QUANDO 170 mil agricultores negros ocuparam 4 mil fazendas de brancos no Zimbabwe, em 2000, causaram uma onda de choque em todo o mundo. Uma década depois, os novos agricultores estão se saindo relativamente bem. Melhoraram as suas condições de vida e tornaram-se cada vez mais produtivos.
Maputo, Terça-Feira, 16 de Abril de 2013
Notícias
Este é o mote do livro intitulado “Zimbabwe takes back its Land” (Zimbabwe recupera a sua terra), da autoria de Joseph Hanlon, Jeanette Manjengwa e Teresa Smart, numa obra que é lançada amanhã em Maputo. Os autores do livro mostram de forma inteligente que apesar da instabilidade política, estagnação económica e incompreensível hiperinflação, os zimbabweanos assumiram o comando dos seus destinos de forma criativa. No Zimbabwe, os pequenos agricultores (que surgiram com as ocupações forcadas de fazendas nos anos 2000) são hoje mais produtivos do que os agricultores comercias e mecanizados. Empregam mais pessoas e contribuem cada vez mais para a redução da pobreza.
O Notícias conversou com Joseph Hanlon e Teresa Smart, na véspera do lançamento da obra. Eles partilham algumas histórias sobre o processo de reforma agrária no Zimbabwe.
O Notícias conversou com Joseph Hanlon e Teresa Smart, na véspera do lançamento da obra. Eles partilham algumas histórias sobre o processo de reforma agrária no Zimbabwe.
NOTÍCIAS (Not) - No livro abordam a questão da reforma agrária no Zimbabwe, onde o acesso à terra foi sempre uma questão contenciosa, muito antes da independência em 1980. Podem dar-nos um historial, na vossa percepção, do processo de reforma agrária?
TERESA SMART (TS) - Primeiro se voltarmos a 1930 foi aprovada a Lei de Repartição de Terras que dividiu a terra com base racial, onde 51 por cento foi dada a um pequeno número de “europeus”, a designada terra dos brancos, 36 por cento da terra designada de reserva foi para a maioria dos camponeses africanos. Com esta divisão, grande número de agricultores africanos perdeu o direito à terra na qual trabalharam durante gerações. Mais tarde, depois da segunda guerra mundial o Governo decidiu trazer um grande número de agricultores europeus para ocuparem a terra. Primeiro Houve uma grande campanha, primeiro para os rodesianos brancos veteranos da Segunda Guerra Mundial, que foram atribuídos terra e subsidiados. Depois houve um encorajamento para se trazer veteranos da guerra europeus não agricultores que foram dados terra e empréstimos para trabalha-la. Entre 1945/58, mais de 100 mil famílias camponesas africanas foram afastados das suas terras, de forma violenta.
JOSEPH HANLON (JH) -Algumas foram afastadas com armas em punho, de forma muito desagradável. As pessoas foram tiradas à força, quase que entulhadas em camiões e mandadas embora. Ainda hoje encontramos pessoas acima dos 60 anos, cujos avos foram afastados das terras e muitos desses tornaram-se combatentes de luta de libertação do país. Portanto, a luta de libertação foi motivada pela terra, os veteranos de guerra acreditavam que com a chegada da independência teriam acesso automático à ela (terra).
Not - Mas não foi o que aconteceu, anos mais tarde a ocupação de terras pelos veteranos da luta de libertação teve que ser igualmente à força…
TS- Depois houve os acordos de Lancaster House, que possibilitaram a independência do Zimbabwe. Os acordos preconizavam um período de 10 anos para se iniciar a reforma agrária, na base de compra e venda por vontade. De facto 75 mil famílias foram atribuídas terra neste sistema, só que não era a melhor terra, porque os farmeiros brancos não vendiam a sua melhor terra, vendiam terra que não era muito útil, isto é, fértil.
Not- Querem dizer que no fundo, a independência não trouxe terra aos Zimbabweanos?
JH- Trouxe e não trouxe. Por causa do sistema de compra e venda por vontade, alguma terra foi transferida, mas não a melhor. Portanto, as 75 mil famílias foram dadas terra, mas era terra marginal dos farmeiros brancos. O problema não foi resolvido, os negros continuavam a não ter acesso à terra arável. Continuou a existir a terra rica nas mãos dos brancos que não foi transferida para os negros.
