Em toda a sua extensão, o filme de Licínio Azevedo expõe argumentos que, dez anos depois da libertação de Moçambique da colonização, nos conduzem a uma tese: “O camarada passou para o lado do inimigo”. No seu todo, estes filmes “irão provocar o status quo das pessoas” – havia-se dito antes do início da Semana de Cinema Africano de Maputo, no dia 11. O evento terminou ontem, 18 de Abril.
Agora, repensemos sobre esta tragédia humana – Virgem Margarida...Quem não viveu naquele Moçambique do período pós-independência ainda fresco e, por essa via, não teve a oportunidade (ou o azar) de ser reencaminhado para os Centros de Reeducação, a impressão que fica – depois de assistir ao filme Virgem Margarida – é de que o referido instrumento pouco, ou quase não, respondeu aos objectivos para os quais foi concebido – criar um novo moçambicano. Houve muita opressão, tortura e sofrimento.
Em parte, quem assim pensa não estaria de todo enganado. Mas, a ser verdade que as mulheres que foram encaminhadas para o Centro de Reeducação– com excepção da personagem Margarida – eram prostitutas e não sabiam cuidar das tarefas domésticas, então, a ferramenta em alusão teve o seu mérito. É como a personagem Luísa referiu no seu discurso de recepção ao camarada comandante Felisberto: “Queremos saudar o nosso comandante e, através dele, os nossos dirigentes máximos que lutaram para nos libertar da dominação colonial. Queremos agradecer por nos terem trazido aqui, para conhecermos a maneira de viver do nosso povo”.
“Chegámos aqui como mulheres que não sabiam cuidar de um lar e que não podiam contribuir na luta contra o subdesenvolvimento. Hoje, podemos dizer que estamos transformadas. Assumimos colectivamente o compromisso – diante do camarada comandante – de sair daqui, mulheres novas, com as cabeças bem lavadas”.
Mas o que se sabe sobre o filme?
A Virgem Margarida não é um filme sobre a prostituição – como se pode pensar. É uma história de uma adolescente camponesa que é levada, por engano, para o Centro de Reeducação de prostitutas. Decorre numa época específica da crónica oficial moçambicana. Talvez seja por essa razão que se usam e abusam bastante determinados termos – camarada e comandante, por exemplo. Como tudo começou? No início da construção do novo Estado-nação moçambicano havia, em Moçambique, por parte dos governantes, a conceito de que no país existia o obscurantismo, o regionalismo e o tribalismo.
Por isso, de uma ou de outra forma, tinha de se eliminar essa estrutura de uma forma radical. No que se refere à reeducação das prostitutas, as razões não eram poucas. “Vocês aqui são do sul. As demais são do centro do país. Todas possuem mentes colonizadas. Devem aprender que são mulheres da mesma pátria. Vão aprender a comportar-se como mulheres novas. Ou eu não me chamo Maria João”, dizia a camarada comandante que se impunha como uma estrutura de mudança.
Desestruturar para reestruturar
No Moçambique pós-independência – com todas as características de um país recém-descolonizado – havia uma necessidade de se criar uma nova mentalidade. Ao que tudo indica, na leitura que se pode fazer do filme, tal processo passava também por desestruturar o que o sistema anterior havia edificado. Em resultado disso, depois de ter combatido dez anos (1964 – 1974), a camarada comandante Maria João viu-se obrigada a protelar o seu casamento, o seu plano de constituir uma família, para reeducar prostitutas e transformá-las a fim de torná-las mulheres úteis para aquele Moçambique novo.
Ou seja, devia dar prosseguimento à segunda etapa da luta de libertação do povo moçambicano – a libertação cultural. A dançarina Susana foi forçada a interromper a sua actividade artística, a dança, e a abandonar os seus filhos recém-nascidos como se fosse uma prevaricadora. Aliás, como ela afirma, “sou inocente, sim senhora. Dançar nunca foi crime e jamais será”. A própria Rosa, uma prostituta assumida, foi obrigada a abandonar a sua actividade. O pior é que o que confere a dimensão de uma tragédia humana ao filme é a presença – entre as prostitutas desterradas – da personagem Margarida que nunca antes se havia envolvido com homem nenhum, acabando por ser abusada, sexualmente, pelo camarada comandante Felisberto.
Desestruturou mesmo
A verdade é que, no Centro de Reeducação, como se viu em Virgem Margarida, os motivos para a punição não faltavam. Por exemplo, revoltar-se contra uma injustiça perpetrada contra si era motivo para que os camaradas castigassem a pessoa. Tal foi o caso da personagem Luísa que se rebelou contra o facto de lhe terem roubado a sua comida. Ela passou a noite dentro de um tambor cheio de água.
Susana, que havia deixado, na cidade, dois filhos menores, não resistiu à notícia de que as suas crianças haviam perdido a vida algum tempo depois. Ela ficou traumatizada. À noite, abandonou o centro e foi devorada por leões, encontrando, assim, a morte. Menos mal, a camarada comandante Maria João também não recebeu com agrado a informação de que o seu noivo se havia comprometido com outra mulher.
“O camarada foi pior que o colono”
Cansadas do sofrimento no Centro de Reeducação, as mulheres traçaram um plano a fim de convencer o comandante de que haviam sido transformadas. Nele enquadra-se o discurso da sua recepção proferida pela camarada Luísa. O camarada comandante Felisberto manifestou-se de forma corrupta. Ele condicionou a liberdade da camarada Rosa a uma relação sexual – facto que esta comunicou à comandante Maria João.
Depois de se ter provado que se havia cometido uma injustiça contra Margarida, que não era prostituta, quando o comandante Felisberto a devolvia ao convívio social, no meio do caminho, abusou-a sexualmente, tendo contado ao seu amigo camarada administrador que “ela era mesmo uma virgem”.Deixou-a fugir desprotegida na crença de que – antes de chegar ao campo de reeducação – seria devorada pelos leões, o que não aconteceu.
É a par de todos estes argumentos que a camarada Rosa – uma das personagens mais dinâmicas do filme –, revoltada, refere que “o camarada foi pior que o colono”. Todos os actores que participam n filme são moçambicanos. Dentre eles podemos citar Sumeia Maculuva, Ana Maria, Iva Mugalela, Hermelinda Cimela, Rosa Mário, Ilda Gonzales e Odília Cossa.
@VERDADE – 18.04.2013
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