terça-feira, 30 de julho de 2019

Amnistia

Amnistia
No desfecho das últimas negociações entre a Renamo e o governo de Moçambique em 2014, aprovou-se uma lei de amnistia. Apesar de ter sido promovida pelo meu “ídolo”, estive contra e cheguei até a escrever um texto a apelar aos deputados para que não aprovassem essa lei. Na altura, o meu argumento principal era de que a lei documentava a falta de respeito pelas vítimas civis da irresponsabilidade política da Renamo. Chegeui a perguntar aos juristas – e não obtive resposta – se seria possível que grupos de cidadãos processassem a liderança da Renamo ou indivíduos a ela ligados que tivessem cometido crimes.
Volvidos 5 anos, lá estamos nós de novo a aprovar uma nova lei de amnistia, outra vez em clara falta de respeito pelo povo, outra vez compensando a irresponsabilidade política. O que piora as coisas desta feita é que essa lei é aprovada num momento em que aqueles que empunham armas não dão nenhum sinal de terem percebido a gravidade dos seus actos. Estão aí a ameaçar de morte o seu próprio líder e também a ameaçar o País com o recurso à violência para verem cumpridas as suas exigências. Isto é, corremos o risco de promulgar uma lei de amnistia – como da outra vez – que vai ficar obsoleta no dia seguinte porque será violada e será necessário voltar a amnistiar para acalmar os violentos. É uma lógica perversa que trivializa este tipo de instrumentos.
A única vantagem nisto, e que não é de menor importância, é que uma amnistia é sempre o reconhecimento de que se cometeram crimes. Dito doutro modo, a Renamo reconhece que cometeu crimes. Como pode aparecer um engraçadinho qualquer por aqui a falar de supostos crimes das Forças de Defesa e Segurança, apresso-me a dizer que vejo uma grande diferença. Os nossos agentes de defesa e segurança agiram – e agem – dentro dum quadro legal que torna legítimo o porte e uso de armas contra quem põem a segurança pública em causa. Isso não significa, porém, que elas possam fazer tudo o que quiserem nesse contexto. Há regras e se elas forem violadas, a lei tem que intervir.
Infelizmente, não há história disso no nosso País. Circulou um vídeo, por exemplo, mostrando soldados a agredir um suposto insurgente em Cabo Delgado, o que constitui uma grave violação de direitos humanos e da deontologia militar e policial que orienta o trabalho de quem tem o monopólio legítimo do uso de meios de violência. Esses casos precisam de ser investigados e os perpretadores precisam de ser trazidos à justiça para o bem da imagem do Estado, das Forças de Defesa e Segurança assim como para que a população não perca confiança.
Confesso ter sido apanhado de surpresa por esta lei. É sintomático de todo o processo negocial e da soberba do governo que não se falou disto – que eu saiba – e que uma coisa de tanto interesse para toda a sociedade tenha sido aprovada na calada da noite, praticamente, sem nenhuma discussão, sem nenhuma auscultação e ainda por cima por unanimidade! Para mim, isto não é prova de compromisso com a paz. É prova de imaturidade política e negocial. O Presidente Nyusi poderia ter usado a sociedade moçambicana como trunfo negocial. Submeter a lei de amnistia, por exemplo, à discussão pública poderia ter aumentado a pressão sobre a Renamo; mesmo informar o público sobre as negociações poderia ter dado ao governo mais força, pois as reticências que alguns de nós iríamos apresentar poderiam ser uma forma de pressão sobre os inimigos da paz. O resultado que vemos é tudo menos um sucesso.
À custa duma reforma precipitada do nosso ordenamento político e completamente vazia de sentido político, o governo de Moçambique negociou uma “paz” refém da incapacidade do seu interlocutor de meter ordem em sua própria casa. Tudo o que se faz agora é correr atrás do prejuízo criado pelo amadorismo. É grave. E o que mete medo nisto tudo é que a Renamo elegeu um mudo que, portanto, não fala, e ainda por cima não mostra as suas cartas. Só quer ser presidente da república remetido lá ao seu silêncio sepulcral.
Comentários
  • Celia Meneses Concordo com alguns pontos de vista. Está se a empurrar com a barriga, mas diálogos inteligentes pressupõem outros intervenientes!
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  • Celia Meneses Este é o sucesso que se pode obter destes interlocutores!
    • Elisio Macamo Celia, o problema não são só estes interlocutores. é a falta de respeito pelo povo que o governo evidencia. com mais respeito pelas pessoas, alargando o debate, consultando, teria ficado mais forte. há mais ou menos três anos que eu cá do meu cantinho percebo as divisões no seio da renamo. o que fazem os serviços de inteligência? não dava para explorar isso? o problema não é só a renamo, infelizmente.
