Elisio Macamo
Estou a pensar em várias coisas, uma das quais é bloquear a primeira pessoa que reclamar que o texto que se segue é longo...
Descrições e receitas
Vivem-se momentos interessantes em Moçambique. Muita discussão, muita tensão, muita acção, muita celeúma. São razões mais do que suficientes para me pôr a reflectir sobre algumas coisas. Estou a pensar, em particular, numa distinção feita ainda no Séc...ulo XVIII pelo grande filósofo escocês, David Hume. No seu “Tratado sobre a condição humana” Hume legou à posteridade a famosa “guilhotina de Hume”, um princípio extraído da sua perspectiva empiricista segundo o qual não é possível derivar um “deve ser assim” (Inglês: ought) dum “é” (Inglês: is). Na filosofia moral este princípio mereceu discussões que continuam, sendo consenso, ainda que com certa dissidência, que, de facto, não há descrição do estado das coisas a partir da qual seria possível justificar a moralidade das consequências práticas que devem ser dela extraídas. O que nos impediu, durante muito tempo, de vermos esta impossibilidade (ou dificuldade) foi o facto de sermos herdeiros duma tradição intelectual teleológica, isto é uma tradição arrogante que nos compromete com fins pré-estabelecidos, uma tradição que olha para a História a partir do fim, de cima para baixo.
Esta reflexão ocorre-me por várias razões, uma das quais é a crítica que muitas vezes me é feita (por vezes até por amigos ou familiares bem intencionados) de que como intelectual (ou académico) eu devia colocar o meu saber ao serviço duma causa justa. Muitas vezes a crítica começa assim mesmo: “um intelectual como tu devia...”, algo que denota uma posição presciente de conhecimento profundo de causa a partir da qual é possível não só julgar a moralidade do que alguém diz como também tirar as devidas consequências do que é dito. Quando sou confrontado com esse tipo de posições tento retorquir com uma distinção entre “neutralidade” e “objectividade”. Só que de cada vez que faço isso tenho plena consciência de que não consigo convencer muita gente. São duas (talvez três...) as razões que explicam o meu falhanço, todas elas profundamente implicadas com a qualidade do debate na esfera pública.
A primeira tem a ver com uma hostilidade contra a ideia de objectividade fomentada sobretudo pela leitura marxista dos fenómenos sociais que dominou a reflexão intelectual em Moçambique durante uma boa parte do período pós-colonial. Essa leitura andou obcecada com a ideia do Fim da História e, consequentemente, partiu do princípio segundo o qual haveria uma posição intelectual moralmente correcta – a posição, portanto, que fosse mais consistente com o tipo de acção que era preciso empreender para se chegar ao Fim da História – que um intelectual, por opção pessoal, aceitaria ou rejeitaria. Daí a ideia de “intelectual reaccionário” e daí também a intolerância que foi característica da actividade intelectual em Moçambique durante muito tempo. Infelizmente, esta atitude ainda não desapareceu, ou melhor, deixou sequelas. Há muito boa gente por aí que acredita sincera e honestamente na ideia de que quem defende uma posição moralmente diferente da sua o faz porque ou é intelectualmente desonesto, ou então ainda não viu a luz (no discurso mais popular reduz-se isso ao famoso “lambe-botismo”). A ideia de que em questões morais não há ciência (nem academia) que nos possa orientar com segurança não cabe na mente de muita gente.
A segunda razão provém da primeira, ainda que de forma difusa. Durante muito tempo articulou-se o discurso intelectual com a prossecução de objectivos políticos, todos eles – em razão da perspectiva marxista subjacente – tentando ganhar legitimidade com base na ideia de estarem ao serviço do povo, sobretudo do povo injustiçado. Esta articulação criou um ambiente de debate em que a plausibilidade do que alguém diz se mede mais pela forma como exalta o sofrimento do povo e a maldade dos outros (do “poder”) do que pela qualidade lógica da sua argumentação, do que pelo cuidado na avaliação de fontes de informação, do que pela coerência entre factos e a realidade. E muitas vezes, quem fala assim fá-lo na plena convicção de que fala em nome do povo e que as suas opções pessoais se confundem com a vontade do povo (e, claro, povo esclarecido, pois povo que não partilha essas ideias é povo refém da falsa consciência). Quanto mais emocional, agressiva e insultuosa for a linguagem adoptada (isto é, quanto maior for a caricatura dos adversários – adversários esses que são invariavelmente adversários políticos, mesmo que sejam outros académicos), mais razão tem o conteúdo, mais sentido faz ele para quem, naturalmente, abdicou do pensamento crítico por medo de estar do lado do diabo ou simplesmente pelo conforto de estar integrado na “maioria”. O ridículo desta situação é que muitas vezes pessoas com perspectivas políticas completamente diferentes – e até antagónicas – se reencontram na “crítica” confirmando aquilo que a história vezes sem conta mostrou, nomeadamente que toda a revolução come os seus próprios filhos. E tem que comer. Pessoas que nunca se dão à maçada de verificar se de facto estão em sintonia de onda (e não apenas a falar mal do inimigo comum) invariavelmente fazem-se mal umas às outras assim que o mal comum tiver sido eliminado.
