Classificação verbal
À procura de coisas escritas há muito tempo para algo que estou a preparar neste momento, fui dar com um texto que publiquei no dia 2 de fevereiro de 2009 no meu blogue "Ideias Críticas". Parece-me actual, mesmo a referência à extensão do próprio texto... Reproduzo-o aqui como forma de marcar presença na discussão do que se passa no País. O texto faz parte duma rubrica que tinha lá com o nome de "fenómeno da bicha" e que se referia à tendência de nunca nos vermos como parte do problema. Nada mudou!
"Classificação verbal
Os textos estão cada vez mais longos. Peço desculpas. Não tenho o dom da síntese.
O panorama político do país não é dos melhores. Os resultados das últimas eleições municipais confirmaram uma tendência preocupante, nomeadamente a crescente supremacia de um único partido. Já logo a seguir às últimas eleições legislativas e presidenciais publiquei, na minha qualidade de sociólogo oficioso, uma série de artigos no oficioso Notícias com alguns “recados” ao novo governo que, de entre vários assuntos, chamavam a atenção para a necessidade de reforçar a oposição. Esse recado não era motivado por amores particulares pela oposição que temos, nem por achar que muito poder para a Frelimo fosse uma coisa necessariamente má. Um escriba de serviço não escreve esse tipo de coisas. A razão desse recado era outra. Tinha como pano de fundo uma preocupação, digamos, procedural com a democracia que me parece sempre ameaçada sempre que um único partido detém uma espécie de poder absoluto. A minha ideia na altura, e que continua a mesma, era que a fraqueza da oposição fosse compensada por uma maior atenção pela transparência, pela legalidade e por uma separação ainda mais clara entre partido no governo e aparelho de estado.
O discurso inicial do Presidente Guebuza continha elementos pertinentes a este respeito. As suas ideias sobre o “espírito do deixa-andar” e burocratismo apontavam um pouco neste sentido, mas, curiosamente, os defeitos estruturais do nosso sistema político – que conferem muitas prerrogativas ao partido que controla a Presidência da República e Parlamento (um dos efeitos mais nefastos do Acordo de Roma) – encarregaram-se de perverter as intenções deste discurso. A legítima preocupação de Guebuza de reforçar o seu próprio partido teve um efeito de soma zero ao implicar uma derrocada mais rápida do principal partido da oposição. Concorreu para este desfecho o excesso de zelo por parte de importantes sectores do partido Frelimo que interpretaram o reforço do seu partido de várias maneiras problemáticas do ponto de vista democrático, nomeadamente diminuir a importância da oposição e usar a influência no aparelho de Estado para, em jeito de chantagem, ganhar mais membros.
Pessoalmente, não acho trágico que a Renamo esteja a ter a sorte que tem agora porque por tudo quanto ela foi capaz de produzir como discurso e prática, nunca me pareceu uma alternativa viável. Para mim pelo menos, e como moçambicano, foi sempre razão de muito embaraço que um grupo político daquela natureza e com aquele líder constituísse a principal alternativa de governação no país. Acho, contudo, trágico que a descida para a insignificância merecida da Renamo deixe um vazio no nosso panorama político, vazio esse que coloca o país a mercê de tudo quanto de nefasto é possível numa situação de poder absoluto. Este perigo é real e os verdadeiros patriotas no seio do partido no governo hão-de ter sensibilidade para esta situação. O que podemos esperar deles não é que sacrifiquem estas vantagens que lhes caíram às mãos a favor de um reforço fictício da oposição, mas que prestem mais atenção ainda ao que faz da democracia liberal o sistema político menos imperfeito até aqui inventado pelos Homens. Isso passa pelo respeito pela legalidade, por um interesse muito grande na preservação e alargamento das liberdades e pela observância da transparência. O nosso país não é o primeiro com uma situação desta natureza. A Escandinâvia, por exemplo, foi dominada durante muitos anos por um único partido. Essa dominação, porém, nunca descambou em autoritarismo ou totalitarismo pelo simples facto de que foi preservada a legalidade, a liberdade e a transparência. Isto permitiu que os assomos de nepotismo, incúria e arrogância do poder fossem devidamente controlados.
