segunda-feira, 23 de julho de 2018

“Antes é que era bom”. Um filósofo nascido em 1930 dá graças por viver em 2018

“Antes é que era bom”. Um filósofo nascido em 1930 dá graças por viver em 2018 /premium

21 Julho 2018261
Em "Antes é que era bom!", Michel Serres ataca, com ironia, as lamúrias, respingos e indignações dos “velhos ranzinzas” que envenenam o presente com a evocação de um passado idílico que nunca existiu.
Michel Serres é velho quanto basta e tem uma memória suficientemente boa para se lembrar de como foi realmente o passado. E quando o compara com os nossos dias, vê-se obrigado a contrariar o discurso apocalíptico sobre o presente, que é geralmente contraposto a uma exaltação nostálgica de um passado supostamente idílico.
O pai de Serres era dono de uma draga que operava no rio Garonne e, numa época em que todos os braços eram necessários para o sustento da família e não existiam regulamentos contra o trabalho infantil, o jovem Michel teve contacto íntimo com o trabalho braçal árduo: “Lembro-me do erguer às quatro horas da manhã: entre as cinco e as sete, antes da bucha, era preciso carregar de areia, de cascalho ou de pequenos seixos os dois camiões de dez toneladas e o grande, de vinte toneladas. A três ou quatro: um de cada lado do veículo, o outro na parte de trás. À pazada no caso da areia e do cascalho, com a forquilha de nove pontas no caso dos pequenos seixos”.
O filósofo francês Michel Serres (ETIENNE DE MALGLAIVE/AFP/Getty Images)
Esta experiência ajudou-o a elaborar uma lista de aspectos em que o progresso trouxe benefícios incontestáveis, que Serres usa para, de forma muito sumária (o livrito tem apenas uma centena de páginas e um generoso espaçamento entre linhas), desmontar as lamúrias do “velhos ranzinzas” e a sua nostalgia dos “bons velhos tempos”. Na sua argumentação, como contraponto ao “velho ranzinza”, Serres recorre à figura da Polegarzinha (Petite Poucette), representando os jovens que estão sempre conectados ao mundo virtual. A designação Polegarzinha, pedida emprestada a uma personagem de um conto de Hans Christian Andersen, alude ao uso dos polegares para teclar nos dispositivos móveis de telecomunicações e deu título, em 2012, a um livro de Serres sobre a geração “mutante” que vive numa era de mudanças profundas, que compara às do final do Império Romano ou do advento da Renascença.
C’était mieux avant! surgiu em França em 2017 e é agora publicado em Portugal pela Guerra e Paz, com tradução de Maria João Madeira.
“Antes é que era bom”, de Michel Serres (Guerra & Paz)