Falei de duas razões, mas há uma terceira que é própria do nosso País. Enquanto não houver, em Moçambique, um trabalho sério de reconciliação com o nosso passado difícilmente encontraremos a linguagem certa para falarmos de forma menos emocional sobre as coisas da nossa vida. Enquanto quem encontrou na ideologia política (no Marxismo e no anti-comunismo) justificação para fazer mal aos outros – porque era para o seu próprio bem – não tiver a coragem de pedir desculpas à História do País pelas atrocidades cometidas em nome duma posição moral superior difícilmente seremos capazes de ver no debate de ideias a troca de perspectivas sobre o que é (e não o que devia ser) e difícilmente seremos capazes de ver que o que devia ser é histórico, portanto, algo que se constitui no nosso próprio devir, e nunca algo pré-determinado e facilmente recuperável através da prática duma ciência “engajada” ou dum compromisso com o “povo”.
Escrevo estas linhas triste por ver como há cada vez menos debate de ideias, menos interesse pelos méritos de questões e, sob capa de engajamento, nos diabolizamos uns aos outros, encontramos nessa postura conforto e, pior ainda, pelo fervor com que defendemos os nossos compromissos ideológicos, acabamos simplificando os desafios graves que o País enfrenta reduzindo a sua não-resolução a teorias de conspiração e contribuíndo dessa maneira para aumentar expectativas que nenhum político e nenhum governo (por mais íntegro e comprometido com a causa do povo) vai ser capaz de satisfazer. No passado essa postura crítica e intelectual convocou o autoritarismo e a intolerância, tal e qual os vivemos com Samora Machel. A descrição do que é não proporciona argumentos para fundamentar a moralidade da receita. São coisas distintas que deixam o intelectual tão perplexo quanto o não-intelectual.See more
Descrições e receitas
Vivem-se momentos interessantes em Moçambique. Muita discussão, muita tensão, muita acção, muita celeúma. São razões mais do que suficientes para me pôr a reflectir sobre algumas coisas. Estou a pensar, em particular, numa distinção feita ainda no Séc...ulo XVIII pelo grande filósofo escocês, David Hume. No seu “Tratado sobre a condição humana” Hume legou à posteridade a famosa “guilhotina de Hume”, um princípio extraído da sua perspectiva empiricista segundo o qual não é possível derivar um “deve ser assim” (Inglês: ought) dum “é” (Inglês: is). Na filosofia moral este princípio mereceu discussões que continuam, sendo consenso, ainda que com certa dissidência, que, de facto, não há descrição do estado das coisas a partir da qual seria possível justificar a moralidade das consequências práticas que devem ser dela extraídas. O que nos impediu, durante muito tempo, de vermos esta impossibilidade (ou dificuldade) foi o facto de sermos herdeiros duma tradição intelectual teleológica, isto é uma tradição arrogante que nos compromete com fins pré-estabelecidos, uma tradição que olha para a História a partir do fim, de cima para baixo.
Esta reflexão ocorre-me por várias razões, uma das quais é a crítica que muitas vezes me é feita (por vezes até por amigos ou familiares bem intencionados) de que como intelectual (ou académico) eu devia colocar o meu saber ao serviço duma causa justa. Muitas vezes a crítica começa assim mesmo: “um intelectual como tu devia...”, algo que denota uma posição presciente de conhecimento profundo de causa a partir da qual é possível não só julgar a moralidade do que alguém diz como também tirar as devidas consequências do que é dito. Quando sou confrontado com esse tipo de posições tento retorquir com uma distinção entre “neutralidade” e “objectividade”. Só que de cada vez que faço isso tenho plena consciência de que não consigo convencer muita gente. São duas (talvez três...) as razões que explicam o meu falhanço, todas elas profundamente implicadas com a qualidade do debate na esfera pública.
