Bem-vindo à clínica (de medicina alternativa) especializada em burlar reformados
Por telefone, os reformados eram convidados a uma consulta grátis. A burla começava aí: eram coagidos a adquirir tratamentos e aparelhos médicos. Numa das consultas, chegaram a pedir 20 mil euros.
- “Pescar” reformados, seguir um guião e coagi-los
- Uma consulta (quase) rendeu 20 mil euros
- “Bem vindo à Parallel Relax. Pela sua saúde com a nossa ajuda, todos somos importantes”
- Um esquema com mais de 10 anos: “Fechavam uma empresa e abriam outra”
- “No call center, as empregadas desconheciam o que se estava a passar”
— Venho aqui entregar os 300 euros que faltavam.
Antónia já sabia que tinha sido enganada. Ainda assim, quis pagar o montante que devia à clínica onde tinha ido fazer tratamentos de medicina alternativa. “São pessoas honestas que não sabem lidar com a desonestidade”, disse ao Observador Isabel, uma das moradoras do prédio onde a suposta clínica estava instalada. Antónia não foi a única vítima que Isabel conheceu. Também encontrou Manuel no prédio. Ele fez-lhe queixas e disse-lhe que tinha sido enganado. Isabel ofereceu-se até para ir com Manuel fazer a denúncia. Mas, no início, Manuel não queria: “Tinha medo de tirar o emprego aos empregados da clínica”. Mas acabou por fazê-lo e Isabel acompanhou-o. Inicialmente, foram à ASAE (Autoridade de Segurança Alimentar e Económica), só que foram encaminhados para outro lado. Isabel não se recorda onde, mas sabe que, na altura, foi informada de que a empresa existia e constava do Registo Comercial.
Já Olga, uma vizinha, conta a história de um reformado a quem continuava a ser retirado dinheiro da conta, mesmo depois de ter morrido. “Apareceu aqui o filho desesperado”, lembra ao Observador. E Olga já nem se lembra de quantas vezes testemunhou situações semelhantes. “Era demais!”, exalta-se, acrescentando que os responsáveis pela clínica relacionavam-se com os moradores do prédio e eram “muito prestáveis”.
— Ladrões! Ladrões! Ladrões!
Luísa veio à porta para perceber o que se passava quando ouviu aqueles gritos. Era mais uma vítima. “Tantos vieram bater-me à porta a pedir ajuda”, diz esta outra vizinha. Alguns com dificuldade em andar, outros a chorar. “Dava dó. Apareceu aqui uma vez uma senhora coxa“, lembra Luísa enquanto tenta imitar a idosa.
Ao todo, são 30 as vítimas identificadas até ao momento pela Polícia Judiciária (PJ). Todos vítimas do mesmo crime: burla. Todas com algo em comum: reformados e fragilizados.
“Pescar” reformados, seguir um guião e coagi-los
“Iam à pesca”, explica fonte da PJ ao Observador. Faziam uma pesquisa aleatória através de listas telefónicas e iam tentando. Mas, mesmo quando a chamada telefónica era atendida do outro lado, o objetivo estava longe de ser cumprido. A tarefa seguinte era descobrir se a pessoa que tinha atendido o telefone se enquadrava nos critérios. O alvo ideal eram idosos com problemas de ossos e articulações, já que o aparelho — eletroestimuladores — e o tratamento que ofereciam seria “milagroso” para esses problemas de saúde. “O aparelho atuaria nas artroses. Serviria para estimular a parte muscular. Se o problema fosse no braço, o aparelho iria fazer bem ao braço, se fosse na perna era na perna. As pessoas queixavam-se e aquilo [o aparelho] seria milagroso”, contou a fonte da PJ.
Os empregados do ‘call center’ da burla tinham um guião que seguiam para descobrir se os alvos correspondiam aos critérios. Mas que critérios? A idade era o primeiro: tinham que ter mais de 65 anos. Depois, havia cuidados a ter: se tivessem problemas de coração, epilepsia ou usassem um pacemaker estavam excluídos. “Não iam arriscar vender um produto daqueles a pessoas com esses problemas”, explicou ainda a fonte da PJ. Escolhidos os alvos, a partir daí avançavam para a divulgação do produto e tentavam convencer a pessoa a deslocar-se a uma das duas clínicas que mantinham. “Davam uma aparência de legalidade às coisas. Através do telefone faziam sempre crer que estavam a falar de entidades certificadas pelo Serviço Nacional de Saúde”, diz.
"Davam uma aparência de legalidade às coisas. Através do telefone faziam sempre crer que estavam a falar de entidades certificadas pelo Serviço Nacional de Saúde."
Uma das clínicas chegou a ligar para dois moradores do mesmo prédio onde tinha consultório e ofereceram uma consulta gratuita de medicina alternativa, contaram ao Observador os moradores contactados. Uma delas descreveu o episódio com pormenor: fizeram-lhe várias perguntas e deram-lhe a morada. Foi então que percebeu que era no mesmo prédio onde vivia. “Mas essa é a minha morada”, contrapôs, na altura, provocando do outro lado da linha alguma inquietação. “Estamos aqui com problemas no computador. Ligamos mais tarde”, ter-lhe-ão dito. Não ligaram. A moradora tomou a iniciativa de ligar ela e disse-lhes que tinha sido contactada anteriormente por telefone. Deram a mesma desculpa: problemas no computador. Nunca mais foi contactada pela clínica.
