Presidente Samora Machel, em entrevista ao jornalista francês
René Lefort do Jornal "Le Monde"
P.: Senhor Presidente, quais são os protagonistas do processo revolucionário que a FRELIMO quer promover em Moçambique?
R.: A força do processo revolucionário é constituída, como nós sempre sublinhámos, pela aliança operário-camponesa. É uma larga frente de todos os trabalhadores que quer directamente, quer indirectamente (como na ciência ou nos serviços do aparelho de Estado) produzem bens materiais e nada possuem. Numa palavra, essa frente engloba todos aqueles que pela sua posição no aparelho de produção vivem a exploração e aspiram a transformação.
De facto, não existe categoricamente a burguesia "nacional". Nós temos uma burguesia "interior" que compreende, neste momento, a burguesia colonial. Ora, o poder tecnológico e a integração do sistema imperialista é de tal ordem que essa burguesia interior não se poderia desenvolver sem cair na dependência daquele sistema, o que faria com que ela perdesse todo o carácter nacional.
A burguesia colonial acumulou uma grande fortuna pela exploração brutal e pelo sistema repressivo. Ela baseava a sua existência na guerra colonial, na PIDE e nos massacres. Por consequência, ela só podia sobreviver à custa da guerra e do colonialismo que ao cair não arrastou na sua queda aquela burguesia desacreditada pela sua atitude no passado. Essa burguesia colonial começou a abandonar, na sua maior parte, o país tentando talvez deixar os seus bens ao cuidado de gerentes.
A pequena e a média burguesia moçambicanas, trinta mil pessoas no máximo, é de criação bastante recente. Ela só apareceu quando Caetano, apercebendo-se que a guerra colonial estava perdida, tentou demagogicamente juntar a burguesia colonial africanos a quem ele distribuía algumas migalhas, algumas possibilidades de adquirirem pequenas casas. Ou melhor, essas pessoas eram chamadas a tornarem-se nada mais que "evoluídos", porque eles não podiam ser outra coisa que intermediários. Se eles se tivessem constituído em burguesia nacional ter-se-iam transformando nos adversários, nos inimigos, nos concorrentes da burguesia colonial fascista que governava.
Nessa altura existem em Moçambique somente duas forças: o colonialismo e a FRELIMO. Tentando, portanto criar essa força intermediária, essa terceira força. Caetano queria formar um adversário à FRELIMO capaz de lhe fazer frente quando ao abandonar Moçambique lhe entregasse o aparelho do Estado.
Na sua essência a burguesia Moçambicana não tem qualquer poder económico. Neste domínio ela não representa nada. Não temos mesmo a menor possibilidade de possuir a mais pequena empresa agrícola ou industrial. De facto, ela só é burguesia na medida em que tem uma vocação de se substituir ao patrão, pela sua mentalidade escrava ao estrangeiro, escrava ao mais forte que era o colonizador. Ela admira a cultura do colonizador ignorando que nós temos a nossa própria cultura. Trata-se portanto de uma burguesia sem personalidade e nestas condições eu pergunto se tem possibilidades de resistir.
P.: A luta contra a burguesia é portanto, uma luta sobretudo ideológica?
R.: Sim.
A NOVA CIDADE
P.: A FRELIMO estabelece sempre diferenças entre as "Zonas Libertadas" e as
"zonas sobre a dominação colonial", entre cidade e campo. Em que bases?
R.: Zonas Libertadas de quê? Zonas Libertadas da exploração colonial, capitalista, uma vez que as forças portuguesas tinham sido expulsas. Zonas também libertadas da superstição e da alienação às forças sobrenaturais. Nós ganhamos aí a convicção de que os homens são os produtores dos bens materiais, os transformadores das mentalidades e portanto os criadores do mundo. Nós ganhámos aí a certeza que a qualidade primeira da revolução é a transformação profunda da sociedade, das mentalidades, o estabelecimento de relações de amor entre os homens por dois meios essenciais: a predominância dos valores colectivos e a libertação da iniciativa criadora. São essas conquistas revolucionárias que nós devemos transportar para as cidades.
