terça-feira, 2 de outubro de 2018

por que é que os ventos de Angola não soprarão em Moçambique?

Do pragmatismo atlântico ao cautelismo índico:
por que é que os ventos de Angola não soprarão em Moçambique?
Quando a primavera anti-corrupção brotou em Angola (uma incisiva reacção penal contra a grande corrupção almofadada numa inequívoca vontade política alicerçada na liderança do Presidente João Lourenço) em Moçambique houve quem esfregasse as mãos. Se Angola estava a promover a responsabilização penal de quem acumulou riqueza ilegalmente aquando do seu boom de petróleo, a liderança política e a justiça moçambicanas podiam seguir o exemplo e iniciar a responsabilização penal de quem orquestrou o endividamento ilegal de 2 mil milhões de USD (500 milhões desaparecidos sem rasto, de acordo com um relatório de auditoria forense da Kroll, realizada em 2017).
Nas redes sociais, a opinião pública local parece tentar exprimir um desejo (reprimido) de ver feita justiça. Opositores, figuras independentes e militantes da Frelimo partilham os factos tal como eles são narrados a partir de Angola. Poucos emitem opinião. Mas sente-se no ar essa pesada vontade de se ver feita justiça. Por outro lado, os apparatchiks do guebuzismo (Armando Guebuza era o Presidente quando a dívida ilegal foi contratada) se enclausuraram no silêncio. A campanha eleitoral para as autárquicas, em curso, tende em abafar o impacto das reformas angolanas no nosso imaginário colectivo mas nem tanto.
A questão central que se coloca é: os acontecimentos de Angola com este renovado quadro de repressão da grande corrupção onde o alvo são elementos influentes do MPLA podem inspirar um comportamento idêntico em Moçambique onde o alvo seriam elementos influentes na Frelimo?
Nos últimos dias, estive a ouvir figuras relevantes em Moçambique e de Angola para tentar responder a esta e outras perguntas. O primeiro alerta é o risco da comparação. A construção do Estado em Angola foi diferente da construção do Estado em Moçambique. A Frelimo e o MPLA lutaram contra o mesmo inimigo e parte das suas elites intelectuais formou-se na mesma Casa dos Estudantes do Império mas a luta moldou os dois movimentos de maneira distinta. Isso se repercute hoje no que a Frelimo e o MPLA são, distintamente. O generalato do MPLA bebeu de uma forte componente académica e o da Frelimo é oriundo de uma componente “basista”. A possibilidade de uma dinâmica interna de confronto entre correntes de dissenso dentro da MPLA é mais fértil que na Frelimo.
Mas a resposta directa à questão central é: não se pode esperar que os ventos de Angola tenham um impacto imediato em Moçambique que conduza à mudança no que tange ao ataque penal contra a corrupção promovida no topo da elite política. Primeiro porque existe a questão do orgulho. Filipe Nyusi e a justiça moçambicana não vão fazer só porque Angola está a fazer.
Há, entretanto, vários elementos distintivos entre os dois casos, os quais ajudam a perceber o comportamento específico de cada regime: o pragmatismo de João Lourenço e o conformismo (ou cautelismo) de Filipe Nyusi. A elite política angolana chegou ao poder quando o petróleo já estava na mesa. Mais descobertas e muita exploração foram feitas ao longo dos anos. A acumulação primária e o rent seeking em Angola correspondeu à partilha ilegal desse bolo na mesa. Em Angola havia uma vaca leiteira. Em Moçambique a acumulação primária e o rent seeking da dívida oculta correspondeu a partilha de um bolo que ainda nem sequer foi ao forno. Era como chupar em tetas sem leite, exangues. Isso coloca Moçambique numa situação crítica: apesar de a partilha já ter sido feita sobre receitas futuras, a avidez das elites acumularem no gás continua intacta. Há um compromisso entre as elites locais para se garantir um ambiente favorável que permita no futuro mais partilha do bolo, nomeadamente quando das tetas começar a verter leite.
Em Angola, por causa da descida vertiginosa do preço do petróleo nos últimos anos, percebeu-se que o nível de acumulação tinha sido demasiado vergonhoso. Os cofres angolanos estão vazios. O dinheiro, que pertence
à gerações e gerações de angolanos, foi distribuído e há evidências claras de quem acumulou ilicitamente. Isso levou a que uma certa corrente dentro do MPLA (com generais de uma linha honesta e outros que também “comeram”) engendrasse a actual reviravolta, com Lourenço à cabeça. A rutura (o dissenso) é um fenómeno intrínseco ao MPLA. Por isso, há quem em Angola não fique espantado. Nos anos 60, quando Viriato Cruz se zangou ele fez a rutura abalando para a China. Seguiu-se Mário Pinto de Andrade, que foi substituído por Agostinho Neto num processo nada “pacífico” e, em 1976, Luanda viveu outra rutura, violenta e com sangue, com os “nitistas” (Nito Alves). Em vários momentos da sua história, o MPLA evoluiu dentro de uma certa “luta de contrários”. A clivagem é uma marca indelével no seu ADN.