O que se requer, portanto, é a prudência e o sentido de Estado por parte daqueles que hoje têm os destinos do país nas suas mãos. Mas isso só não é suficiente. Igualmente importante, senão mesmo mais importante ainda, é uma esfera pública que saiba apreciar estes perigos devidamente e aja no sentido de os conter. Neste ponto, contudo, vejo muitos problemas e é esta, no fundo, a razão desta reflexão. A minha reflexão é política no sentido em que tento partilhar com os leitores a minha postura política em relação ao país, mas é também académica no sentido em que parto de um problema que quero definir como um desafio essencialmente académico. A minha postura política é, de um modo geral, liberal no sentido em que justo para mim é o sistema político que garante, preserva e amplia as liberdades individuais através do direito, observa e protege proceduralmente o direito à diferença, e respeita uma noção de verdade que não é transcendental, mas se produz num debate livre de constrangimentos. O sistema político que temos instalado no país não satisfaz uma boa parte destes critérios. Contudo, e aí está o desafio académico, tem tudo quanto necessita para os satisfazer desde o momento que a esfera pública aceite o desafio.
Ao contrário de vários e ilustres colegas não vejo a função das ciências sociais como sendo – numa interpretação cafreal de Marx – de pôr a descoberto as forças ocultas que são responsáveis pelo sofrimento do povo. Embora reconhecendo a existência de injustiças e de desigualidades gritantes no acesso à, e distribuição da riqueza nacional defendo uma epistemologia herdeira de correntes liberais românticas – por exemplo: Richard Rorty – mas também profundamente enraizada no proceduralismo – por exemplo: Axel Honneth na Alemanha e Ronald Dworkin nos EUA – e na supremacia dos meios sobre os fins – por exemplo: Amartya Sen na sua definição de desenvolvimento como liberdade, Severino Ngoenha na sua preocupação com o paradigma libertário, Eduardo Mondlane na sua visão histórica do país, Nelson Mandela no seu espírito de inclusão – epistemologia essa que não apregoa a mudança radical, mas sim os pequenos passos profundamente alicerçados na empatia, na solidariedade e na crença no direito que todos nós temos de sermos tratados como iguais. A minha postura política leva-me a ver as ciências sociais não como arma de arremesso contra os maus, mas sim como instrumento de emancipação, condição essencial de desenvolvimento do país.
Premissas classificatórias
Como se manifesta este desafio académico? Ele manifesta-se através de uma forma muito específica de argumentação e que marca forte presença no actual debate político. Chamo a essa forma, socorrendo-me da lógica, de argumento baseado na classificação verbal. O que quero dizer com isto é que muita da nossa reflexão sobre os desafios políticos enfrentados pelo país é de natureza verbal sem revelar, contudo, muita preocupação em clarificar o sentido em que usamos os termos. Deixem-me ilustrar isto com um exemplo simples e depois complicar as coisas um bocadinho. Por exemplo, se eu dissesse que todos os países situados no continente africano são africanos poderia, validamente, concluir também que Moçambique – por se situar também no continente africano – é um país africano. Essa classificação verbal da noção “país africano” é-me facilitada pela convenção geográfica. O que acontece, porém, é que esta facilidade nem sempre existe. Muitos argumentos baseados na classificação verbal dependem do uso corrente de certas palavras no quotidiano. Por exemplo, em Maputo dizemos que toda e qualquer pessoa que falta à sua palavra, não se compromete e tem sempre saída para situações difíceis é “mafiosa”. Partindo dessa classificação verbal poderíamos concluir, olhando para um indivíduo – vamos lá, “Josué Langa” – que faltasse à palavra, não se comprometesse e sempre tivesse saída para situações difíceis, que o Josué Langa é mafioso.
Estamos, portanto, a dizer que uma certa entidade individual contém uma determinada propriedade e que a posse dessa propriedade implica a presença de uma outra propriedade. Se provarmos que uma pessoa tem determinadas características que definimos como sendo “mafiosas”, então essa pessoa é mesmo mafiosa. Isto é normal no quotidiano, na verdade, tão normal que estamos sempre a argumentar dessa maneira. Quando dizemos que o governo é corrupto fazemo-lo em função de premissas classificatórias que supomos estarem presentes no governo; quando dizemos que o líder da oposição é autoritário fazemo-lo em função de premissas classificatórias que supomos estarem presentes na sua actuação; quando dizemos que o edil da Beira é competente fazemo-lo em função de premissas classificatórias que supomos estarem presentes na sua pessoa. Reparem, contudo, que estes argumentos baseados na classificação verbal têm um teor normativo muito elevado que pode limitar a discussão. Por exemplo, alguém pode dizer “criticar é inveja” e concluir a partir daí que não se devia criticar. Tem acontecido na nossa esfera pública, sobretudo, estranhamente, da parte de músicos que gostam de dizer isto dos seus críticos. Dores de cotovelo, dizem. Alguns académicos também dizem isto para a vergonha das universidades que lhes passaram o diploma. Outro exemplo: “Essa ideia compromete as metas definidas”, logo, “essa ideia está errada”. Este é o ambiente do que, no país, se chama de “seguidismo”, “bajulação”, “yes-man”, “lambe-botismo”, etc.
