O ex-Presidente de Angola (igualmente ex-Titular do Poder Executivo e ex-Presidente do MPLA), José Eduardo dos Santos foi citado por dois dos seus antigos colaboradores como tendo autorizado o desvio dos fundos do Conselho Nacional de Carregadores (CNC) para beneficiar empresas particulares. João Lourenço começa a ver nas costas de Dos Santos as suas.
Por Orlando Castro
É, como assinala a VoA, a primeira vez que o antigo Chefe de Estado é publicamente implicado em casos de corrupção durante o seu consulado de 38 anos. Talvez por isso fosse útil (isto, é claro, se Angola fosse um Estado de Direito) ouvir o testemunho de outros altos dignitários da governação do MPLA/Eduardo dos Santos, como é o caso do ex-vice-Presidente do MPLA e ex-ministro da Defesa, João Lourenço.
Em depoimento no Tribunal Supremo, que julga o caso do desvio de fundos do CNC, o antigo ministro dos Transportes, André Luís Brandão, entre 1992 e 2008, e mais tarde secretário do Presidente para a Contratação Pública, disse que José Eduardo dos Santos autorizou a participação dos 10 por cento do órgão no Banco de Negócios Internacional (BNI), decisão atribuída ao antigo ministro dos Transportes, Augusto Tomás.
André Brandão, arrolado como testemunha no processo em que Augusto Tomás é a figura central do julgamento, afirmou que ele tratou apenas do processo que foi formalizado, à posterior, pela direcção do ex-ministro.
Por seu turno, o líder da Fundação Eduardo dos Santos, Ismael Diogo, também declarou que a injecção, por Augusto Tomás, de capitais nas empresas ASGM e CIMMA foi igualmente autorizada pelo antigo Presidente da República, no quadro da parceria público-privada, iniciada em 2008.
A ASGM e CIMMA – a primeira virada para a importação e montagem de viaturas e a segunda para montagens metalomecânicas – tinham como accionistas empresas e figuras ligadas ao partido no poder.
Para o jurista Arão Tempo, “no interesse do Estado”, o ex-Presidente da República deve ser ouvido, mas adverte que, a acontecer, “o país pode paralisar”. Mesmo correndo esse risco, é relevante, vital mesmo, que José Eduardo dos Santos diga o que sabe (e sabe quase tudo), nomeadamente sobre a conivência – passiva ou activa – dos novos arautos da moralidade que outrora se lambuzavam na gamela da corrupção e da cleptocracia.
Como bem diz Arão Tempo (e como sempre disse o Folha 8), não há dirigente MPLA “que não esteja implicado no fenómeno da corrupção”. Aliás, se em tese (académica e ingénua) se admitisse o fim da corrupção em Angola, seria mais do que certo que o MPLA acabaria.
O também jurista Sérgio Raimundo já tinha sugerido que José Eduardo dos Santos deve ser tido como uma “peça fundamental e determinante” na cruzada contra a corrupção no país, quando se referia ao antigo governador do Banco Nacional de Angola, Walter Filipe, e a Zenu dos Santos, ex-administrador do Fundo Soberano e filho do antigo Presidente, arguidos no processo de desvio para o estrangeiro de 500 milhões de dólares do banco central angolano.
A verdade dói mas cura
No final do ano passado, o presidente angolano desafiou, em entrevista ao jornal português Expresso, o antecessor, José Eduardo dos Santos, a denunciar os corruptos. Para João Lourenço, são esses os traidores da pátria. Era bom e o Povo agradeceria que – se possível num órgão nacional – Eduardo dos Santos respondesse à letra, isto é, situando João Lourenço no escalonamento dos traidores e corruptos que tão bem conhece.
É claro que João Lourenço é, também no contexto angolano mas sobretudo do MPLA, uma figura impoluta, íntegra e honorável que nada tem a ver com traidores ou corruptos. Desde logo porque é um general e um político que chegou a Angola há meia dúzia de dias. É isso, não é?
Após a queda do regime fascista em Portugal, na companhia de outros jovens, juntou-se à luta de libertação nacional na República do Congo em Agosto de 1974, tendo feito a sua primeira instrução político-militar no Centro de Instrução Revolucionária (CIR) Kalunga.
Integrou o primeiro grupo de combatentes do MPLA, que entraram em território nacional via Miconge, em direcção à cidade de Cabinda, após a queda do Regime Colonial Português.