Trabalho

“O ruído [das máquinas] substituiu-se aos suores”. Serres tem razão: no mundo industrializado, as máquinas libertaram o homem de boa parte dos trabalhos fisicamente penosos, sujos, repetitivos, embrutecedores, nocivos para a saúde e arriscados
O extenuante trabalho de rebocar barcaças inspirou um dos mais famosos quadros de Ilya Repin, “Rebocadores do Volga”, c.1870-73
Mas as máquinas não se ficaram por aqui e estão preparadas para aliviar o homem também dos trabalhos “de secretária”. É que “as máquinas” não são apenas os “tractores e pás mecânicas [que] correm e rolam nos estaleiros”: são, cada vez mais, a inteligência artificial, que é capaz de conduzir veículos sem intervenção humana e é mais eficaz a analisar radiografias do que um radiologista. Enquanto as maiores empresas de meados do século passado empregavam centenas de milhares de trabalhadores, as mega-empresas da “nova economia”, que as substituíram no topo dos rankings de valor bolsista, contentam-se em empregar alguns milhares de trabalhadores (ver Que fazer com toda esta gente supérflua?).
Aos 87 anos, é compreensível que a questão do emprego não tire o sono a Serres, mas os que nasceram 70 anos depois dele têm um futuro inquietante pela frente, apesar de, supostamente, serem “a geração mais qualificada de sempre” e de os arautos do futuro radioso garantirem que, ao longo da história, sempre surgiram novas profissões para substituir aquelas tornadas obsoletas.
Em 1930, no ano em que Serres nasceu, a firma de maquinaria Trackson, de Milwaukee, EUA, promovia assim o seu equipamento: “Corte nas despesas com empregados: Escave-transporte-carregue com um só homem”. A diferença para os nossos dias é que nenhum anúncio a uma nova tecnologia que permita reduzir os quadros de pessoal se atreve a proclamá-lo
Não só este optimismo é contrariado, no Sul da Europa, pelo crescimento das taxas de desemprego jovem – 43.7% na Grécia, 36.0% em Espanha, 31.5% em Itália, 25% em Chipre, 24.5% na Croácia, 22.2% em Portugal (dados de Janeiro de 2018) –, como sob estas se oculta uma realidade ainda mais desoladora: muitos dos empregos são precários e muitos dos que estão empregados foram obrigados a aceitar um trabalho (e uma remuneração) que não corresponde ao seu nível de qualificação.
Tome-se o caso de Portugal, cujo desempenho económico positivo (mas não entusiasmante) nos últimos anos foi conseguido sobretudo à custa do sector turístico. Este dinamismo traduziu-se, naturalmente, numa abertura de novas vagas, mas, conforme apurou o Expresso (suplemento de Economia, de 21.04.18) junto do Instituto de Emprego e Formação Profissional, 87.7% das vagas no sector turístico requeriam trabalhadores com o ensino básico e 56.4% nem sequer exigiam mais do que o 6.º ano de escolaridade. O suplemento Economia do Expresso de 12.05.18 completa o quadro pouco animador: dos 362.500 empregos criados entre o 1.º trimestre de 2013 (o ponto mais baixo da crise) e o 1.º trimestre de 2018, 75% pagam menos de 900 euros por mês.
O futuro do emprego?

Políticos

“Antes fomos guiados por Mussolini e Franco, Lenin e Stalin, Mao, Pol Pot, Ceaușescu… todos eles pessoas de bem, requintados especialistas em campos de extermínio, torturas, execuções sumárias, guerras e depurações”. Aqui, Serres tem razão: hoje, nos países democráticos, vive-se um clima de algum alarme público perante a aparição regular de notícias sobre escândalos de corrupção, desvio de fundos, branqueamento de capitais e tráfico de influências envolvendo políticos, mas os regimes totalitários tornaram-se minoritários no mundo e até as “democracias iliberais” ou “musculadas” se esforçam por manter uma fachada de liberdade e democracia.
Porém, Serres nada diz sobre a crescente insatisfação dos eleitores com os políticos: ainda antes de terem aquecido o lugar, já as suas taxas de aprovação começam a declinar e quando chegam ao fim do mandato o país está desejoso de os ver pelas costas. É uma tendência inquietante, que merece análise. É tentador justificá-la por os políticos serem cada vez de pior qualidade e os eleitores cada vez mais atentos e bem informados, mas o fenómeno resulta antes de se ter cristalizado uma relação entre políticos e eleitores que obriga os primeiros a prometer cada vez mais.
Em 1929, um ano antes de Serres nascer, já o Partido Conservador britânico se empenhava em prometer sol na eira e chuva no nabal
Como observam John Micklethwait & Adrian Woolridge em A quarta revolução: A corrida global para reinventar o Estado (2014), “os eleitores sempre votaram a favor de mais serviços” e “o negócio dos nossos políticos tem sido o de nos dar mais daquilo que queremos”. O resultado é um Estado cada vez mais pesado, ineficaz e voraz, e que, apesar de consumir uma parcela cada vez maior da riqueza nacional, é incapaz de responder às expectativas que os eleitores nele depositaram. “Tendo sobrecarregado o Estado com as suas exigências, os votantes estão furiosos por isto funcionar tão mal” e vingam-se exprimindo desdém pelos partidos, pelos órgãos de soberania e até pelo conceito de democracia e deixando de votar ou entregando o voto a partidos radicais ou a “partidos de protesto”, que vociferam contra o “sistema” e a “classe política” (da qual, naturalmente, se excluem). Por se afirmarem como “anti-sistema” e por pretenderem capturar o maior número possível de eleitores, são ideologicamente vazios, estando disponíveis para subscrever tudo o que as sondagens indiquem ser do agrado das massas e sendo movidos pura e simplesmente pela sede de poder.


