinho, um jovem chamou o Da Saia para uma conversa a sós e este afastou-se do círculo de amigos. Foi atraído para um sítio mais isolado, onde encontrou a morte. “Estavam uns indivíduos a beber, à civil, e um deles atingiu o meu irmão com dois tiros na cabeça e outro no peito”. “O Garantia ‘Bad Langa’ testemunhou e identificou os assassinos como sendo operacionais da DNIC [SIC]. Ele conhecia-os bem e informou-nos. Em finais de Fevereiro, os indivíduos que abateram o meu irmão também eliminaram o Garantia”, revela Carlos. Em liberdade condicional, Da Saia dirigia-se duas vezes por semana à Esquadra da Bananeira para assinar. Tinha sido libertado em Outubro passado, após sete meses de detenção “por ter espancado e aleijado um moço”, conforme depoimento do irmão. Em 2014, passou nove meses detido também “por luta”.
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“No dia da sua morte, tinha estado na esquadra para assinar, e os investigadores disseram-lhe que era a última vez que assinava. Ameaçavam-no sempre que o matariam”, revela Carlos. Depois do seu assassinato, a família recebeu a notícia de que Da Saia havia sido seleccionado para trabalhar na fábrica de detergentes Madar. “Lutámos tanto para lhe arranjar um emprego. Infelizmente, não fomos a tempo”, lamenta o irmão. CASO N.º 33: OS IRMÃOS DOMINGO E O MATADOR DE NADA VÍTIMAS: Irmãos António Domingos “Tony”, 20 anos, e Ernesto Sapalo Domingos “René”, 18 anos, naturais do Huambo; Mais dois jovens identificados apenas como sendo residentes do município do Cazenga DATA: 18 de Novembro de 2016 LOCAL: “Campo da Morte”, bairro 6, município de Viana OCORRÊNCIA: Três dias antes, a 15 de Novembro, por volta das 22h00, os irmãos confraternizavam na rua com os amigos, quando foram detidos. “Os vizinhos testemunharam a detenção dos meus irmãos por elementos do SIC, que vestiam coletes [de identificação] e se faziam transportar num Toyota Land-Cruiser branco”, revela o irmão mais velho, Alberto Domingos. Logo após a detenção, Alberto passou pelas esquadras de Viana à procura dos seus entes queridos, sem sucesso. “Fomos à Esquadra do Mirú e disseram-nos para irmos ao Comando Municipal de Viana. Chegados lá, disseram-nos que não sabiam de nada”, recorda. Alberto estava a trabalhar quando, por volta das 14h30, recebeu telefonemas de vizinhos a informarem-no de que os seus irmãos tinham sido fuzilados minutos antes no ora conhecido “Campo da Morte”, Correu para lá. “Como somos conhecidos no bairro, as testemunhas informaram-me de que os meus irmãos tinham sido levados para o campo num Toyota
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Land-Cruiser branco, junto com outros dois rapazes. Havia quatro agentes vestidos com os coletes azuis da DNIC [SIC]. Mandaram-nos descer um por um da viatura, com os olhos vendados, e obrigaram-nos a correr”, conta. “Eram abatidos mal desciam do carro, com todo mundo a ver, mesmo ali junto à escola e com o sol aberto. Estavam de tronco nu. O Tony foi atingido com dois tiros. Um na cabeça e outro nas costas. O Ernesto virou-se para ver os agressores e levou quatro tiros no abdómen”, descreve o irmão. Os dois desconhecidos foram assassinados com dois tiros nas costas cada um. Em menos de 15 minutos, chegaram ao local as viaturas de recolha de cadáveres, com efectivos da Polícia Nacional. Estes ali se mantiveram até às 19h00, impedindo que os familiares se aproximassem das vítimas enquanto prolongavam a exibição dos mortos. Alberto Domingos refere que o chefe de missão dos assassinos, e um dos principais executores, é bem conhecido no bairro. “Ele é afamado como o De Nada. Primeiro, era colaborador do SIC, agora é agente de campo colocado na Esquadra do Mirú”, revela. Os irmãos ficaram órfãos de pai muito cedo e, há três anos, perderam a mãe. “Os meus irmãos não eram de mexer [roubar]. Eu cuidava deles. Era eu quem os sustentava”, afirma, acrescentando que “nunca tiveram problemas com a justiça”. “Se calhar foram apenas confundidos”, remata, como se se tratasse apenas de um caso de má-sorte. Testemunhos presenciais corroboram a versão apresentada por Alberto Domingos.
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CASO N.º 34: INJECÇÃO DE ÁGUA DE BATERIA? VÍTIMAS: Hilário Caetano Muzumbi “Mala de Dinheiro”, 20 anos, natural do Kwanza-Norte; mais quatro indivíduos não identificados DATA: 16 de Novembro de 2016 LOCAL: Esquadra da Ponte Partida, município de Viana OCORRÊNCIA: Nelson Silveira afirma que o sobrinho se encontrava em Luanda há quatro dias, com o propósito de levar a esposa para a sua terra natal, para onde se mudara quatro meses antes. Saiu com um grupo de amigos, que faziam parte de um gangue com um nome bastante ofensivo e vulgar [omitido]. Um dos membros, conta o tio, esqueceu-se da mochila no táxi [candongueiro] onde circulavam. Na mochila guardava uma arma de fogo. O taxista entregou a mochila a agentes da Polícia Nacional, que aguardaram pelo proprietário. Pouco depois, por volta das 17h00, quando regressaram para recuperar a mochila, os cinco amigos foram detidos. “O fim deles foi [assassinado] na Esquadra. Os outros ficaram [foram mortos] no terreno e foram deitados no dia seguinte em locais diferentes. O meu sobrinho e mais um foram deitados na zona do Morro da Areia, outros dois foram atirados juntos à Escola do Mobel (bairro Mulenvos de Cima), próximo das suas residências, e o quinto foi morto no dia seguinte”, conta Nelson Silveira. “Tiraram os telefones dos rapazes e ligaram anonimamente a todos os familiares, informando-os da localização dos corpos.” Nelson Silveira explica que o irmão da mãe de Hilário Caetano, um alto oficial da Polícia Nacional destacado em Malanje [nome e cargo propositadamente omitidos] se deslocou a Luanda para apurar as circunstâncias e a causa da morte do sobrinho. “O tio mandou fazer uma autópsia ao sobrinho, conversou directamente com os homens do hospital e soube então que o rapaz foi injectado com água de bateria”, revela Nelson Silveira.