Há remédios críticos para isto. E são duas perguntinhas. A primeira pergunta é de saber que provas existem realmente de que uma determinada entidade contém determinada propriedade. Por exemplo, que provas existem realmente de que a minha crítica ao “Josué Langa” contém as premissas classificatórias que justificariam o uso da noção de “inveja”? A segunda pergunta seria de saber se a classificação verbal contida na premissa classificatória deriva de uma definição objectiva ou de uma definição que pode ser questionada. Por exemplo, eu poderia argumentar que mesmo se a minha crítica fosse um acto de inveja até um certo ponto, essa ponta de inveja em algumas circunstâncias não é necessariamente má se através dela for possível pôr a descoberto fraquezas na posição defendida por outra pessoa. Os mesmos critérios valem para o outro exemplo. Partindo do princípio de que haja razões suficientes para supor que a ideia do técnico fulano-de-tal de, por exemplo, aconselhar ao Ministro que peça um parecer jurídico antes da aplicação de uma medida possa comprometer as metas definidas, podemos, mesmo assim, encontrar mérito nisso, sobretudo se essa ideia do técnico fulano-de-tal colocar o respeito pela legalidade em primeiro plano.
Nós os bons
Espero que estejam a acompanhar o meu raciocínio, pois chegamos a um ponto central daquilo que quero reflectir neste texto, mas também um ponto importante de vários problemas que temos ao nível da nossa cultura institucional e política. Há muitos que por medo – volto a usar a feliz expressão de Amosse Macamo – de “serem conotados” deixam-se vitimizar ou calar a boca por argumentos baseados na classificação verbal. A minha crítica ao discurso anti-corrupção parte do meu desiderato de resistência a estas classificações verbais. Não é que esteja a favor da corrupção ou negue a sua existência; é que me incomoda o elemento normativo que conduz ao que o antropólogo português José Teixeira memorávelmente chamou de “denúncia”. A minha crítica aos “críticos” parte também do meu desiderato de resistência ao uso descuidado que eles fazem de classificações verbais. Um exemplo particularmente pertinente é o uso de expressões como “democracia”, “injustiça”, “competência”, “corrupção”, “integridade” e várias outras com um teor normativo muito elevado para classificar acções do governo ou a postura dos próprios críticos e, por via disso, colocar um manto de penumbra total sobre os assuntos. Ou seja, o uso destas classificações permite a criação de um ambiente dentro do qual o governo é automaticamente identificado com tudo quanto é contrário à justiça e democracia, enquanto que aqueles que se arrogam a prerrogativa de classificar se identificam automaticamente com tudo quanto é justo e democrático. Este tipo de gente é, por exemplo, muito hostil à pergunta crítica porque a pergunta crítica obriga-nos a diferenciar e quando diferenciamos podemos chegar à conclusão de que uns não são tão assim como se querem apresentar. Abro um parêntesis para mandar uma directa: é sintomático para mim que muitas das pessoas que sempre aplaudiram ruidosamente a actuação tempestuosa do Ministro da Saúde – actuação que eu sempre achei problemática pela pouca atenção prestada aos procedimentos institucionais e jurídicos – se definem como grandes democratas e amantes da legalidade; curiosamente, eles até criaram um ambiente dentro do qual a oposição a este tipo de actuação passou a ser vista como resistência dos corruptos à integridade e competência. Júlio Muthisse, aí estão alguns subsídios para a tua justa preocupação com a cidadania e responsabilidade.