TS- Na terra que foi transferida ficou demonstrado que os agricultores africanos queriam produzir e produziam alguma coisa. O que aconteceu é que boa parte da melhor terra foi para as elites ou pessoas ligadas ao Governo. Mas uma grande parte dos veteranos de guerra zimbabweanos não obteve terra ou não lhe foi atribuída aquele recurso neste processo. Portanto, nos 20 anos seguintes havia um desfasamento muito grande, os veteranos se zangaram e ficaram agitados porque não tiveram acesso à terra. O mais drástico foi que o governo foi forçado a aceitar os programas de ajustamento económico do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI) o que provocou dificuldades económicas grandes. A indústria têxtil fechou, os trabalhadores perderam os seus empregos, os subsídios para a produção de milho por pequenos agricultores foram cortados e os preços da comida subiram.
JH- Um número significativo de pessoas perdeu seus empregos - mais de 70 mil pessoas -, o que criou um descontentamento de muita gente que lutou pela independência, pois pensava que a guerra não lhe trouxe ganhos. O que é interessante é que o Governo começou a procurar apoios de doadores para pagar a reforma agrária no sistema de compra e venda livre e por vontade. Houve uma conferência em 1988 em que esperavam conseguir dinheiro para pagar a terra, mas os doadores disseram não. Nessa altura houve muita agitação, muitas discussões. Finalmente, na verdade os veteranos de guerra estavam contra Mugabe e contra a ZANU e diziam que havia uma elite que estava a ficar rica, enquanto para eles que lutaram pela independência não havia nada. Chegou-se a 2000 e os veteranos disseram nós vamos levar a terra. Não havia tantos veteranos assim, o que eles fizeram foi organizar-se e ir aos bairros periféricos mobilizar as pessoas, apelando aos desempregados para aderirem às ocupações. Num fim-de-semana longo de Páscoa eles ocuparam mil fazendas. O que aconteceu a seguir é que o Governo mandou os ministros dizer que não se podiam ocupar as farmas, mas debalde. Finalmente em meados de 2000 o Governo aprovou uma lei que legalizava as ocupações feitas e não autorizava mais. Mas depois disso mais três mil fazendas foram ocupadas e foram sendo legalizadas, acabando por se legalizar tudo na reforma agrária acelerada. Mugabe começou a ver que tinha mais de 100 mil famílias nessas terras e que eram potenciais votantes, por isso a legalização foi uma decisão política O mais importante para nós é que a ocupação não foi feita por Mugabe, foi feita contra a vontade de Mugabe. Ele veio mais tarde a abraçar o processo por motivações políticas.
Not- Mas isso teve as suas consequências, como as sanções económicas…
JH -Mugabe tomou a decisão por motivos eleitorais, mas enfureceu o mundo de fora. O que aconteceu foram as sanções que mergulharam o país numa crise financeira e o Governo começou a imprimir dinheiro, criando uma hiper inflação. Durante o período de 2003 a 2008 a inflação piorou, mas estes novos agricultores estavam-se saindo bem, estavam a produzir mesmo contra a corrente das coisas. E, em 2009 houve a dolarização da economia, o que levantou a agricultura zimbabweana. Os agricultores que apareceram com as ocupações facilmente se tornaram agricultores comerciais e vendiam bem o seu produto. Após a dolarização assiste-se ao levantar do voo da agricultura zimbabweana.
TS- Entre 2010 e 2011 passamos um tempo no terreno, no Zimbabwe, conversamos com os agricultores, verificando o que havia acontecido, porque até àquele momento, os relatos que ouvíamos sobre a reforma agrária era de que a terra estava vazia, não se produzia, estava a ser perdida e muitos passavam fome. Fomos dar uma olhadela e ficamos espantados porque os relatos não eram verídicos. Visitamos fazendas diferentes em três províncias e pudemos ver que estava a ser cultivadas.
Not- O que estava a acontecer realmmente no terreno?