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O interlocutor não esconde que o sobrinho se havia refugiado no Kwanza-Norte porque estava a ser procurado pela Polícia Nacional e temia pela vida. Os seus amigos também passaram algum tempo no Kwanza-Norte, mas acabaram por regressar a Luanda. Hilário “Mala de Dinheiro” tinha marcado o regresso ao Kwanza-Norte para o dia em que foi enterrado. CASO N.º 35: A FESTA DE ANIVERSÁRIO DO KUDURISTA VÍTIMA: Dadi Mwanza, 24 anos, natural de Luanda DATA: 23 de Outubro de 2016 LOCAL: bairro Vila da Mata, município do Cazenga OCORRÊNCIA: Dadi Mwanza passou o dia em casa a lavar a sua roupa e a preparar a sua festa de aniversário, que seria na rua, no dia seguinte, conta o irmão Major. O jovem era cantor de Kuduro. Por volta das 14h00, entreteve-se a conversar com a mãe. Pouco antes das 18h00, tomou banho e saiu à rua. De acordo com Major Mwanza, a 50 metros de casa, num beco, foi fuzilado com um tiro na testa e dois nas costas. O seu corpo apenas foi removido pelo SIC no dia seguinte, às 7h00. “Fui à unidade do IFA [Comando da III Divisão da Polícia Nacional, no Cazenga] para prestar depoimento e obter uma declaração, para podermos tirar o corpo da morgue para o enterro, mas o investigador não anotou dado nenhum nem disse nada. Na morgue, a equipa do SIC autorizou-nos a retirar o cadáver, sem pedir qualquer informação à família ou dizer mais alguma coisa”, lamenta Major. “Há rumores de que o Pula-Pula [conhecido executor colocado esquadra do IFA] esteve a rondar o bairro, segundo pessoas que o conhecem bem”, nota o irmão. Dadi Mwanza esteve detido por uma semana em Maio de 2016, na esquadra policial do IFA [IFA é o nome dos camiões da antiga Alemanha do Leste, que eram montados numa fábrica ali localizada], por suspeita de
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assalto a uma cantina, mas como não tinha processo foi libertado. Antes, estivera detido duas vezes no IFA: em 2015, altura em que a família pagou cem mil kwanzas [então equivalentes a mil dólares]; em 2016, ocasião em que os investigadores locais se ajustaram à desvalorização da moeda e cobraram um valor equivalente pela libertação. O kudurista também foi detido por um breve período na unidade da Terra Vermelha — conhecida como a esquadra descartável da Terra Vermelha — sempre por suspeita de actos delinquentes. “No kuduro do bairro não faltam bandidagem e lutas. Isso não posso negar sobre o meu irmão”, diz Major, quando questionado sobre o passado de Dadi Mwanza. CASO N.º 36: OS SOBREVIVENTES E A LISTA DOS ALVOS VÍTIMAS: Samuel Jamba “Jambito”, 23 anos, natural de Benguela (família do Huambo); Simão Celestino, 24 anos, natural de Benguela DATA: 10 de Outubro de 2016 LOCAL: bairro Mulenvos de Cima, município de Viana OCORRÊNCIA: “Eu estava em casa quando um jovem bateu à porta e perguntou por mim. Ele disse-me ‘não tenhas medo, só queria conhecer-te’”, recorda Jambito Minutos depois, dois agentes da Polícia Nacional apareceram em sua casa com o referido jovem e detiveram-no. Levaram-no para a Esquadra da Ponte Partida, “onde me torturaram com uma catana, nas costas, até ficar despelado, tipo frango”, denuncia Jambito. “O tal jovem foi quem mais me torturou. Acusaram-me de ter assaltado a casa de um vizinho, coronel na reserva, e de ter roubado saldo [cartões de recarga de telefone], documentos e passadores militares ”, conta. No dia seguinte, o seu amigo Simão Celestino também foi detido pelo mesmo “crime”, que ambos afirmam não ter cometido. E passaram mais dois dias a serem torturados com tábuas e mangueiras. Depois de terem sido libertados, a partir da cela do Comando Municipal da Polícia Nacional, em Viana, Jambito teve a coragem de apresentar queixa
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contra os seus torturadores. “Deram-me uma soltura sem número de processo, sem nada. O oficial que recebeu a queixa disse apenas que iriam punir os torturadores e nunca mais me disseram nada.” “Eu nunca estive detido, nunca tive problemas com a lei, trabalho como moto-taxista para ganhar o meu sustento”, revela o jovem. Esse caso é tanto mais extraordinário quanto nos revela a mãe de Jambito, corroborada por outras mães da vizinhança. Aparentemente, o motivo da detenção resumia-se à inclusão dos seus nomes numa lista elaborada por um vizinho, identificado como Simão Catequele [vendedor de cartões de recarga de telefone], e seus filhos, para a “limpeza” de supostos marginais. E, no caso de Jambito, havia por trás um enredo passional. “Os agentes [da Polícia Nacional] primeiro perguntaram-me, como mãe, se o meu filho estava a namorar com aquela moça [nome omitido]. Começaram a espancá-lo aqui em casa, na minha presença”, diz Joaquina Nana. “Perguntei por que estavam a bater no meu filho. E disseram-me que ele era bandido e fumador de liamba. Eu disse-lhes: ‘vocês são da lei, têm de explicar o que a pessoa cometeu. Revistaram a casa e não encontraram nada”, continua. A mãe argumenta que, se fosse gatuno, o seu filho não estaria, naquele dia, “a almoçar pão com lambula [sardinha], que o vizinho lhe deu porque não havia comida em casa. Se tivesse dinheiro do roubo não comeria do dinheiro que roubou?” Após a soltura do filho, Joaquina Nana levou-o à casa de Simão Catequele para mostrar o resultado da sua denúncia. “O Catequele respondeu-me apenas que não foi ele quem bateu no meu filho. Eu disse-lhe que ‘você é quem lhe bateu porque foi você quem fez a lista’”, afirma Joaquina Nana. “O Ti Simão [Catequele] explicou-me que houve um mal-entendido da Polícia, que houve engano no nome que estava na lista dele. Sinto uma grande dor no peito. Não fiz nada”, desabafa Jambito. O modo como a vizinhança teve conhecimento desta lista de alvos está explicado em detalhe no Caso n.º 31.