Guerra

Serres constata que a Europa está em paz desde 1945 e regozija-se. Omite a guerra na ex-Jugoslávia, mas nem por isso deixa de ter razão, face ao tenebroso registo da primeira metade do século XX. Serres não alude a tempos mais antigos, mas, mesmo com o lastro de uma primeira metade desastrosa, o século XX não se sai mal na comparação com os precedentes: 53 dos seus anos foram passados em guerras entre grandes potências, mas no século XVIII foram 78 os anos de guerra, e os séculos XVII e XVI apenas conheceram, respectivamente, seis e cinco anos de paz.
Batalha de La Hogue (1692), um dos episódios da Guerra dos Nove Anos (1688-97), um dos muitos conflitos que ensombrou a Europa do século XVII. Quadro de Adriaen Van Diest
Serres não o menciona, mas a ausência de conflito não é a única novidade positiva face aos “bons velhos tempos”. Desaparecido o clima de receio mútuo e constantes disputas territoriais que dominou a história europeia durante séculos, as enormes quantias que cada país despendia em tempo de paz para manter um exército pronto a entrar em combate com os vizinhos puderam ser desviadas para fins mais úteis à sociedade.
A corrida ao armamento no início do século XX, entre a Alemanha, a Grã-Bretanha, a França, a Rússia e os EUA, segundo cartoon na revista satírica Puck de 22 de Setembro de 1909
Em 1938, a França gastava quase 7% do seu PIB em defesa, a Grã-Bretanha outro tanto, a URSS 10% e a Alemanha 15%. A França gasta hoje 2.3%, a Grã-Bretanha 2.2%, a Alemanha 1.2%.
Mas a maioria dos europeus hoje vivos nunca passou por uma guerra e é precisamente esse desconhecimento do que ela implica em sofrimento e privações que os leva a não valorizar devidamente estas décadas de paz continuada.
Construção de bombardeiros B-24 Liberator nas instalações da Ford em Willow Run, no Michigan, c. 1942-43: durante a II Guerra Mundial, a maior parte das fábricas de automóveis dos EUA foram convertidas em fábricas de armamento