Diferentemente de Filipe Nyusi, João Lourenço é um militar com longa carreira política. Tem à sua volta uma entourage que também partilhou, como ele, da riqueza dos recursos naturais mas nem isso lhe inibe de actuar. Desde que assumiu o poder, age de forma consistente com o seu discurso. Demitiu 80 figuras do “zedismo” num único dia e, no último Congresso, disse taxativamente que “não confundiremos a necessidade de se promover uma classe empresarial forte com a que tem enriquecimento ilícito fácil à custa do erário público”. Quando chegou ao poder retirou Isabel dos Santos da Sonangal e Tchizé dos negócios com a TPA. Sua acção assenta numa narrativa reformista clara. E num desejo de governar sem a sombra omnipresente de José Eduardo dos Santos (JES). João Lourenço não tinha muito escolha. O Estado batera no fundo, com uma economia soçobrando, um sector financeiro de rastos, um banco central sem credibilidade externa. A dimensão da captura do Estado com enriquecimento ilícito, em boa parte pelo círculo familiar de JES mas também por uma franja alargada de generais, é catastrófica. O MPLA estava no limite como partido do poder e o Estado angolano, como projeto de desenvolvimento, assentava numa mentira. A rutura com o zedismo era necessária. Mas ainda é cedo para avaliar se ela assenta numa vaga de fundo, se corresponde a uma ação duradoira de reforma moral do Estado e a recuperação de uma ideia de desenvolvimento ou se se trata apenas de um oportunismo maquiavélico, um assomo eminentemente simbólico (enfatizando quem manda), um retoque cosmético para insuflar as massas de entusiamo e ganhar simpatias na arena internacional.
Filipe Nyusi, com pouca experiência na política, chegou ao poder com um discurso de tolerância zero contra a corrupção mas, quando as dívidas ocultas foram reveladas e os cofres vazios do Estado destapados, ele deu prioridade à pacificação do país. Nyusi terá preferido evitar criar um novo factor de instabilidade num momento em ele ainda não controlava o poder no partido. Seria, com o dossier da Renamo ainda não totalmente encerrado, como comprar uma guerra dentro da Frelimo. Mas mesmo depois de assumir a liderança da Frelimo, o seu discurso evitou tocar na responsabilização da dívida ilegal (o Ministro dos Negócios Estrangeiros, José Pacheco, acaba de cunhar a expressão “dívidas periféricas”; no sector financeiro diz-se da dívida fora do perímetro uma dívida ilegal), enfatizando, isso sim, a expectativa dos ganhos “astronómicos” que o gás trará para Moçambique. Os cálculos para Nyusi evitar o desencadeamento de uma vontade política férrea contra a grande corrupção ainda não são claros mas, certamente, não decorre de uma leitura criteriosa da opinião pública. De qualquer modo, a sua base de apoio, assente sobretudo no generalato do planalto mais ao norte, não lhe dá grande espaço de manobra. Por outro lado, para garantir um segundo mandato, Nyusi evita abrir fissuras internamente.
Em Moçambique, a situação é distinta da angolana. Filipe Nyusi é um presidente cooptado para fazer pontes entre as correntes internas, garantindo a coesão dentro da Frelimo fundamentalmente contra o seu inimigo percebido, a Renamo. Ele não foi colocado lá para fazer ruturas. Foi colocado para ser o elo da unidade. A Frelimo tem um registo histórico onde suas pedras basilares, mesmo com diferenças de pontos de vista, garantem transições tranquilas. Não há espaço para clivagens radicais como em Angola. Em momentos de crise, os camaradas da Frelimo estão unidos. Enquanto a geração da luta armada tiver uma palavra a dizer, esse registo se manterá. Não esperem que Nyusi faça um copy and paste da atual vaga reformista de ataque à grande corrupção em Angola. Na sua mesa há outras equações em jogo. O dossier da guerra com a Renamo ainda não está concluído e o Presidente continuará a investir nisso.
Moçambique também bateu fundo em termos económicos mas ainda não explorou o seu gás. É certo que parte das receitas projetadas já estão amarradas ao pagamento da dívida da Ematum mas se o Governo aprender dos erros de Angola e distribuir melhor os ganhos da exploração, os moçambicanos podem melhorar substancialmente as suas vidas (o problema é que ainda não existe um pensamento estruturado e uma clara e robusta engenharia institucional para garantir isso). Nyusi prefere inflaccionar seu discurso sobre os benefícios do gás para todos em vez de comprar guerras internas da Frelimo. Em Angola, João Lourenço e o MPLA estão a capitalizar na opinião pública com as ações mais recentes. Em Moçambique, não é provável que mude muita coisa. Uma mudança só acontecerá se os resultados da Frelimo no próximo ano, nas eleições legislativas, forem caóticos (apesar de a oposição, nomeadamente a Renamo, continuar amorfa, desfocada, sem discurso nem comunicação política). Isso levará a uma crise de proporções alarmantes que poderá originar clivagens internas que possibilitarão a abordagem da responsabilização. Aí sim! O instituto da prestação de contas começará a funcionar. O nosso dossier das dívidas ocultas não parece estar encerrado. Parece, isso sim, adiado!
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Paulo Manso MM, bem que aos domingos podias ir dar uma ajudinha ao TVM!!!
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Martynn Luther Paia Falta de vontade politica...talvez quem devia tocar na ferida pode estar atrelado no meu caso.
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Responder29 min
Sic Spirou ....só um reparo se me permite logo no início quando compara o começo dos governos de ambos PRs; quem chegou ao poder antes foi Nyusi, por isso na minha opinião ele já "devia " ter dado azo ao seu "desejo" de dar luz ao combate à corrupção. Jlo esteve cá pra fazer campanha e quem sabe, beber da nossa "futura e adiada" experiência de combate a corrupção !
Deve ter saído desiludido! Tanto que Moçambique nem faz parte dos países top nas relações comerciais que ele anunciou ! Isto é, Moçambique não tinha nada que imitar Angola ; devia ter sido o contrário !! Sempre estando atrás de Angola mesmo...tsc.
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Responder29 min
Eugenio Justo Vitorino Camarada Presidente, beba água a partir da fonte
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Responder4 min
Jr Chauque Presidente adora discursos... Para tapar o sol com AC.... E o país está MUITO BOM

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