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CASO N.º 37: UM CASO PASSIONAL VÍTIMA: Fabião Pedro Mandume “Fábio”, 27 anos DATA: 20 de Setembro de 2016 LOCAL: bairro da Baixa de Kassanje, município de Viana OCORRÊNCIA: Fábio nem sequer pôde curar a sarna contraída na Penitenciária de Viana, de onde fora libertado três semanas antes, após sete meses em prisão preventiva. “Ele praticamente não saía de casa por causa da sarna, por isso o Mendes veio matá-lo em casa”, denuncia Eusébio Pedro “Zeca”, irmão da vítima. A mãe da vítima, Beatriz Pedro Watele, contextualiza a detenção inicial. De acordo com o seu testemunho, o filho e o seu algoz eram rivais, supostamente por causa de uma mulher. “Como o meu filho não tinha feito nada, o Mendes da DNIC [SIC], da esquadra Móvel da Baixa de Kassanje, inventou um crime, veio buscá-lo a casa e deteve-o na sua esquadra. No dia seguinte transferiu-o para a Esquadra da Boa Fé.” O jovem foi então encaminhado para a Esquadra do Kapalanca, que o remeteu para o Estabelecimento Prisional de Viana, onde passou grande parte do tempo da detenção preventiva. “[Depois de Fábio ter sido libertado] o Mendes foi a minha casa à meia-noite, para matar o meu filho. O meu filho ouviu um barulho no quintal e saiu do quarto [separado da casa grande] para ver o que se passava. Depois, ouvimos os tiros e o meu filho a gritar”, conta Beatriz Watele. “’Bia [a mãe], olha, o Mendes quer matar-me! Bia, o Mendes está a matar-me!”, foi assim que encontrei o meu filho já no chão, a gritar junto à porta do quarto dele”, descreve a mãe. Segundo o irmão Zeca, que se encontrava presente, Fábio foi atingido com um tiro no abdómen e outro no pulso esquerdo. “Depois de ter feito os disparos, o Mendes fugiu. Mas o meu irmão ainda estava vivo e disse-nos que foi o Mendes”, reitera o irmão. “No bairro, sabemos todos que o Mendes é da DNIC [SIC]. Ele detinha muitos jovens aqui, levava-os para a Esquadra Móvel [da Baixa de Kassanje]. A polícia tinha conhecimento das operações dele”, enfatiza Zeca.
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Beatriz Watele realça que, antes de levarem o filho para o Hospital Maria Pia, onde acabou por falecer no bloco operatório, “passámos pela Esquadra Móvel para, informar sobre o caso. A polícia limitou-se a tirar fotos ao meu filho. Não fizeram mais nada. O caso ficou assim”. A família conta que, após o crime, o assassino enviou uma mensagem (SMS) a uma amiga comum, sua e de Fábio, informando-a de que o tinha matado. “De manhã, a Massada veio a minha casa com uma amiga, e perguntou pelo Fábio. Ficaram horrorizadas quando a minha irmã lhes confirmou a verdade”, revela Zeca. CASO N.º 38: A ÚLTIMA CHAMADA VÍTIMA: Bernardo Domingos Futa, 31 anos, natural de Malanje DATA: 11 de Setembro de 2016 LOCAL: Pracinha do Salalé, bairro da Estalagem, Viana OCORRÊNCIA: Mário Futa conta-nos que, por volta das 9h00, o seu irmão Bernardo recebeu três telefonemas para ir a um encontro. Dada a insistência, acedeu à última chamada e deslocou-se à pracinha, perto de casa. Segundo depoimentos dos vizinhos, foi de imediato emboscado por vários homens à paisana. Estes homens, em número não determinado, levaram consigo um patrulheiro da Polícia Nacional, que deixaram estacionado a algumas ruas do local da ocorrência. Fizeram vários disparos para o ar, de modo a afugentar a população, e, ali mesmo, fuzilaram Bernardo Futa com dois tiros no abdómen e um terceiro no coração. “O meu irmão cumpriu uma pena de oito anos por delinquência, e fora libertado em 2012. Desde então trabalhava como cobrador de táxi e fazia serviço de mototáxi. Não teve mais problemas com a lei”, refere Mário Futa. “Havia rondas à volta de casa, nos locais de consumo de bebidas alcoólicas. Os agentes perguntavam sempre por ele e por outros, que depois fugiram. O meu irmão teve de sair do bairro por um mês, em Março, e regressou em Abril”, conclui.