Ambiente

“Antes, sem constrangimentos, as fábricas espalhavam os seus detritos na atmosfera ou no mar, no Sena, no Reno ou no Ródano”, sustentadas na crença de que o mundo e os recursos eram infinitos. Serres congratula-se com a rejeição do “conforto do narcisismo antropológico” e a tomada de consciência da finitude do mundo e da capacidade do homem para lhe causar dano.
“Tomoko Uemura no banho”, uma das mais famosas fotos de Eugene W. Smith, 1971. Tomoko foi uma das mais de 2000 vítimas de envenenamento por mercúrio entre os pescadores da Baía de Minamata, Japão, em resultado das descargas de águas residuais não tratadas de uma fábrica de produtos químicos
É verdade que se multiplicaram as regulamentações ambientais e surgiram organismos estatais e ONGs consagrados a velar pela observância desses regulamentos, e que, na prática, muitas das agressões ambientais mais óbvias foram eliminadas ou severamente minoradas ou discretamente transferidas para países do Terceiro Mundo com regulamentos mais permissivos ou fiscais mais distraídos. E é também notório que, hoje, as sondagens de opinião revelam que os cidadãos prezam sobremaneira a defesa do ambiente e da sustentabilidade. Mas estarão os cidadãos realmente dispostos a fazer alterações relevantes no seu estilo de vida de forma a estar em linha com tão nobres valores?
A suposta tomada de consciência dos valores ambientais não tem impedido a pegada ecológica mundial de aumentar. No início da década de 1970, os recursos naturais requeridos pela humanidade (quer sob a forma de consumo quer de meios para absorver e neutralizar os resíduos gerados) igualaram os recursos de todo o planeta. E após mais de três décadas de proclamações de amor pelo planeta de políticos, empresários e cidadãos e de incontáveis campanhas de educação ambiental, a pegada ecológica mundial subiu para 1.64 planetas.
Portugal ocupa o 60.º lugar no ranking de pegadas ecológicas, com 3.88 gha/pessoa (gha ou hectare global denota a quantidade de recursos gerados e serviços ambientais providenciados por um hectare-padrão da superfície terrestre), o que fica bem acima da média mundial, que é de 2.8 gha/pessoa. E como o país dispõe apenas de 1.51 gha/pessoa (um pouco abaixo da média mundial, que é de 1.7 gha/pessoa), cada português apresenta um deficit de 2.37 gha. Que não haja qualquer dúvida: quer o português médio quer o terráqueo médio vivem acima das suas possibilidades.
Evolução da pegada ecológica mundial: Mesmo que fossem tomadas medidas efectivas para reduzir as emissões de CO2 em 30% até 2030, a humanidade continuaria a viver acima do limiar de sustentabilidade
A hipocrisia, desconhecimento ou leviandade subjacentes à “sensibilidade dos governos e cidadãos para as questões de ambiente” estão bem patentes no facto de serem os países cujos governos e cidadãos alardeiam maior sensibilidade ambiental que apresentam maiores pegadas ambientais.
Pegada ecológica per capita, por país: O vermelho mais escuro corresponde à maior pegada, o azul mais claro à menor
Serres está equivocado: os governos e cidadãos não rejeitaram o “conforto do narcisismo antropológico”, apenas interiorizaram que é socialmente reprovável não manifestar apreço pela defesa do ambiente e preocupação com a sustentabilidade. De resto continuam a ter as mesmas aspirações: consumir e viajar mais, possuir casas e carros maiores e mais impressionantes. O único efeito da “consciencialização ambiental” foi levar a classe média-alta instruída e viajada (que tem, ironicamente, uma enorme pegada ecológica) a desempenhar rituais como urinar no duche, rejeitar maçãs provenientes de outros países ou apagar as luzes de casa durante uma hora, um dia por ano (ver Urinar no duche não adia o fim do mundo e A caminho do Inferno, ao volante de um SUV). Poderá apaziguar consciências e dar a ilusão de que se vai no bom caminho, mas não desvia a civilização da sua marcha na via da insustentabilidade.
Claro que Serres, mesmo que chegue a centenário, não estará cá para ver sinais evidentes de que o seu optimismo na área do ambiente é infundado. A factura ambiental é cobrada de forma diferida e com prestações iniciais “suaves”.
Corais branqueados (em primeiro plano) e corais saudáveis (em fundo), em resultado do aquecimento da água dos oceanos. Haverá mesmo uma relação causa-efeito entre isto e levarmos os miúdos à escola de carro? E se não fizermos tenção de mergulhar pelos lados da Grande Barreira de Recifes Australiana, que diferença prática tem para nós a morte dos corais?