Uma consulta (quase) rendeu 20 mil euros
“Levavam muito tempo, chegavam a estar duas a três horas lá dentro”, volta a explicar a fonte da PJ. Ou seja, as falsas consultas eram sinónimo de horas de coação. O objetivo era vender os tais eletroestimuladores — aparelhos que geram sinais elétricos que produzem contrações musculares — ou fazer tratamentos com esses aparelhos.
A forma mais eficaz de coação para fazer os clientes/doentes adquirir os produtos era cansar ao máximo os idosos. “O tempo que ali estavam a divulgar o produto e a fazer demonstração, levava-os à exaustão”. Muitas vezes as falsas consultas ocupavam as horas da refeição — horas em que habitualmente têm de tomar medicamentos. Os idosos precisavam de comer e de fazer a medicação e viam-se sem forma de o fazer. “Muitas vezes, o que os idosos queriam era ver-se livres deles. Então diziam que sim, pensando que depois, mesmo que o aparelho não servisse, o poderiam devolver ou anular a compra”, conta a fonte da PJ. Houve casos em que fragilizavam as pessoas. Pediam-lhes para se despirem para fazer os tratamentos. Ficavam expostas. “Exerciam uma grande pressão sobre eles”.
"Muitas vezes, o que os idosos queriam era ver-se livres deles. Então diziam que sim, pensando que depois, mesmo que o aparelho não servisse, pudessem devolver ou anular a compra."
Os eletroestimuladores são aparelhos que existem no mercado em vários modelos e custam entre 80 a 100 euros. Os vendidos na falsa clínica não eram fabricados pelos burlões mas adquiridos por eles e revendidos por quantias “exorbitantes”. Normalmente, pediam entre mil e 2,5 mil euros por cada um. Iam fazendo a gestão para perceber quanto dinheiro podiam pedir a cada idoso. “Num dos casos, chegaram a pedir 20 mil euros por um eletroestimulador. Mas a vítima apercebeu-se que o valor era exagerado e recusou pagar”, contou fonte da PJ ao Observador.
Quando as pessoas não tinham o dinheiro com eles, os burlões iam com os idosos ao multibanco e indicavam-lhes os passos todos para proceder ao pagamento. “Várias vezes vi-os [os idosos] a descerem para irem levantar dinheiro”, relata a moradora Olga ao Observador. Curiosamente, ambas as clínicas estavam localizadas em prédios em que havia uma caixa de multibanco no rés-do-chão. Se os idosos não podiam pagar no momento, os falsos terapeutas apresentavam um plano de pagamentos.
“Bem vindo à Parallel Relax. Pela sua saúde com a nossa ajuda, todos somos importantes”
Um dos consultórios estava localizado no Saldanha, em Lisboa. Outro num prédio residencial no centro de Algés, em Oeiras. À porta de entrada do prédio, junto à campainha do primeiro andar há ainda uma placa onde se pode ler “Centro de terapias e medicinas complementares”. A receção da clínica e algumas salas estão localizadas no 1.º andar mas também há outros consultórios no 4.º. “É um consultório elementar”, descreve a fonte da PJ ao Observador, com os elementos básicos. Mas os falsos terapeutas “andavam de bata branca”. Era suficiente: “Os idosos olhavam para a bata branca e pronto: está ali uma pessoa que está ligada ao Sistema de Saúde e que está a vender um bem que é bom para saúde”, explica a fonte da PJ.
"Os idosos olhavam para a bata branca e pronto: está ali uma pessoa que está ligada ao Sistema de Saúde e que está a vender um bem que é bom para a saúde."
“Tinham uma estrutura empresarial montada”, diz ainda a fonte da PJ. A empresa cumpria as formalidades e aparentava corresponder àquilo que promovia: constava do Registo Comercial e apresentava o relatório e contas. A Parallel Relax foi constituída no dia 12 de agosto de 2015 por Alfredo Eusébio da Costa Novo da Silva e apresentou o relatório e contas nos dois anos que se seguiram. Com consultas que chegaram a render vários milhares de euros — num dos casos de que a PJ teve conhecimento –, de acordo com as informações que estão presentes no relatório e contas da empresa, a Parallel Relax dava prejuízo: em 2015, teve 18.831,54 euros de prejuízo, num ano em que teve 37.191,05 euros de receitas. No ano seguinte, a empresa quase quadruplicou as receitas para 143.915,50 euros, conseguindo diminuir o prejuízo para 3.780,07 euros.
A aparência de legalidade alargava-se à Internet. A Parallel Relax tem um site com imagens harmoniosas, onde os utilizadores são recebidos com a música “Comptine D’un Autre Été”, de Yann Tiersen. Na página principal, pode ler-se em letras garrafais: “Bem vindo à Parallel Relax. Pela sua saúde com a nossa ajuda, todos somos importantes”. No site são apresentadas as supostas terapias que a clínica oferece, a morada em Algés, os contactos necessários para marcar uma consulta e vários apelos para o fazer. “Primamos pela diferença na positiva, nesse sentido, pretendemos que os nossos utentes encontrem uma mais-valia sempre que nos visitem”, pode ler-se ainda no site.