A primeira tem a ver com uma hostilidade contra a ideia de objectividade fomentada sobretudo pela leitura marxista dos fenómenos sociais que dominou a reflexão intelectual em Moçambique durante uma boa parte do período pós-colonial. Essa leitura andou obcecada com a ideia do Fim da História e, consequentemente, partiu do princípio segundo o qual haveria uma posição intelectual moralmente correcta – a posição, portanto, que fosse mais consistente com o tipo de acção que era preciso empreender para se chegar ao Fim da História – que um intelectual, por opção pessoal, aceitaria ou rejeitaria. Daí a ideia de “intelectual reaccionário” e daí também a intolerância que foi característica da actividade intelectual em Moçambique durante muito tempo. Infelizmente, esta atitude ainda não desapareceu, ou melhor, deixou sequelas. Há muito boa gente por aí que acredita sincera e honestamente na ideia de que quem defende uma posição moralmente diferente da sua o faz porque ou é intelectualmente desonesto, ou então ainda não viu a luz (no discurso mais popular reduz-se isso ao famoso “lambe-botismo”). A ideia de que em questões morais não há ciência (nem academia) que nos possa orientar com segurança não cabe na mente de muita gente.
A segunda razão provém da primeira, ainda que de forma difusa. Durante muito tempo articulou-se o discurso intelectual com a prossecução de objectivos políticos, todos eles – em razão da perspectiva marxista subjacente – tentando ganhar legitimidade com base na ideia de estarem ao serviço do povo, sobretudo do povo injustiçado. Esta articulação criou um ambiente de debate em que a plausibilidade do que alguém diz se mede mais pela forma como exalta o sofrimento do povo e a maldade dos outros (do “poder”) do que pela qualidade lógica da sua argumentação, do que pelo cuidado na avaliação de fontes de informação, do que pela coerência entre factos e a realidade. E muitas vezes, quem fala assim fá-lo na plena convicção de que fala em nome do povo e que as suas opções pessoais se confundem com a vontade do povo (e, claro, povo esclarecido, pois povo que não partilha essas ideias é povo refém da falsa consciência). Quanto mais emocional, agressiva e insultuosa for a linguagem adoptada (isto é, quanto maior for a caricatura dos adversários – adversários esses que são invariavelmente adversários políticos, mesmo que sejam outros académicos), mais razão tem o conteúdo, mais sentido faz ele para quem, naturalmente, abdicou do pensamento crítico por medo de estar do lado do diabo ou simplesmente pelo conforto de estar integrado na “maioria”. O ridículo desta situação é que muitas vezes pessoas com perspectivas políticas completamente diferentes – e até antagónicas – se reencontram na “crítica” confirmando aquilo que a história vezes sem conta mostrou, nomeadamente que toda a revolução come os seus próprios filhos. E tem que comer. Pessoas que nunca se dão à maçada de verificar se de facto estão em sintonia de onda (e não apenas a falar mal do inimigo comum) invariavelmente fazem-se mal umas às outras assim que o mal comum tiver sido eliminado.
Falei de duas razões, mas há uma terceira que é própria do nosso País. Enquanto não houver, em Moçambique, um trabalho sério de reconciliação com o nosso passado difícilmente encontraremos a linguagem certa para falarmos de forma menos emocional sobre as coisas da nossa vida. Enquanto quem encontrou na ideologia política (no Marxismo e no anti-comunismo) justificação para fazer mal aos outros – porque era para o seu próprio bem – não tiver a coragem de pedir desculpas à História do País pelas atrocidades cometidas em nome duma posição moral superior difícilmente seremos capazes de ver no debate de ideias a troca de perspectivas sobre o que é (e não o que devia ser) e difícilmente seremos capazes de ver que o que devia ser é histórico, portanto, algo que se constitui no nosso próprio devir, e nunca algo pré-determinado e facilmente recuperável através da prática duma ciência “engajada” ou dum compromisso com o “povo”.
Escrevo estas linhas triste por ver como há cada vez menos debate de ideias, menos interesse pelos méritos de questões e, sob capa de engajamento, nos diabolizamos uns aos outros, encontramos nessa postura conforto e, pior ainda, pelo fervor com que defendemos os nossos compromissos ideológicos, acabamos simplificando os desafios graves que o País enfrenta reduzindo a sua não-resolução a teorias de conspiração e contribuíndo dessa maneira para aumentar expectativas que nenhum político e nenhum governo (por mais íntegro e comprometido com a causa do povo) vai ser capaz de satisfazer. No passado essa postura crítica e intelectual convocou o autoritarismo e a intolerância, tal e qual os vivemos com Samora Machel. A descrição do que é não proporciona argumentos para fundamentar a moralidade da receita. São coisas distintas que deixam o intelectual tão perplexo quanto o não-intelectual.See more
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