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CASO N.º 39: A FESTA ACABOU VÍTIMAS: Aspirante Silveiro Correia “Marcelo”, 27 anos; Jibóia DATA: 10 de Setembro de 2016 LOCAL: Rua Direita do Sucupira, bairro do Grafanil, município de Viana OCORRÊNCIA: Marcelo era um conhecido organizador de festas. Conforme testemunhas presentes no local, no dia em que foi assassinado, um grupo do SIC interrompeu a festa por volta das 22h00, deteve-o e levou-o para fora do recinto. Na rua, atingiram-no com um tiro no testa e outro tiro no peito. O seu amigo Jibóia foi alvejado com três tiros no peito e outro no pescoço. Segundo as testemunhas, essa operação foi comandada pelo agente Flávio Tavares, conhecido como Pula-Pula. CASO N.º 40: FUZILADOS NA CAMA VÍTIMAS: Francisco Nadinho “Kobe”, 25 anos; José Calosanse “Zé Badalho”, 23 anos; Domingos Paulo, 18 anos, todos naturais de Benguela. DATA: 9 de Setembro de 2016 LOCAL: bairro 6, município de Viana OCORRÊNCIA: Os primos Kobe e Zé Badalho, assim como o amigo Domingos, encontravam-se a dormir num quarto de chapas, no quintal do tio Miguel Canganjo, onde residiam há vários meses. “Um dos agentes ficou à minha porta e disse-nos que se alguém tentasse sair de casa seria morto. Eu, a minha esposa e as crianças ficámos ali calados até eles [o grupo operacional] terminarem a missão”, relata Miguel Canganjo. O relógio marcava 4h20 da madrugada. De acordo com o tio, “os agentes tiraram uma chapa do quarto dos miúdos, um deles entrou, disparou um tiro e abriu a porta para os outros”.
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“O Zé Badalho foi morto com um tiro na cabeça e outro no abdómen, na cama onde dormia. O Kobe morreu com dois tiros na cabeça e um nas costas. Mexeu-se e alvejaram-no nas costas, ali mesmo, na cama”, revela o tio. Já o amigo, Domingos Paulo, “morreu com dois tiros, um na cabeça e outro no peito. Levantou-se da cama e caiu ao lado da porta”. Minutos depois da retirada dos assassinos, uma patrulha da Polícia Nacional fez-se presente no local do crime. “Um primeiro subchefe, que liderava a patrulha, veio ter comigo e mandou-me ficar quieto, porque o trabalho tinha sido feito pela DNIC [SIC]”, revela Miguel Canganjo. “Perguntei qual era a razão de tal trabalho, e o primeiro subchefe disse-me directamente que os meus sobrinhos eram gatunos e as motos eram roubadas para justificar o assassinato deles”, denuncia. “Eu ajudei-os a comprar a primeira motorizada. Os sobrinhos viviam em Benguela e primeiro veio o Kobe, que começou a trabalhar como moto- -taxista. Ganhou dinheiro e foi buscar o primo. As motos não eram roubadas”, afirma o tio. Miguel Canganjo não esconde o comportamento dos sobrinhos: “Meteram-se na vida da delinquência”. Mas reitera que foi ele quem os ajudou, com fundos próprios, a comprar a primeira motorizada. Se os sobrinhos praticassem actos de delinquência relevantes — observa —, não estariam a viver num quarto improvisado feito de chapas, com falta de condições. Mais, afirma que nenhum dos três tinha cadastro criminal. “O Francisco esteve detido uma vez, na Esquadra dos Contentores (44ª Esquadra, Estalagem de Viana), por atropelamento de uma senhora que, entretanto, saiu ilesa. A polícia cobrou-me 15 mil kwanzas para o libertar, assim como à motorizada. Juntei o dinheiro, paguei e ele saiu em liberdade.”
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CASO N.º 41: O VIZINHO MATADOR VÍTIMA: Alexandre Carlos “Da Cazanga”, 18 anos, natural de Luanda DATA: 7 de Setembro de 2016 LOCAL: bairro 6, rua 2, próximo do Campo da Morte, município de Viana OCORRÊNCIA: “Três meses antes, o meu vizinho da DNIC [SIC], ‘Ti Paulo’, veio ter comigo e disse-me para enviar o meu filho para o mato, porque ele estava na lista para ser morto”, conta Carlos Francisco Alexandre. Agradecido, o pai enviou o filho ao município de Calulo, na província do Kwanza-Sul. “Mas, como esses miúdos são teimosos, ele regressou contra a minha vontade”, conta. Passou a ser vigiado pelos operacionais do SIC. “No dia 6, por volta das 7h00, o meu filho pediu 50 kwanzas à mãe e foi à cantina comprar detergente para lavar a sua roupa. Quem o agarrou, na cantina, foi o próprio chefe Paulo. Como ele estava acompanhado por mais outro operacional, o miúdo resistiu mas conseguiram amarrá-lo e meteram-no numa motorizada”, conta. É comum, nessas operações, o capturado ser levado até à esquadra e/ou local de execução numa motorizada, entre dois agentes. Carlos Francisco Alexandre seguiu o vizinho e encontrou o seu filho amarrado na subunidade [conhecida como das madres] da Esquadra dos Contentores [Estalagem], e o responsável das operações, o seu vizinho Paulo. “O chefe Paulo perguntou-me se eu não tinha vergonha de acudir o meu filho depois de me ter dito para enviá-lo para a província. Respondi que, como pai, era meu dever saber sobre o meu filho”, conta. “O chefe Paulo perguntou-me por que o meu filho voltou do mato. E disse-me: ‘vai preparar o caixão porque vamos matá-lo hoje mesmo. Enxotou-me dali”, denuncia. Persistente, o pai dirigiu-se à esquadra principal para interceder pela vida do seu filho. “Os agentes da DNIC disseram-me: ‘Vamos te educar.’ Levaram-me para uma sala, pegaram numa catana, e com o lado, bateram-me nas palmas das mãos, muitas vezes, até as mãos ficarem todas inflamadas.” Mesmo com as mãos inflamadas, depois de libertado, o pai foi em busca de pão para alimentar o seu filho. Permitiram-lhe que o entregasse.