Andam discussões pela blogosfera, incluindo no blogue dos blogues, sobre a necessidade de criação de um novo partido que se possa afirmar como alternativa à Frelimo. Não quero questionar a nobreza dos sentimentos que impelem os protagonistas desta intenção. Aliás, nunca escondi a minha admiração pelos académicos e intelectuais que, respondendo ao seu sentido de integridade moral e mesmo sob o risco de perderem privilégios vinculados ao silêncio por vezes cúmplice, se juntaram abertamente à Renamo e tentaram dar o seu contributo na civilização daquela força apolítica. A passagem do tempo está a revelar que é muito provável que se tenha tratado de um equívoco muito grande, mas isso não diminui a nobreza da sua atitude. O que eu quero questionar, porém, é a legitimidade da classificação verbal sobre a qual me parece assentar este desiderato de criação de um novo partido. É uma classificação difusa, mas que assenta na ideia de que o governo é mau (muito mau mesmo) e que quem diz que o governo é mau é, só por isso, bom ele próprio. O nosso governo não é democrático, nem competente, logo, nós (que dizemos isso) somos democratas e competentes. Nós (os críticos) queremos acabar com o sofrimento do povo, logo, o governo (nosso adversário) é pelo sofrimento do povo. Quem quiser ter uma ideia das credenciais democráticas de algumas destas pessoas só precisa de dar uma olhadela a algumas “contribuições” ao debate que tentei suscitar sobre a posição de Ivone Soares em relação à crise no interior da Renamo (ver aqui). Prestem sobretudo atenção à carga de ódio, ressentimentos, intolerância e petulância contida nos posicionamentos dessas pessoas.
É claro que não vai ser por eu questionar a legitimidade da classificação verbal sobre a qual esse desiderato assenta que o tal partido vai deixar de ser formado. Também não é essa a minha intenção. A minha intenção é de chamar a atenção daqueles que querem mesmo abordar o país criticamente para a necessidade de se debruçarem sobre a natureza destas classificações verbais questionando-as e questionando-se a si próprios. Em que sentido um governo é democrático e competente? Que provas temos de que o governo que temos não é democrático, nem competente? Quando é que essa ausência de democracia e competência se manifestam? Que formas assume? Será que nessas circunstâncias podemos contextualizar melhor o sentido de democracia e competência? Será que à luz das circunstâncias uma atitude tida como sendo não democrática ou uma actuação vista como incompetente são mesmo isso? Estas perguntas são importantes não tanto para defender o governo da acusação de ser anti-democrático e incompetente, quanto para introduzir medida na crítica e comprometer aquele que faz a crítica com os valores que ele implicitamente emula.
Avisos à navegação
Tenho ainda dois pontos para terminar. O primeiro está directamente ligado à discussão sobre a criação de um novo partido. A crise da Renamo revela, para além de pôr a descoberto o mito da sua luta pela democracia, um problema estrutural muito grande do nosso sistema político: o controlo jurídico de associações formais. No nosso país este controlo é praticamente inexistente. Este déficit, mais do que o autoritarismo do líder da oposição, é que é capaz de ser responsável por esta crise. Não seria esta uma belíssima oportunidade para que os amantes da democracia iniciassem um movimento de luta pelo controlo jurídico das associações formais, começando pela Renamo? Um controlo que verificasse e, constatando falta, penalizasse o incumprimento do que está disposto nos estatutos depositados no Ministério da Justiça?
O segundo ponto é um desabafo. A qualidade da nossa discussão política é de natureza muito paradoxal. Ela revela tendências de acabar com o político. A situação política ideal, interpretando a qualidade da nossa discussão política, consiste no afastamento do que é político da esfera pública para que reste apenas o que é técnico. Este foi, parece-me, o erro de Eneas Comiche em Maputo e, em parte, o que parece ter despoletado a crise da Renamo na Beira. A julgar pelo tipo de pessoas que costuma estar por detrás deste tipo de discurso (por exemplo, o jornal Savana, excluindo o autor da coluna “Tribuna do editor” que, entre os opinadores, me parece uma das poucas pessoas lúcidas e coerentes que escreve naquele semanário) é uma relíquia de um marxismo mal digerido transformado em arcaboiço teórico e que consiste em imaginar o fim da política como sendo a eliminação de todas as contradições (de classe) com o fim do estado (velha ideia de Saint Simon recuperada por Marx). O mundo ideal é o mundo dos técnicos que só resolvem os problemas do povo. Foram precisamente estas ideias que travaram o país nos anos imediatamente a seguir à independência. Em nome de um sentido democrático mal pensado estão a ser reavivadas.
Não digam que não vos avisei. Eu estou bem longe, conforme os “críticos” observaram, para sofrer directamente os efeitos dessa sua folia."
Há referências no texto que só podem ser verificadas na publicação original (http://www.ideiascriticas.blogspot.ch/2009/02/o-fenomeno-da-bicha-xx_02.html).
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