JH-Muitas machamabas estavam a ser cultivadas. Muitas pessoas estavam a cultivar a terra e um terço dessa gente estava a sair-se bem, mesmo sem ter acesso a dinheiros ou subsídios. Os agricultores reinvestiam na terra o que ganhavam. O que descobrimos tem suporte de um relatório do Banco Mundial divulgado em Novembro de 2012, que diz que actualmente a produção nas terras ocupadas está voltando aos níveis de 1990. Ao olharmos para a média dos anos noventa antes da reforma agrária, o milho está-se aproximando dos 75 a 79 por cento, o tabaco está crescer espantosamente (o tabaco foi sempre uma cultura dos brancos mas agora está com os pequenos agricultores negros). Quarenta por cento do tabaco vem desses farmeiros.
TS- Fizemos uma pesquisa em três farmas de brancos que foram divididas em pequenos campos de seis hectares, sobre que culturas produziam, qual era a produção e o que venderam nas colheitas de 2009 e 2010 colheita, ao mesmo tempo que perguntávamos onde obtiveram o dinheiro para investir e se tornarem farmeiros de sucesso. Temos histórias incríveis. Temos o caso de um agricultor de tomate que era um segurança. Ele teve que hipotecar a sua casa em Harare para obter capital para investir na sua fazenda.
Conta que nos primeiros dois anos investiu mais na limpeza da vegetação existente na terra. Depois apostou no plantio de tomate porque sabia que podia vender, onde podia vender e sabia que era uma cultura constante. Ele planta de forma faseada para ter sempre tomate para colher e colocar no mercado. O agricultor agora expandiu a sua área de cultivo e introduziu a batata. Esse agricultor nos disse que para se ser bem sucedido é preciso ter um plano de investimento concreto, não ter receio de arriscar e ter que investir na terra. Ele vive numa casa modesta, mas provavelmente esteja a fazer muito dinheiro, conduz um carro velho e ele e a esposa trabalham todos os dias do amanhecer até ao por do sol. Ele agora é um grande agricultor porque reinveste o que ganha na sua fazenda. O mais importante é o reinvestimento. Não gastas todo o dinheiro que arrecadas.
Not- Qual é a percentagem de agricultores brancos no Zimbabwe neste momento e como é que estão se saindo?
JH: Nós estimamos que existam 200 farmeiros brancos em actividade. A maioria mudou para o comércio ou subiu na cadeia de valor ou abraçaram a exploração de tabaco. O que é espantoso é que muitos farmeiros negros aprenderam as suas habilidades, tiveram conselhos de farmeiros brancos. Existe um branco, cuja farma foi dividida por parcelas de 6 hectares e que convive com os negros e partilha a água e outros recursos. Ele tem uma fazenda onde cria gado, uma boa raça, e ajudou os outros vizinhos a criarem melhor o seu gado, chegando mesmo e emprestar machos de uma raça superior para cruzar com gado shona. A sua visão é que como um criador de gado tem que ter, como vizinhos, os melhores criadores de gado. Quando chegou a ocupação de terras ele já era conhecido como um homem que ajudava aos outros. O mais interessante é que quando os ocupadores chegaram convidou-os a sentarem e negociar. Eles disseram-no que queriam repartir a sua terra e ele disse que podiam faze-lo sem problemas. A ele só interessava ter acesso ao rio e manter os seus trabalhadores. Este criador optou por ficar no Zimbabwe e possui uma fazenda. Ele disse que ficou porque ele previu a reforma da terra. Um dos problemas é que muitos farmeiros brancos não previram a chegada das reformas.
Not - Qual é a situação actual dos agricultores zimbabweanos?
TS-O que se assiste hoje é que agricultores de sucesso com pouco dinheiro começaram a prosperar. O movimento foi liderado por mulheres, cujos maridos tinham empregos. Os maridos continuavam a arcar com as despesas com escola e alimentação, enquanto elas investiam as suas poupanças na primeira produção. Depois da produção, elas vendiam e o dinheiro era utilizado para comprar insumos para a época seguinte. Investiam na terra enquanto os maridos continuavam a arcar com as despesas domésticas. Depois de alguns anos elas dizem que facturam mais que os maridos e que estes, por sua vez, têm orgulho delas. Os agricultores estão voltando aos níveis dos farmeiros brancos nos anos 90 mesmo sem subsídios. O mais importante no Zimbabwe é que os serviços de apoio a agricultura são muito bons, nomeadamente a extensão agrária. Fomos a uma feira agrícola e vimos como os pequenos agricultores prestavam atenção às explicações das empresas fornecedoras de insumos. Tomavam notas para depois seguirem as instruções. O elevado nível de escolarização dos adultos no Zimbabwe torna as coisas mais fáceis.