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No dia seguinte, logo pela manhã, deslocou-se à referida unidade para saber da situação do filho. Enquanto aguardava, o filho e um outro jovem desconhecido foram levados pelos operacionais até à sua rua, passando perto de sua casa. Foram executados a poucos metros da casa, próximo do Campo da Morte. Da Cazanga foi fuzilado com dois tiros na cabeça e um terceiro na perna direita. Tinham passado seis dias desde que regressara de Calulo. Os assassinos separaram os cadáveres e deixaram o jovem não identificado mais adiante. “O único dia em que o meu filho esteve detido foi no dia anterior ao seu fuzilamento. Ele gostava de lutar na rua, era confusionista, mas não era bandido. Alguns desses polícias, que conheço bem, têm filhos altamente delinquentes mas não os matam, protegem-nos”, afirma o pai. CASO N.º 42: BICHO MAU VÍTIMA: Sebastião Monteiro Viegas “Bicho Mau”, 25 anos, natural de Luanda; Léo Baba, Irmão do Toca-Lá; mais duas vítimas não identificadas. DATA: 6 de Setembro de 2016 LOCAL: Primeira dos Carneiros, bairro 6 (Abega), uma rua depois do Campo da Morte OCORRÊNCIA: “Às cinco da manhã, mais de sete agentes fardados da Polícia Nacional vieram buscar-me a casa. Por não terem encontrado o Sebas, espancaram o irmão menor, Arnaldo Monteiro de Quintas, de 15 anos, com porretes, e levaram-no para a Esquadra dos Contentores [Estalagem]”, conta Teresa Monteiro. Os agentes exigiram à mãe que os levasse até à residência de Sebas, no bairro Palanca, onde este vivia com a esposa. “Pelo caminho, os agentes do SIC disseram-me: ‘Mamá, prepara o caixão. Hoje será o dia da morte do teu filho.’ Eu respondi: ‘Seja feita a vossa vontade”, revela Teresa Monteiro. Já em casa do filho, os agentes dedicaram-se a esbofetear a sua nora na cara, diante dos filhos de cinco e três anos, que choravam. Obrigaram-na
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a telefonar ao marido pedindo-lhe que fosse ter consigo para uma emergência. Retiraram a fotografia do jovem da sala e foram emboscá-lo. “Saí da casa do meu filho sozinha. Como não tinha dinheiro para o transporte de regresso a casa, fui pedir apoio a alguns familiares que viviam ali perto e avisá-los sobre o que ia acontecer”, recorda Teresa Monteiro. “Às 7h30 ao chegar a minha casa, recebi a notícia de que o meu filho já tinha sido morto com quatro tiros. Dois na cabeça, um no peito e outro no abdómen”, afirma. “Soube que ele e o amigo tinham sido apanhados no bairro da FTU, quando desciam do táxi, a caminho da sua casa. Trouxeram-nos até aqui, a cerca de 300 metros da minha casa, onde foram fuzilados.” A foto de Bicho Mau, morto, com uma arma sobre o peito, e do amigo ao lado, tornou-se viral nas redes sociais. Algumas testemunhas entrevistadas afirmaram que, depois de o terem executado, um dos agentes colocou a arma no peito da vítima, para que assim fosse fotografada. No patrulheiro que levou Teresa Monteiro à casa do seu filho, estavam dois jovens manietados por um único par de algemas. Tiveram o mesmo destino. “Esses dois jovens, que não sei quem eram, também foram fuzilados aqui no meu bairro, noutra rua. Já não sei se foi pouco antes ou depois do meu filho e do seu amigo. Nesse mesmo dia, aqui nessa zona, as autoridades mataram mais de 15 jovens”, acrescenta. Teresa Monteiro assume que o seu filho era delinquente. “Como mãe, nunca mandei o meu filho roubar. Se ele foi delinquente, vamos defendê-lo mais como? Tenho medo”, afirma. Um mês antes, a 7 de Agosto, Teresa Monteiro foi visitada de manhã por cinco ou seis indivíduos que se identificaram como sendo operacionais do SIC. Disseram-lhe que nesse dia o filho tinha assaltado uma residência. “Encontraram-me no quarto a vestir-me e pedi-lhes que esperassem. Disseram-me logo: ‘Vais morrer também.’ Esses indivíduos levaram a minha botija de gás. Um deles olhou para o meu televisor pequeno, muito antigo, e disse: ‘A mãe do gatuno tem esse televisor? Aqui não tem nada de jeito para levar”, recorda. Depois, os homens conduziram Teresa Monteiro à casa assaltada. “Disseram-me que ele tinha assaltado dois televisores, telemóveis, uma botija de gás e não sei mais o quê. Giraram comigo de carro durante uma hora e depois decidiram levar-me à esquadra dos Contentores, na Estalagem.”
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Segundo Teresa Monteiro, o oficial de serviço repreendeu os agentes, lembrando-lhes que o crime é intransmissível e que não tinham o direito de tirar a mãe de casa. Terá então encaminhado os agentes para uma cela. “A polícia ligou para o meu filho, na minha presença, e ele confessou o crime por telefone. Ali mesmo, o oficial disse-me: ‘Mãe, prepara já o caixão para o teu filho”, revela. Teresa Monteiro, corroborada por dois outros munícipes, descreve a onda de terror que tem varrido o município de Viana, e conta que os assassinos institucionais tem uma quota de alvos a abater, a qual divulgam junto de familiares das vítimas. “Aqui nessa zona, eles diziam que tinham marcado a morte de 250 jovens. Os grandes bandidos, aqueles que podem pagar pela sua liberdade, esses andam aí. Matam esses miúdos que roubam telemóveis, botijas de gás e muitos inocentes.” CASO N.º 43: A CORRIDA VÍTIMA: Daniel Soempia Cambalo “Bruno Lamba”, 18 anos; Tomás Bonifácio “923” DATA: 6 de Setembro de 2016 LOCAL: bairro 6, município de Viana OCORRÊNCIA: Dois indivíduos circulavam em motorizadas próximo do mercado da Mamá Gorda em busca de dois gatunos. Um dos jovens que interpelaram para obter informações falou com o Maka Angola. O jovem, que prefere o anonimato, identificou os indivíduos: um era agente da Polícia Nacional, fardado; outro era do SIC, ambos alegadamente afectos à 44ª Esquadra. “Disseram-me que estavam a perseguir dois gatunos. Vinham a reboque, em duas motorizadas diferentes. Conheço bem os rostos deles”, afirma o jovem, que lhes indicou o caminho por deveriam seguir. “Um deles [dos alvos] foi esconder-se em minha casa. Mal o meu pai o viu, expulsou-o logo. Ele nem sequer conseguiu falar, não estava armado e não tinha nada consigo”, conta a testemunha. “O meu pai não se atreveria a expulsar alguém que tivesse uma arma ou que fosse ameaçador. Lá fora, o rapaz foi logo baleado.”