Em vésperas da Independência, participou nos combates na fronteira do N’Tó/Yema e em outras contra a coligação FNLA/Exército Zairense.
Durante a sua participação na luta de libertação e logo após a proclamação da Independência Nacional, a 11 de Novembro de 1975, fez formação em artilharia pesada, exerceu funções de Comissário Político em diversos escalões, desde pelotão, companhia, batalhão, brigada e de Comissário Político da 2ª Região Político-Militar em Cabinda, entre 1977/78.
Na sequência do esforço de qualificação das Forças Armadas Populares de Libertação de Angola – FAPLA, parte para a então União Soviética de 1978 a 1982, de onde, para além da formação militar, trouxe o título de Mestre em Ciências Históricas, obtido na Academia Político-militar V.I. Lénine.
De 1982 a 1983, participou nas operações militares no centro do país, Kwanza Sul, Huambo e Bié, com posto de comando no Huambo.
De 1983 a 1986, foi designado, pelo Presidente da República e Comandante-em-Chefe das Forças Armadas (José Eduardo dos Santos), para desempenhar as funções de Comissário Provincial do Moxico e Presidente do Conselho Militar Regional da 3ª Região Político Militar.
De 1986 a 1989, por decisão do Presidente do MPLA e da República de Angola (José Eduardo dos Santos), é designado para desempenhar as funções 1º Secretário do Comité Provincial do MPLA e de Comissário Provincial de Benguela.
De 1989 a 1990 é nomeado para desempenhar as funções de Chefe da Direcção Política Nacional das FAPLA, ascendendo ao generalato das FAPLA.
De 1991 a 1998, passou a desempenhar as funções de Secretário do Bureau Político para a Informação e, cumulativamente por um curto período de tempo, a de Secretário do Bureau Político para a Esfera Económica e Social, tendo assumido igualmente o cargo de Presidente do Grupo Parlamentar do MPLA.
Na sequência do IV Congresso Ordinário do MPLA, é eleito pelo Comité Central para desempenhar as funções de Secretário-Geral do MPLA de 1998 a 2003, assumindo nesse período a função de Presidente da Comissão Constitucional da Assembleia Nacional.
De 2003 a Abril de 2014, desempenhou as funções de 1º Vice-Presidente da Assembleia Nacional. General na reforma, é designado, por Decreto Presidencial, Ministro da Defesa Nacional em Abril de 2014.
Integra o Comité Central do MPLA desde 1985, é membro do Bureau Político do Partido desde 1990, tendo sido eleito – pelo Comité Central – Vice-Presidente do MPLA, na sequência do VII Congresso Ordinário do MPLA, realizado em Agosto de 2016.
Daí para cá a história deste impoluto, íntegro e honorável general é bem mais conhecida. Importa, contudo, reter a comprovação factual de que João Lourenço nunca ouvira falar de corrupção, mesmo sendo ministro da Defesa de José Eduardo dos Santos desde 2014 e vice-presidente do MPLA.
Está, por isso, acima de qualquer suspeita. É isso, não é? Na verdade, como é que alguém que aos 20 anos de idade (1974) entrou para o MPLA e fez toda a sua vida nas fileiras do partido poderia ter notado, constatado, verificado ou comprovado que existia corrupção no seio do MPLA e do Governo? Não podia…
Matumbos talvez… mas nem tanto!
João Lourenço diz esperar que a impunidade “tenha os dias contados” em Angola. Insiste na “moralização” da sociedade angolana. Estará a ser ingénuo, imprudente, suicida, estratega ou traidor? Se calhar, fazendo a simbiose de tudo isto, está apenas a gozar com a nossa chipala e a fazer de todos nós… matumbos.
O Presidente diz ser necessária a “moralização” da sociedade, com um “combate sério” a práticas que “lesam o interesse público” para garantir que a impunidade “tenha os dias contados”.
É verdade. Mas é verdade há muitos anos e a responsabilidade é do MPLA, partido no qual João Lourenço “nasceu”, cresceu, foi e é dirigente. Então, durante todos esses anos (44), o que fez João Lourenço para combater as práticas que “lesam o interesse público”?