Not- Porque dizem no livro que o Zimbabwe está a recuperar a terra?
JH -A educação joga um papel importante, mas também o reinvestimento e os serviços de extensão. A combinação destes factores e também a paixão pela agricultura, a forma como a ocupação foi feita. Muita terra foi dada a pessoas pobres que não só queriam ter um pedaço de terra, mas ocuparam porque queriam trabalhar a terra. Essas pessoas são sérias e estavam preparadas para tal. O que aconteceu foi que as pessoas queriam voltar às machambas, queriam cultivar e acreditavam na agricultura. São pessoas interessadas na agricultura e estão preparadas para trabalhar e investir na área.
TS- O título do livro significa que são os zimbabweanos que estão a recuperar a terra que lhes pertenceu. Estivemos no Zimbabwe recentemente e as pessoas gostaram do título. É um título político, um título prático, pois quanto mais olhamos para a história do Zimbabwe isso é correcto, porque a terra havia sido tirada dos zimbabweanos. Primeiro, pelos rodesianos e depois pela Lei da Repartição de Terras. Hoje, quando falamos com os que lutaram pela independência e os que cultivam a terra actualmente o sentimento é exactamente que a terra havia sido retirada dos zimbabweanos, sentiram-se traídos por que tiveram a oportunidade nos anos 80. As pessoas não só ocuparam a terra e se estabeleceram, trabalharam-na e sentem que lhes pertence. Os agricultores trabalham a terra, não só do ponto de vista de aumentar a produção, mas também de oportunidade de emprego, pois um grande número de pessoas trabalham nestes novos farmeiros e assim criam riqueza.
Not- Diz-se que a terra foi dada a elite próxima de Mugabe, foi isso que constataram?
JH-Não constituiu a verdade. Existem 23 mil pessoas dessa classe que tiveram acesso à terra. Mas Mugabe não tem 23 mil associados. Podemos dizer que provavelmente 10 por cento da terra está com a elite, mas no livro estamos a olhar para 90 por cento dos que detêm fazendas ou terra arável. Há alguma terra que está com os pequenos agricultores, não os mais pobres, porque para ter acesso à terra era preciso provar que se tem o capital de investimento e as pessoas que tinham casas em Harare hipotecaram-nas para investirem na agricultura. O mais importante é saber que de facto há alguns partidários de Mugabe que obtiveram terra, nos 10 por cento de titulares de terras, mas não podemos gastar tempo a falar desses. A maior parte do livro foca os 90 por cento, sem ignorar, claro, os 10 por cento. Visitamos alguma farmas de pessoas da elite, muitos deles sem habilidades para tal, mas colocaram bons gestores e estão a ter bons resultados. Visitamos uma farma de um ministro e essa estava exportando laranja e batata. Ser da elite e ter uma fazenda não equivale a ter uma fazenda ociosa.
Not - Existe algum paralelismo com a agricultura em Moçambique?
JH -Uma coisa interessante na que diferença entre o Zimbabwe e Moçambique é que os zimbabweanos vêem a terra como meio de acumulação de capital, eles pensam que se pode fazer dinheiro com a agricultura, isso a todos os níveis. As elites zimbabweanas que têm terra sabem que podem ficar ricas com a agricultura e alguns irão certamente ficar. Os camponeses pobres acham que podem fazer dinheiro e estão fazendo. Há casos de professores que viraram agricultores porque sabem que podem fazer mais dinheiro do que dando aulas. Não vemos isso aqui em Moçambique. Não vemos ministros dizer que se pode fazer dinheiro com a agricultura. São realidades diferentes. Não basta ter terra para ir passar os fins-de-semana, é preciso ter terra para fazer dinheiro.
Not- Como é que os agricultores conseguiram ser bem sucedidos?
JH-Os zimbabweanos não tiveram subsídios. Tiveram que achar maneiras para sobreviver. Os doadores não apoiaram a reforma da terra. Estes agricultores tiveram que ser imaginativos, criativos, num processo em que a sua educação foi muito importante. Os agricultores de sucesso reinvestiram os seus ganhos na própria terra. Eles planificaram sempre a época seguinte. Com o dinheiro das vendas da colheita compram insumos, sementes e fertilizantes para a campanha seguinte.
- Manuel Mucari
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