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Segundo a activista Laurinda Gouveia, que esteve no local minutos após o sucedido, os jovens foram encurralados num quintal de muros altos, que não conseguiram saltar, e ficaram à mercê dos agentes: “Os corpos estavam mesmo ao lado do muro. O jovem de t-shirt amarela, identificado como Bruno Lamba, levou um tiro na testa, outro no peito e mais outro no braço direito. O do casaco azul, conhecido como Tomás 923, do grupo Perturbados, foi executado com um tiro na nuca.” Os corpos estiveram expostos durante quatro horas no referido quintal, que é habitualmente usado para a prática de judo, até que foram removidos pelo SIC. O jovem-testemunha afirma peremptoriamente que o acto foi cometido por agentes da Polícia. “Todos nós aqui podemos comprovar que são polícias. O da ordem pública andou aqui a correr com a pistola em punho na mão direita. O do SIC também. Todos nós vimos.” “Segundo nos disse um dos agentes com quem falámos, de outra unidade e que seguiu o caso, a matança foi intencional”, revela o jovem. Luciano Domingos, pai de Daniel Soempia Cambalo, tinha convidado o filho para o acompanhar nas suas diligências: “Ele recusou. Disse-me que tinha outros compromissos. Quando regressei a casa, fui informado da morte do meu filho.” “O meu filho nunca teve processos de crime, nunca se envolveu em actos de delinquência. Trabalhava numa padaria. Eu sabia que ele tinha alguns amigos com desvios [delinquentes], mas um pai não pode saber e decidir sobre os amigos do seu filho”, continua. É com gratidão que recorda como o filho ajudava muito a família: “Eu estou desempregado, sou ex-militar. O meu filho contribuía para o sustento da família com o que ganhava na padaria.” Luciano Domingos explica por que fez o enterro do filho sem apresentar queixa às autoridades: “Se foi a polícia e o SIC quem matou o meu filho, como viram as testemunhas, achei desnecessário. Entreguei o caso às mãos de Deus e fiquei apenas com a dor.” “A polícia e o SIC não estão a fazer um bom trabalho. Seria bom trabalho caso levassem os suspeitos à justiça para investigarem primeiro, antes de matarem. Tinham de apurar antes a verdade, não é só matar”, critica. Para si, “as pessoas que apoiam esses assassinatos da polícia também são assassinas. O artigo 30.º da Constituição proíbe a pena de morte. Onde está o respeito pela vida humana neste país?”, questiona.
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CASO N.º 44: A MISSÃO INGRATA VÍTIMA: Ruben Fernandes Manuel “Nuno”, 21 anos, natural do Huambo DATA: 26 de Agosto de 2016 LOCAL: bairro Santa, município de Viana OCORRÊNCIA: De acordo com o testemunho de familiares e amigos, Nuno era procurado por agentes do SIC, por suspeita de actos delinquentes. No dia do seu assassinato, por volta das 20h00, um grupo de homens à paisana perseguiu-o até a um beco sem saída, onde o executou com sete tiros. Nuno foi atingido com dois tiros na cabeça, três no abdómen, um na mão direita e outro no pé esquerdo. Ao seu pai, identificado como sendo funcionário do SIC, foi atribuída a missão de recolher o cadáver do seu filho, passadas duas horas do fuzilamento. Um dos amigos de Nuno, que prefere o anonimato, refere que o jovem tinha sido libertado há três meses, depois de ter passado igual tempo detido na Comarca de Viana. Inicialmente, foi membro do gangue “Criminal Família”, tendo depois aderido aos “Metidos”. CASO N.º 45: MICUIA VÍTIMA: Fernando Joaquim “Micuia”, 19 anos, natural do Kwanza-Norte DATA: 16 de Junho de 2016 LOCAL: junto ao Campo da Morte, bairro 6, município de Viana OCORRÊNCIA: Às seis da manhã, vários elementos identificados com coletes da DNIC — predecessora do SIC — bateram à porta de Omelina Fernandes na área do Caprédio. De acordo com um familiar seu, que prefere o anonimato, os referidos operacionais detiveram o seu filho e trancaram-na no quarto, porque ela tentou desesperadamente defender o filho.