Doenças

“Achacado, paralítico, borbulhoso, o corpo levava uma boa vida em cima de uma cama de rosas, antes”.
Serres está cheio de razão: os antibióticos, as vacinas, os meios auxiliares de diagnóstico e a implementação de sistemas nacionais de saúde que proporcionaram cuidados médicos a vastas faixas da sociedade cujos rendimentos não lhes permitiriam a eles aceder, operaram milagres e dilataram apreciavelmente não só a esperança média de vida como a esperança média de vida com saúde. E “a Organização Mundial de Saúde conseguiu a proeza, não de curar doenças aqui e acolá, mas de erradicar mundialmente uma ou duas doenças, entre as quais a varíola”.
“The cow-pock or the wonderful effects of the new innoculation!”, um cartoon de 1802 por James Gillray, troça dos receios dos inoculados numa sessão de vacinação contra a varíola (smallpox, em inglês) no hospital de St. Pancras, em Londres. Os boatos envolvendo efeitos secundários das vacinas são tão antigos quanto a vacinação
Os progressos neste domínio foram tais que, nos sectores mais abastados da sociedade, até produziram um efeito paradoxal: a vacinação em massa das crianças foi tão eficaz na supressão de doenças (ou na drástica atenuação dos seus efeitos) que há quem, não fazendo a mais pequena ideia das mortandades, incapacidades e aleijões delas resultantes na era pré-vacinação, assuma que elas são representam um perigo e impeça os filhos de serem vacinados, a pretexto de fantasiosos efeitos secundários. Teriam talvez outra atitude se soubessem, por exemplo, que o “inócuo” sarampo matou 200 milhões de pessoas entre 1855 e 2005.
Maurice Hilleman, o inventor da vacina contra o sarampo, fotografado em 1958
Na sua entusiástica celebração dos progressos na saúde, Serres esquece-se de que eles têm um custo muito elevado e que tende a aumentar à medida que a esperança de vida aumenta e os medicamentos e tratamentos médicos se sofisticam, ao mesmo tempo que, com o declínio das taxas de natalidade e a inversão da pirâmide etária, haverá cada vez menos gente em idade activa para gerar a riqueza e pagar os impostos necessários à sustentação dessa maravilha que é a medicina moderna. No Portugal de hoje, não se passa um dia sem que os media nos tragam mais um episódio de um serviço de saúde à beira da ruptura em resultado da falta de pessoal, medicamentos ou equipamento. Estará a França acima destes problemas?
Se Serres exibe, aos 87 anos, uma lucidez admirável, o número de doentes de Alzheimer não pára de crescer – são já 35 milhões e cada um custa à sociedade pelo menos 50.000 euros por ano. E os doentes com Alzheimer são apenas uma fracção de um número crescente de idosos que sobrecarrega os serviços de saúde com patologias que antes tinham expressão residual pois as pessoas morriam de outras causas antes que elas tivessem oportunidade de manifestar-se. A esperança média de vida tem aumentado consistentemente mas a esperança média de vida com saúde não cresce ao mesmo ritmo e entre os dois indicadores abre-se um abismo que engole os recursos dos sistemas de saúde.
Auguste Deter, em 1902. Deter foi a primeira paciente identificada pelo Dr. Alois Alzheimer com a doença que leva o seu nome

Mulheres

Não só dar à luz uma criança era, nas primeiras décadas do século XX, um acto de alto risco, como “as sobreviventes do desastre natal não tinham direito de voto nem livro de cheques no banco, deviam cobrir a cabeça quando entravam as igrejas e pedir autorização marital para toda a espécie de procedimentos”, lembra Serres.
Appenzell, na Suíça. A paisagem pode ser arejada, as cabeças sê-lo-ão um pouco menos: o cantão de Appenzell Innerrhoden foi a última região da civilizadíssima Federação Helvética a conceder o direito de voto às mulheres, em 1991 (mil novecentos e noventa e um)
Há quem, nos círculos conservadores, lamente a desagregação da família nos dias de hoje, esquecendo-se que a solidez da família de outros tempos assentava na completa subalternização da mulher. Mas o crescimento da taxa de divórcios desde o início do século XX tem também outra razão: como observa Serres, em resultado das doenças, das guerras e dos partos, era frequente que a morte de um dos cônjuges libertasse o outro do juramento de fidelidade eterna ao fim de poucos anos, enquanto no pacífico e saudável século XXI, marido e mulher teriam, se tudo dependesse apenas da biologia, de aturar-se durante décadas a fio. A sagrada instituição do casamento não foi concebida para lidar com cônjuges com saúdes de ferro.