Um esquema com mais de 10 anos: “Fechavam uma empresa e abriam outra”
Agora, à porta do consultório em Algés, pode ler-se, numa folha colada por baixo da listagem das supostas terapias que a clínica oferecia:
“Estamos encerrados temporariamente por motivo de alterações necessárias para o funcionamento da clínica. Obrigado pela compreensão”.
Não é a primeira vez que uma clínica como esta é fechada. Este tipo deesquema já remonta a 2006, pelas mãos dos mesmos burlões mas em sítios diferentes. Os burlões criavam uma empresa e, quando esta começava a receber muitas queixas, fechavam-na. “As pessoas que se apercebiam que eram enganadas, através de amigos ou de familiares, tendiam a ligar para lá [para a clínica], a querer devolver os aparelhos”, explicou a fonte da PJ ao Observador. “Cheguei a ver aqui idosos a reclamar, que já vinham de outras clínicas”, contou a moradora Olga. Mas, explica a PJ “alguns não diziam nada por vergonha“: “Nestas idades, as pessoas já acham que estão a perder as faculdades e constatarem que alguém se aproveitou deles, que foram enganados, ainda os envergonha mais porque parece que, de facto, é um comprovativo de que estão mesmo a perder as faculdades”.
"As pessoas já acham que estão a perder as faculdades e constatarem que alguém se aproveitou deles ainda os envergonha mais porque parece que, de facto, é um comprovativo de que estão mesmo a perder as faculdades."
Alguns foram mesmo à esquadra da PSP fazer uma participação. Mas no início estava tudo muito disperso: “Uns processos aqui, outros processos ali”. Os burlões chegaram a ser chamados à PSP, mas era “uma coisa simples”. “Desvaloriza-se sempre o que os idosos dizem“, admitiu a fonte da PJ. “Para eles, era bom haver dispersão”, disse a mesma fonte. Quando os processos se começavam a acumular, fechavam a empresa e começavam outra. Na altura em que a investigação começava a evoluir e as autoridades iam à procura da empresa, ela já não existia.
“No call center, as empregadas desconheciam o que se estava a passar”
Foi uma dessas participações — neste caso à PJ — que desencadeou todo este processo: veio de um reformado com mais do que 80 anos. Chegou acompanhado por familiares e queixava-se que lhe tinha sido vendido um aparelho que não tinha tido qualquer benefício para a sua saúde. A partir daí, a investigação começou. Fizeram buscas aos falsos centros de tratamento, ao call center e a uma vivenda que Alfredo Silva tem na vila de Sintra.
“Tinham muitas empregadas”, explicou a fonte da PJ. Cinco em 2015 e seis em 2016, de acordo com a informação oficial que consta no Registo Comercial. Não ganhavam à comissão. Aliás, nem todos sabiam do esquema. “Havia quem não se tivesse apercebido de que os objetos eram vendidos por aquele valor”, explica a PJ. “No call center, as pessoas ficaram estupefactas. A maior parte desconhecia o que se estava a passar“. Mas havia falsos terapeutas que sabiam do esquema. Só “algumas empregadas que trabalhavam há pouco tempo podiam não se ter apercebido”.
"No callcenter, as pessoas ficaram estupefactas. A maior parte desconhecia o que se estava a passar. Algumas empregadas que trabalhavam há pouco tempo podiam não se ter apercebido."
Quem estava ciente do que se estava a passar foi detido: um homem, de 55 anos, e duas mulheres, de 55 e 29. Os três envolvidos foram presentes a primeiro interrogatório judicial. O homem, Alfredo, e a mulher ficaram em prisão preventiva. “Eram os cérebros da organização, quem usufruía dos valores”, explicou a PJ. A outra mulher, de 29 anos, uma empregada responsável por uma das áreas da clínica, terá de se apresentar periodicamente às autoridades e está proibida de contactar com os outros arguidos.
Só em 2017, a Deco recebeu 1.012 reclamações de vendas agressivas de bens. Este número não se refere apenas à venda de aparelhos médicos e consultas — como neste caso –, mas a todas as práticas comerciais desleais. “A larga maioria começa por um ‘inocente’ telefonema que oferece um prémio, ou convoca para um falso rastreio médico ou de bem estar. Este é o primeiro passo para o consumidor, também maioritariamente sénior ou vulnerável, que acaba por comprar algo que não deseja, não precisa e nem sequer pode pagar”, explicou fonte da Deco ao Observador.
Só com este caso, foram identificadas 30 vítimas mas a PJ admite a possibilidade de haver mais: “Era uma atividade de oito horas por dia, cinco dias por semana. Há muitas vítimas. Certamente vamos encontrar”. A PJ coloca ainda a hipótese de haver vítimas que não querem prestar declarações “porque sabem que um dia vão ter que ir a julgamento”. Ou, ainda, que nem sequer estão em “condições de saúde para se movimentar”.
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