A dominação colonial era mais forte nas cidades. As cidades são zonas de discriminação social, através do racismo e do desprezo pelos trabalhadores, zonas de conflito social, zonas onde cada um é definido pela sua profissão ou pela sua origem familiar e não pelo valor do trabalho que realiza, zonas de concorrência e onde existe a tendência para os valores e objectos estrangeiros. Então onde está a nossa cultura, onde está a experiência de resistência, da luta, da vitória, o espírito do estímulo da luta de classes? Nós devemos, portanto, destruir nas cidades os males que subjugam o homem mobilizando os largos excedentes de mão-de-obra que aí existem para outro tipo de trabalho. Onde? Nas aldeias comunais, esses centros rurais que nós queremos criar. E porque lhes damos assim tanta importância? Porque nós estamos persuadidos que é preciso urbanizar o campo e desenvolver lá a industria ligeira e pesada para que nasça o espírito proletário.
NOVO TIPO DE DESENVOLVIMENTO
P.: Senhor Presidente, está a abordar o tipo de desenvolvimento económico no qual Moçambique deseja engajar-se?
R.: Nós escolhemos a agricultura como base porque ela exige pouco ou quase nenhum investimento, porque nós possuímos uma experiência concreta neste domínio adquirida nas "Zonas Libertadas" e porque nós poderemos assim chegar a resultados que resolverão os problemas imediatos das massas: a alimentação e o vestuário. Mas nós consideramos a indústria como o elemento motor. A elevação da produtividade agrícola depende da industrialização. A indústria pesada, ao utilizar os imensos recursos naturais do nosso país, edifica as bases da nossa prosperidade e garante a nossa independência nacional.
P.: Deseja romper, portanto, com os circuitos económicos ocidentais?
R.: É todo um processo. Mas a nossa tarefa essencial é não sermos dependentes. Nós queremos romper com a dependência que advém da ajuda. E gostaríamos de estabelecer, quer com os países socialistas quer com os ocidentais, uma cooperação.
P.: Que via é que escolheu para conseguir isso?
R.: Imagine que perguntava a um camponês, a um combatente de base contra quem é que ele lutou? O colonialismo ou o capitalismo? Em dez anos de luta armada eles não diferenciaram as duas coisas. Ao rejeitar o colonialismo o nosso povo rejeitou o capitalismo. Nós definimos a "Democracia Popular" como a etapa actual do processo de edificação da aliança operário-camponesa que exige uma sociedade onde os meios essenciais de produção sejam colectivizados e que as classes trabalhadoras dominem o Estado, a economia, a ciência, a cultura.
P.: E esta etapa exige da FRELIMO um pulso de ferro?
R.: Sim, esse pulso de ferro é indispensável. A luta de classes é permanente. Não há classe alguma que se suicide em tanto que classe: é preciso combatê-la e destruí-la. Este combate exige da FRELIMO uma luta constante, uma firme purificação para restabelecer a ruptura. Há um divórcio, incompatibilidade e não-coexistência entre classe exploradora e os trabalhadores. Esta luta de classes exige a criação do Homem Novo e o Homem Novo nasce do combate. Luta de ideias, luta
constante para eliminar o velho e para permitir que o novo possa nascer. E com a libertação constante da iniciativa criadora nós edificaremos esse Homem Novo que liquidará a contradição entre o cérebro e a mão. Não pode haver separação entre os dois. A mão deve estar pronta a materializar as decisões que venham da cabeça.
P.: Qual poderá ser hoje, em dia, o papel, dos portugueses em Moçambique?
R.: Os portugueses em Moçambique não são moçambicanos, os moçambicanos em Portugal não são portugueses. Os portugueses em Moçambique são estrangeiros. Ora, o papel dos estrangeiros em Moçambique pode ser importante mas deve ser secundário, pois são os moçambicanos que devem desempenhar um papel decisivo. A amizade entre os nossos dois povos exige, portanto a destruição do colonialismo. Mas ela exige mais do que isso: A destruição das sequelas do colonialismo. Os portugueses em Moçambique devem, portanto, aceitar que terminem os seus privilégios de colonos e acabar de pensar que eles vivem ainda no sistema do passado. Quanto aos que em virtude do seu passado pensam ser impossível viver hoje em Moçambique, sem os seus privilégios, a sua presença é indesejável. Esta é a razão porque nós assistimos uma debandada maciça dos portugueses de Moçambique.