Língua

Serres vê motivo para regozijo no facto de o vocabulário francês se enriquecer de milhares de aquisições a cada nova edição do Dicionário da Academia Francesa. Numa entrevista ao Libération em 2011, antecipando o lançamento do já mencionado Petite Poucette, afirmava Serres que “a linguagem [da nova geração] é mais rica” e que isso podia ser constatado no facto de o acréscimo de novas palavras a cada nova edição do dicionário da Academia Francesa ter sido, em média, de 3000-4000 palavras, enquanto entre a 8.ª edição (1932-35) e a 9.ª (2005-17) esse acréscimo rondaria as 30.000 palavras.
Folha de rosto do I tomo da 6.ª edição do Dicionário da Academia Francesa, de 1835
Trata-se de um raciocínio extraordinariamente falacioso: um dicionário espelha o vocabulário usado pelo conjunto da sociedade, não o vocabulário do indivíduo médio. É natural que à medida que a ciência e a tecnologia se expandem e ramificam em ramos de saber cada vez mais especializados, que surgem novas profissões e as profissões já existentes ganham novas facetas, que a economia concebe e comercializa novos produtos e serviços e que o intenso intercâmbio decorrente da globalização nos confronta com outras línguas, usos, animais, plantas, artefactos, produções artísticas e realidades, seja necessário criar, importar ou adaptar novos vocábulos. Por outro lado, o nível médio de escolaridade da população tem vindo a aumentar consistentemente, em França e no mundo, e se o cidadão médio é mais instruído, é natural que o seu vocabulário seja mais vasto.
Porém, nada nos garante que, comparando pessoas com o mesmo nível de habilitação académica, o vocabulário do representante médio das novas gerações seja mais rico do que a do representante médio das gerações anteriores. Há, aliás, indícios de que o declínio nos hábitos de leitura de livros e o registo “telegráfico” incentivado pela comunicação via Internet e SMS tem vindo a empobrecer o vocabulário dos jovens. Um estudo realizado por Tony McEnery, professor de linguística na Universidade de Lancaster, na Grã-Bretanha, em 2009, dava conta de que a maioria dos adolescentes usava nas relações quotidianas um vocabulário com apenas 800 palavras e que as 20 palavras mais usadas representavam 1/3 da comunicação.

Comunicações e conhecimento

“Antes, vivíamos isolados num espaço por toda a parte discordante e fragmentado. Sabíamos pouco da vida na quinta vizinha, uns pormenores da aldeia, quase nada da sede administrativa. Que podíamos nós saber de Paris e do estrangeiro senão rumores?”. Serres recorda como “era melhor habitar em Paris ou numa grande cidade para aceder às grandes bibliotecas, às universidades, aos centros de documentação. Um esclarecimento, uma citação podiam custar dias de viagem e horas de investigação. Clique, hoje, um centésimo de segundo para o mesmo resultado”.
É verdade: a disponibilidade instantânea e a custo zero de (quase) todo o saber acumulado pela humanidade é uma conquista tremenda. Mas, tal como o facto de o dicionário da Academia Francesa ter engordado em 30.000 vocábulos não significa necessariamente que os jovens franceses empregam hoje um vocabulário mais rico, também a disponibilidade deste fabuloso manancial não garante que todos os internautas tirem dele benefícios – o que Serres admite quando acrescenta que “a Polegarzinha sabe tudo. De informação, nem sempre de conhecimento”.
A verdade é que boa parte dos internautas gastam o seu tempo a ver pornografia, gatos a tocar piano e adolescentes a fazer estroinices, a exibir o prato do almoço no Instagram, a confirmar os seus preconceitos em blogs e contas de Twitter e Facebook de quem pensa como eles, e a dar largas à indignação nos fóruns de opinião e caixas de comentário.
Todavia não valerá a pena dar grande atenção ao que Serres pensa sobre este tema: umas páginas adiante, o autor dá mostras de não fazer ideia do que fala, pois alude à “Wikipédia e outros motores de busca”. Talvez Serres devesse ter submetido este capítulo à Polegarzinha para revisão técnica.
Biblioteca pública de Leamington Spa, Grã-Bretanha, por volta do ano de nascimento de Serres: “Toda esta excitação por causa de livros?”, perguntar-se-ão os miúdos da Geração Z