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“Mais tarde fomos à Esquadra dos Contentores [44ª Esquadra], onde a polícia nos informou de que o Micuia já tinha sido fuzilado. Segundo o polícia, o Micuia andava com bandidos e, por isso, também era bandido e todos tinham de ser mortos”, refere o familiar. A família soube então que o corpo de Micuia, com três tiros, um dos quais na cabeça, jazia nas proximidades do Campo da Morte. Com Micuia, foram fuzilados mais três jovens, cujas identidades se desconhecem. O familiar de Micuia apenas lhes viu os corpos. CASO N.º 46: “O MEU TIO ERA MESMO GATUNO” VÍTIMA: Mateus André Manuel “Cabeça”, 27 anos, natural de Malanje; três outros jovens cuja identidade se desconhece DATA: 6 de Junho de 2016 LOCAL: bairro 6, Campo da Morte, município de Viana OCORRÊNCIA: “O meu tio era mesmo gatuno. Já esteve detido quatro vezes. Mexia mesmo”, relata a sobrinha de Mateus “Cabeça”, preferindo não ser identificada. Já passava das seis da manhã quando Cabeça foi encontrado em casa da irmã, no bairro 6, em conversa com dois amigos que a família desconhecia. “Foi o SIC quem os tirou de casa. Deram um giro com eles e por volta das 8h00 levaram-nos para o Campo da Morte, onde foram fuzilados. O tio Cabeça levou dois tiros na cabeça”, explica. “Os corpos passaram a noite no local do crime, porque não havia carros para a recolha de cadáveres. Nesse dia, o SIC matou muito. Foram cerca de 14 pessoas ao todo”, revela. A sobrinha indica que Cabeça “arranjava muitos problemas para a família”. Como forma de o afastarem da delinquência, enviaram-no para Malanje, onde passou seis meses. “Mas não ouvia conselhos.” Regressou para a morte.
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CASO N.º 47: DA ESQUADRA DOS CONTENTORES PARA O CAMPO DA MORTE VÍTIMAS: Marcolino Hossi “Litana”, 22 anos; mais dois jovens não identificados DATA: 5 de Maio de 2016 LOCAL: Campo da Morte, bairro 6, município de Viana. OCORRÊNCIA: Litana, também conhecido por “Todas as Tias”, pela popularidade de que gozava entre as mães da sua área de residência, tinha um historial de delinquência, como conta o seu primo Pedro Sabino Fito. Dias antes do fatídico acontecimento, Litana e alguns amigos assaltaram um vizinho, efectivo das Forças Armadas Angolanas, e roubaram-lhe o telemóvel. A vizinhança identificou-o. “Apanharam-no, deram-lhe uma surra ali mesmo no bairro e levaram-no para a Esquadra dos Contentores (na Estalagem). Foi a partir dessa esquadra que o levaram directamente para o Campo da Morte”, narra o primo. Por volta das 9h00, dois agentes de campo, com coletes bem identificados do SIC, e um indivíduo à paisana dirigiram-se ao campo num Toyota Land- -Cruiser de cor branca, vidros fumados e sem matrícula. Da viatura, retiraram três jovens, incluindo o Marcolino Hossi “Litana”, de 26 anos. Pedro Fito, que testemunhou o fuzilamento, conta que os agentes obrigaram os jovens a dar alguns passos para frente sem olharem para trás. “O Litana recusou-se e disse que podiam matá-lo assim mesmo, de frente”, realça a testemunha. “O primeiro, ao tentar dar um passo, apanhou um tiro nas costas e outro na nuca, que lhe atravessou o olho. O Litana levou um tiro nas costas e outro na cabeça.” O terceiro também foi assassinado com um tiro na cabeça. Segundo depoimentos de C.F., na altura dos fuzilamentos “decorria um jogo de futebol no campo e havia muitas crianças a assistir, que acabaram também por presenciar as execuções”.
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“Muitos [transeuntes e residentes locais] vieram aplaudir a acção do SIC, dizendo ‘bem feito’, porque os jovens atormentavam a população e a polícia estava a fazer um bom trabalho”, denuncia Pedro Fito. “A população pisoteou os corpos dos malogrados. Outros diziam que [os mortos] estavam a ressuscitar e atiravam-lhes areia.” “Apesar de o meu primo ter sido um delinquente, a forma desumana como a população celebrou a sua morte e a dos outros jovens é muito triste”, conclui. CASO N.º 48: “DISSE APENAS QUE AMAVA MUITO A MINHA MÃE” VÍTIMA: Manuel Monteiro, 37 anos, natural do Uíge DATA: Abril de 2016 LOCAL: bairro do Belo Monte, município de Viana OCORRÊNCIA: “O meu pai vendia drogas e assaltava carros”, conta Denilson Monteiro. Manuel Monteiro encontrava-se à porta de casa quando, por volta das 23h00, parou diante de si uma minivan Toyota Hiace de vidros fumados. De acordo com as declarações prestadas pelo filho, alguns indivíduos, em número não especificado, desceram da viatura e descarregaram dez tiros sobre o peito e o abdómen do seu pai. “O meu pai era muito grande. Era um kaenche [lutador de grande porte físico].” Denilson e a mãe, que se encontravam no quintal, a poucos passos da porta, acorreram em seu socorro mal notaram o estranho movimento da viatura, o desembarque dos passageiros e a abordagem da vítima. “Depois dos disparos, aproximámo-nos dele aos gritos, a chorarmos, e ele ainda estava vivo. Disse apenas que amava muito a minha mãe e pediu-lhe para cuidar bem de nós, os três filhos”, testemunha Denilson.