REVOLUÇÃO E SITUAÇÃO NA ÁFRICA AUSTRAL
P.: O Senhor Presidente declarou que "o futuro da revolução em África se jogava em Angola". Que conclusões extrai da vitória do MPLA?
R.: Em primeiro lugar, esta vitória consolida as forças progressistas em África, e demonstra que o imperialismo não pode mais intervir como ele pretende. Nós já não estamos nos anos 60, altura que o imperialismo podia intervir no Congo--Leopoldeville e desmembrar o país. Em segundo lugar, esta vitória consagrou o direito dos povos a escolher livremente o sistema político, económico e social que lhes convém. Esta escolha não diz respeito às potências imperialistas.
Terceiro: esta batalha revelou a dimensão agressiva e expansionista da África do Sul, e reduziu a cinzas o mito da sua superioridade militar.
A África do Sul, criou, ela própria as condições para o desenvolvimento da luta na Namíbia, onde a luta estagnava. Fez acender a fogueira em Angola. Na sua retirada para a Namíbia ela levou a fogueira com ela e se persistir na agressão de um outro Povo, será a mesma coisa: Será atacada por todos os lados.
A importância destas consequências mostra bem que se tratava duma batalha decisiva. Não porque a luta em Angola seja o fundamento, a base da Revolução em África, mas porque ela é a luta de todos os países progressistas de África.
P.: Porque razão pensa que os nacionalistas rodesianos devem-se engajar numa "guerra popular prolongada"?
R.: Uma grande confusão reina ainda hoje quanto à definição real do inimigo. Raciocina-se ainda em termos de brancos que dominam os negros. Só uma guerra popular vai permitir definir o inimigo de outro modo que não em termos de cor ou de raça. Todos os rodesianos, sejam negros ou brancos, descobrirão então que este combate é uma luta de classe que opõe os exploradores aos explorados os opressores aos oprimidos, que esta guerra de libertação deve não só libertar a terra, libertar os homens, mas também libertar as mentalidades. O problema essencial hoje na Rodésia é o de da descolonização mental, do fim do complexo de superioridade dos brancos e do fim do complexo de inferioridade nos negros. Por outro lado, a guerra popular unindo as massas e os combatentes permite que se elabore um pensamento comum. Deste pensamento comum nasce uma definição do alvo e dos objectivos e uma equipa dirigente. Enfim, as zonas libertadas que a guerra popular irá criar asseguram a edificação de novas bases sobre as quais o Estado futuro será erguido assim como o nascimento de um novo tipo de relações entre os homens. E, felizmente, esta guerra, na medida em que se tornar popular será longa.
P.: Que sentido dá a vossa política de Não--Alinhamento?
R.: Nós concebemos o não-alinhamento como a constituição de uma larga frente anti-imperialista por todos os estados que não são membros dos blocos militares. Uma frente de médios e pequenos estados que se unem para impôr a igualdade nas relações internacionais e o direito de utilizar em benefício das respectivas massas trabalhadoras os recursos dos seus países. Nós prentendemos o não-alinhamento activo.
P.: Afirmou, Senhor Presidente, que a FRELIMO cresceu de crise em crise. Outras crises serão portanto inevitáveis?
R.: A crise é permanente. Só ela nos permite avançar e distinguir o que é correcto daquilo que não o é.
A luta é entre os que pretendem servir o povo e aqueles que pretendem servir os seus interesses pessoais. A luta de classe é inevitável e permanente. Só ela permite fazer expandir as mentalidades, liquidar os velhos esquemas, o tradicionalismo assim como a anarquia. - (AIM)
(in "Notícias", Maputo, 1976/04/29)
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