“No quadro da necessidade de moralização da nossa sociedade, importa que levemos a cabo um combate sério contra certas práticas, levadas a cabo quer por gestores quer por funcionários públicos. Práticas que, em princípio, lesam o interesse público, o interesse do Estado, o interesse dos cidadãos que recorrem aos serviços públicos”, disse João Lourenço.
Sendo uma verdade de La Palice, como tantas outras que constituem o ADN do partido do qual é presidente, é caso para perguntar se só agora é que João Lourenço descobriu a pólvora?
Ou será que só agora é que João Lourenço descobriu que Angola é um dos países mais corruptos do mundo? Que é um dos líderes mundiais da mortalidade infantil? Que tem 20 milhões de pobres? Se calhar ainda não descobriu…
“Esperamos que a tão falada impunidade nos serviços públicos tenha os dias contados. Não é num dia, naturalmente, que vamos pôr fim a essa mesma impunidade, mas contem com a ajuda de todos e acreditamos que, paulatinamente, vamos, passo a passo, caminhar para a redução e posteriormente a eliminação da chamada impunidade”, diz João Lourenço.
Desde que tomou posse, a 26 de Setembro de 2017, na sequência das “eleições” (também elas um manancial de ilegalidades) de 23 de Agosto, João Lourenço exonerou diversas administrações de empresas estatais, dos sectores de diamantes, minerais, petróleos, comunicação social, banca comercial pública e Banco Nacional de Angola, anteriormente nomeadas por José Eduardo dos Santos.
Génios e matumbos?
Quando João Lourenço garantiu em Luanda que o MPLA iria lutar contra a corrupção, má gestão do erário público e o tráfico de influências… poucos acreditaram. Hoje há mais gente a acreditar? Há, é verdade. Mas as dúvidas continuam a ser mais do que as certezas.
João Lourenço discursava – recorde-se – no acto de apresentação pública do Programa de Governo 2017-2022 do MPLA e do seu Manifesto Eleitoral, mostrando a convicção de que – mais uma vez – os angolanos iriam votar com a barriga (vazia) e que havendo 20 milhões de pobres… a vitória seria certa. E foi.
“Para a efectiva implementação deste programa temos de ter os homens certos nos lugares certos”, referiu João Lourenço, efusivamente aplaudido pelos militantes presentes formatados e pagos para aplaudir seja o que for que o soba João Lourenço diga, tal como acontecia com Eduardo dos Santos.
Ainda de acordo com João Lourenço o MPLA iria “promover e estimular a competência, a honestidade e entrega ao trabalho e desencorajar o ‘amiguismo’ e compadrio no trabalho”.
“Vamos contar com aqueles que estão verdadeiramente dispostos a melhorar o que está bem e a corrigir o que está mal”, disse João Lourenço.
João Lourenço admite que o “MPLA tem consciência de que muito ainda há a fazer e que nem tudo o que foi projectado foi realizado como previsto”. Por outras palavras, se ao fim de quase 44 anos de poder, 17 de paz total, o MPLA só conseguiu trabalhar para que os poucos que têm milhões passassem a ter mais milhões, esquecendo os muitos milhões que têm pouco… ou nada, talvez seja preciso manter o regime do MPLA mais 57 anos no poder.
“Contudo, o país tem rumo e estamos no caminho certo, no sentido da satisfação progressiva das aspirações e dos anseios mais profundos do povo angolano”, disse João Lourenço.
Segundo João Lourenço, para que todos os angolanos beneficiem cada vez mais das riquezas do país, o MPLA tem como foco no seu programa de governação para os próximos cinco anos dar continuidade ao seu programa de combate à pobreza e à fome, bem como o aumento da qualidade de vida do povo.
Para a juventude, a franja da sociedade a quem o MPLA atribui “importância fundamental nos processos de transformação política e social de Angola”, João Lourenço disse que vai continuar “a contar cada vez mais com os jovens nas imensas tarefas do progresso e do desenvolvimento”.
Sobre a consolidação da democracia angolana, destacou a realização de eleições autárquicas, a permissão para posicionar o país “num movimento de verdadeira descentralização administrativa”.
“Com a instauração das autarquias, a administração estará mais próxima das populações, o que tornará mais fácil a percepção das suas necessidades e aspirações e também a sua satisfação”, realçou. Terá João Lourenço descoberto a pólvora? Ou está a fazer uma fuga para a frente, temendo ser julgado pelos angolanos, já que do julgamento da História (que o não preocupa) não escapara?
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