Electricidade

Serres chama-lhe a “fada electricidade” e faz um retrato sombrio, mas realista dos tempos de antanho: “Antes […] reinavam o frio e as velas. Os ricos compravam lanternas a petróleo que, acres, fumegavam, exalavam, tresandavam”.
Pode consolidar-se a argumentação de Serres com números, extraídos de O optimista racional, de Matt Ridley: em média, “uma hora de trabalho, hoje, paga 300 dias de luz de leitura; uma hora de trabalho em 1800 pagava 10 minutos de luz de leitura”. Já seria um progresso fantástico, mas é preciso somar-lhe outras vantagens nada despiciendas: a luz de 1800 era suja, tóxica, pouco prática e não poucas vezes foi fonte de devastadores incêndios (vamos esperar que o conselho de administração da EDP não leia isto, senão poderá sentir-se inspirado a fazer subir ainda mais as tarifas).
A electricidade é de tal forma omnipresente nas nossas vidas que nos esquecemos quão recente ela é na história da humanidade e mesmo os que urinam no duche, cultivam uma horta biológica e advogam o “regresso à terra” não se atrevem a exigir um mundo sem electricidade.
Mas Serres louva a electricidade em abstracto, como se ela fosse neutra, virginal e tão incorpórea como uma fada, sem se preocupar em saber como é gerada.
Evolução da geração de electricidade no mundo (em TWh) no período 1980-2011, a partir de fontes renováveis (verde), centrais nucleares (vermelho) e combustíveis fósseis (castanho)
E a pouco tranquilizadora realidade é que ela continua a provir, sobretudo, dos combustíveis fósseis, apesar dos grandes progressos registados no domínio das energias renováveis e da tagarelice em torno da “descarbonização” da economia. E, o que é pior ainda, a maior parte do contributo das energias renováveis continua a provir da mais antiga (e ambientalmente lesiva) delas, a hídrica, sendo as parcelas do vento e do sol ainda residuais.
Evolução da geração de electricidade no mundo (em TWh) no período 1980-2011, a partir de fontes renováveis: hídrica (azul), biomassa (laranja), geotérmica (vermelho), eólica (verde) e solar + marés (rosa)

Media

“Os antigos media difundiam-se todos, difundem-se ainda, em forma de feixe, a partir de um cenáculo restrito de anunciantes e ao encontro do grande número de cãezinhos sentados, que escutam a voz dos donos. Esta forma favorece assim a apropriação da informação na fonte e a formação de um grupo de pressão que reserva essa difusão em proveito próprio; esta forma favorece assim o poder em vez do conhecimento”. E Serres rejubila por a Polegarzinha ter abandonado este mundo e ter aderido ao mundo sem hierarquias da Internet – “a democracia avança; melhor, vai ela nascer?”
É uma ingenuidade que se desculpa em quem julga que a Wikipédia é um motor de busca e talvez não perceba que a Internet e as redes (ditas) sociais podem ser tão ou mais eficazes a manipular as massas do que os media convencionais. Como o livro foi escrito em 2017, talvez o escândalo Facebook/Cambridge Analitica, vindo a lume em 2018, possa ter contribuído, entretanto, para moderar-lhe a euforia cibernética.
22 de Maio de 2018: Mark Zuckerberg depõe no Parlamento Europeu a propósito do envolvimento do Facebook no escândalo Cambridge Analytica. Zuckerberg, embora declare ambicionar um mundo de transparência total, pretendia que a reunião fosse à porta fechada. A opacidade acabou por prevalecer, mesmo com as portas abertas, já que tudo foi organizado de molde a que Zuckerberg tivesse apenas meia hora para responder a uma hora de perguntas
Para contrabalançar o optimismo cândido de Serres sobre a Internet, é oportuno recordar outro grande pensador seu contemporâneo, Umberto Eco (1932-2016), que, em 2015, declarou: “Os media sociais deram a legiões de idiotas o direito a falar, quando dantes apenas se pronunciavam num bar, após um copo de vinho, sem prejudicar a comunidade. Nessa altura, eram imediatamente calados, mas agora têm o mesmo direito à palavra que um Prémio Nobel. Vivemos a invasão dos imbecis”. E, sem negar os muitos benefícios trazidos pela Internet, lamenta que ela tenha “[promovido] o idiota da aldeia a detentor da verdade”.