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“Ele era bandido. Esteve detido muitas vezes. Sabíamos que ele poderia acabar morto por causa dos seus actos e também vimos que aquela operação não poderia ter sido realizada por bandidos iguais. Tinha de ser a polícia a matá-lo”, acusa. A área onde vivem é muito isolada, “tipo no fim do mundo”, explica. E pouco depois da operação já lá estava a viatura de recolha de cadáveres afecta ao Serviço de Investigação Criminal. “Só poderia ter sido em coordenação com os que mataram, pois sabiam o local exacto onde isso aconteceu.” Segundo Denilson, as esquadras locais não têm viaturas de recolha de mortos, as quais só aparecem em bairros como Belo Monte para recolher supostos delinquentes que tenham sido assassinados. CASO N.º 49: DEPOIS DO FUNERAL, A MORTE VÍTIMA: Manuel Rui Luís da Silva “PCB”, 19 anos, natural de Luanda; António Agostinho Manuel “Stony Latchutcho”, 20 anos, natural do Uíge; “Da Menina”; e mais um indivíduo não identificado DATA: 19 de Abril de 2016 LOCAL: Campo da Morte, bairro 6, município de Viana OCORRÊNCIA: Depois de assistirem ao funeral de um vizinho, os quatro jovens ficaram a conversar na primeira rua do bairro 6. De acordo com o depoimento de Zinha, irmã de PCB, pelas 13h00 os jovens foram cercados e detidos por vários elementos à paisana, que se identificaram como agentes do SIC. “Foram pessoas do SIC, os mesmos que fizeram a razia no bairro”, conta. Transportados numa carrinha até ao Campo da Morte, a poucos minutos do local de detenção, os rapazes foram então fuzilados. “O meu irmão apanhou cinco tiros, dois da cabeça”, revela Zinha. Sem revelar o seu nome, a irmã de Stony Latchutcho confirma que este foi cravejado com seis tiros, incluindo na cabeça. Latchutcho encontrava-se em liberdade desde Janeiro anterior, depois de ter passado seis meses na
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Comarca Central de Luanda. “Ele e os amigos tinham furtado uma botija de gás. Ele não trabalhava”, explica a irmã. Ao todo, Latchutcho esteve detido três vezes por furto. Em Dezembro do ano anterior, PCB estivera detido por semana na Esquadra dos Contentores (junto à Moagem do Kikolo), por suspeita de furto. Estudava a 11ª Classe e tinha conseguido arranjar emprego. Estava a dias de começar a trabalhar quando foi fuzilado, conforme relato da irmã. CASO N.º 50: DESESPERADAMENTE EM BUSCA DE UM CORPO VÍTIMA: Moisés Domingos Capitão “Oficial”, 22 anos, natural de Luanda DATA: 13 de Abril de 2016 LOCAL: bairro Kilamba-Kiaxi OCORRÊNCIA: Oficial chegou a casa por volta das 16h00, depois de mais uma jornada de trabalho como ladrilhador. Mudou de roupa e foi jogar à bola com os amigos na rua. Ao cair da noite, segundo depoimento dos familiares, regressou a casa, tomou banho e foi dormir. “À meia-noite, vários homens armados arrombaram a porta do quarto dos rapazes. Tiraram o meu irmão Kotchongo, de 21 anos, e perguntaram-lhe se era o Oficial, ao que ele respondeu que não. O Oficial dormia profundamente e arrancaram-no da cama. Nós, familiares, assistimos a tudo”, recorda Lena, irmã da vítima. Segundo Lena, os raptores que levaram Oficial — sem exibirem qualquer mandado de captura — estacionaram um Toyota Land-Cruiser “com barra cor de laranja e vidros fumados” mesmo diante do portão da residência. “De manhã muito cedo fomos à Esquadra da Calemba 2. Informaram-nos de que a viatura era deles [ao serviço da Esquadra] e que os operacionais tinham saído com ela por volta das 21h00 do dia anterior e ainda não tinham regressado”, conta Lena. Entretanto, de acordo com a família, ao segundo dia a Esquadra da Calemba 2 apresentou uma segunda versão do caso, negando o envolvimento
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no caso. “Disseram-nos depois que no dia em que o meu irmão foi levado ninguém trabalhou. Ao terceiro dia, fomos lá outra vez e à DPIC [Direcção Provincial de Investigação Criminal], e disseram-nos que os operacionais não trabalharam àquela hora.” Durante três semanas de pesadelo, a família percorreu as esquadras de Calemba, Kilamba Kiaxi, Talatona, Fubu e Kapolo, em busca de uma resposta sobre o paradeiro de Oficial. “Diziam-nos que ele tinha sido raptado por bandidos e os polícias não sabiam de nada.” À terceira semana, a família recebeu um telefonema de uma prima, residente na zona do Bita, em Viana, a informar que o corpo de Oficial havia sido largado nas matas do Kilamba. “Fomos lá e confirmámos que o corpo era dele. Não havia sinais de tiro nem de espancamentos. O miúdo nunca foi criminoso, nunca esteve detido”, lamenta a irmã.
AGRADECIMENTOS
AGRADECIMENTOS
O “CAMPO DA MORTE”
91O CAMPO DA MORTE RELATÓRIO SOBRE EXECUÇÕES SUMÁRIAS EM LUANDA 2016-2017
A disponibilidade, a coragem e os depoimentos de familiares, amigos e vizinhos das vítimas, bem como de testemunhas dos crimes, foram instrumentais para a realização deste relatório. Sem o contributo de todos esses cidadãos, o trabalho não teria sido possível, pelo que aqui lhes prestamos um agradecimento especial. Também agradecemos a forma desinteressada e anónima com que um homem de negócios angolano patrocinou a pesquisa de campo por parte de quinze assistentes. A bondade deste homem também serviu, em situações extremas, para apoiar pontualmente alguns familiares e vítimas, como no caso da mãe que tinha desistido de enterrar o filho porque não dispunha de meios para comprar o caixão. A colaboração dos já referidos assistentes foi inestimável. Residentes locais, conhecem as áreas onde ocorreu grande parte dos assassinatos, o que lhe permitiu identificar casos, localizar familiares, amigos, vizinhos e testemunhas. A seu cargo esteve a difícil tarefa de convencer as pessoas a falar, promovendo a cultura de denúncia da violação dos direitos humanos. Por razões de segurança, optámos por não revelar os nomes destes assistentes, mas eles sabem que como lhes estamos gratos pelo extraordinário trabalho que realizaram. De forma voluntária, Rui Verde e Inês Hugon ofereceram, respectivamente, aconselhamento jurídico e revisão do relatório. Bem hajam pela vossa amizade. Este trabalho foi realizado de forma voluntária e sem qualquer apoio institucional. À família, que sofre com as consequências da dedicação à causa do respeito pelos direitos hum
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