Desigualdade

A comparação entre “antes” e “agora” de Serres omite o tema da desigualdade de rendimentos, talvez porque a evolução registada a nível global neste domínio desde a década de 1970 contraria o pendor optimista do seu livro.
Uma figura pública famosa defendeu que, de forma a motivar a força de trabalho, o rácio entre os mais e os menos bem pagos numa empresa deveria ser inferior a 20:1; porém, é frequente, hoje em dia, que esse rácio seja superior a 1000:1 e a desproporção tem vindo a agravar-se nas últimas décadas: em 1989, o típico CEO norte-americano ganhava 42 vezes mais que o trabalhador médio da sua empresa; hoje ganha 373 vezes mais.
O mais curioso é que a defesa do rácio inferior a 20:1 não foi feita em 2018 por Jerónimo de Sousa mas, há mais de um século, por J.P. Morgan (1837-1913), fundador do banco homónimo e símbolo maior do capitalismo americano.
John Pierpont Morgan (1837-1913) alcançou, na viragem dos séculos XIX-XX, um domínio tal sobre a economia americana que foi alvo deste cartoon de Udo Keppler no número de 26 de Abril de 1911 da revista satírica Puck
É verdade que em França o índice de Gini, que mede a disparidade de rendimentos (e que oscila entre 0 – absoluta igualdade – e 1 – uma única pessoa detém todo o rendimento), que era um dos mais elevados da Europa em 1950 (0.49) tem vindo a declinar consistentemente desde o final da II Guerra Mundial (está hoje nos 0.29, melhor do que Portugal, com 0.33, mas abaixo da Noruega, com 0.25). Porém, tem acontecido o inverso nos EUA (onde, em 2014, o 1% de topo detinha 39% da riqueza), na China ou na Grã-Bretanha (onde as 50.000 pessoas mais ricas do país duplicaram a sua riqueza entre 1984 e 2017).
Evolução da desigualdade de rendimentos, medida pelo índice de Gini
Em termos globais, entre 1980 e 2016, 26% do incremento de riqueza gerado no planeta foi apropriado pelo 1% de topo. E o fenómeno é tanto mais preocupante por a maior parte do aumento da riqueza dos ricos estar concentrado nos mais ricos entre os ricos, ou seja no 0.1% do topo. Muitos dos “filthy rich” no cume da pirâmide são empresários da nova economia digital, o que reforça a suspeita de que os novos media sociais poderão ser, na prática, menos niveladores e democráticos do que Serres gosta de pensar.

Balanço

A intenção de contrariar o discurso apocalíptico é louvável, mas Antes é que era bom! acaba por cair no extremo oposto, do optimismo rosado, afinando pelo diapasão de O optimista racional: Como evoluiu o bem-estar (The rational optimist: How prosperity evolves), de Matt Ridley, editado em 2013 pela Bertrand, e de Progresso: 10 razões para ter esperança no futuro (Progress: 10 reasons to look forward to the future) de Johan Norberg, editado em 2017 pela Temas & Debates (ver Progresso: Será que vai mesmo correr tudo bem?).
Porém, ao contrário destes autores, Serres não se esforça por sustentar a sua perspectiva com números e argumentação estruturada, preferindo um tom coloquial, bem humorado e ligeiro, entrecortado pela evocação das suas fascinantes memórias de como era a vida “antes”. Seria talvez sedutor ouvi-lo discorrer sobre estes assuntos num bar, após um copo de vinho, mas nada disto tem consistência suficiente para assumir a forma de um livro.

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