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    • Celia Meneses Elisio Macamo mas achas que não estão a fazer nada? Será que isto tudo não tem a mão dos serviços ?
    • Elisio Macamo se isso for obra dos serviços, é irresponsável. não é isso que deviam fazer. não se resolve nada criando frankensteins...
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  • Miguel Mussequejua De facto, há alguma insolência.
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  • Celia Meneses Não sei não
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  • Dinis Chembene Última parte ate dava um bom titulo para um filme comigo: um mudo na ponta vermelha. Kkkk. As armas sempre foram a cartada segura da Renamo, em novembro estaremos a discutir quais províncias o governo deve ceder em troca de uma uma promessa de paz. Mas amnistias virão...
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  • Jaime Luis Jemuce Prof. A idéia que ficou evidente é que a nossa FDS, não comete crime, o que aos olhos de todos nós contrária com o vídeo que circulou dando contra das atrocidades cometidas pelas FDS. O reconhecimento do cometimento do crime por parte da Renamo, é mesmo para fechar o dossier DDR, para podermos ir às urnas no dia 15 camuflado de uma paz efetiva. Só me falta nas vésperas das eleições de 2024 dar amnistia os envolvidos das dívidas oculta, caso sejam condenado.
    • Elisio Macamo Jaime Luis Jemuce, não creio que tenha ficado essa ideia. a amnistia cobre, pelo que entendi, as fds, o que me parece um equívoco lógico. o reconhecimento não fecha, mas sim abre o dossier. não vejo a ligação entre este assunto e as dívidas ocultas, por isso tenho dificuldades em entender a analogia nesse caso.
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    • Elisio Macamo vou concordar contigo quando declarares o sistema de justiça supérfluo já que como cristãos temos que perdoar 77 vezes.
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  • Paulo Granjo Tenho ideia de que a amnistia (para ambos os lados) foi uma base essencial e imprescindível do acordo de 1992. E nem poderia ser de outra forma, após esses 16 anos. Também me pergunto - tendo em conta os hábitos adquiridos na história relativamente recente e as indicações acerca das ainda mais recentes reactualizações práticas desses hábitos - se haveria qualquer possibilidade de acordos sem novas amnistias, acerca de novas atrocidades de ambas as partes. Talvez (é só uma hipótese…) a questão seja trabalhar colectivamente para que situações exigindo novas amnistias não se venham a repetir. Pelo menos, é sempre esse o apelo que ouço, quando se conversa de guerra, da sua ausência ou de mais-ou-menos, com pessoas que não andam no microcosmos das redes sociais, nem sequer sabem o que isso é - ou seja, com pessoas que pertencem à esmagadoríssima maioria da população moçambicana.
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    • Elisio Macamo asseguro-lhe que também converso com essas pessoas e que as suas ideias, duma ou doutra maneira, estão representadas neste macrocosmo. não é necessariamente uma virtude não estar aqui presente. na entrevista que concedi ontem à rfi falei também duma comissão de verdade e reconciliação e disse que isso devia, talvez, ter acontecido em 1992. houve iniciativas de pequena escala e ao que tudo indica não houve um trabalho sério de tomar os seus resultados em conta na negociação de novos acordos de paz. e é justamente esta questão que tenho sempre levantado: a paz interessa à toda sociedade, por isso tem que haver formas de integrar a todos no processo negocial. a participação de todos é a melhor garantia do seu sucesso. o que acontece agora é que beligerantes matam-se uns aos outros e incluem a população nisso, e só negoceam entre si. o Paulo Granjo gostaria de saber que o governo de portugal negociou com um partido armado e fez passar uma lei de amnistia sem nenhum debate nem nas mídias, nem mesmo no parlamento? espero que não! e é isso que eu, e alguns outros, reclamamos. no ano passado andei pelos distritos de tete e ouvi pessoas a falarem sobre o conflito. há um alheamento preocupante que torna o estado cada vez mais distante das pessoas. em algum momento, o meu país tem que quebrar com esta cultura política de excluir as pessoas da discussão do que importa nas suas vidas. os caminhos sinuosos deste processo de paz mostram claramente que as pessoas nele envolvidas estão perplexas.
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    • Paulo Granjo Caro Elisio Macamo: temo que as amnistias se tenham, infelizmente, tornado actualmente uma condição imprescindível. Digo "infelizmente", porque (sobretudo quando repetidas)reforçam nos beligerantes a sensação de impunidade e de que a violência armada é uma forma "normal" de linguagem política.
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    • Paulo Granjo Mas concordo e aplaudo o que diz acerca da necessidade de que decisões fulcrais para a totalidade dos cidadãos sejam tomadas de forma participada e em diálogo com o país, superando a cultura política dominante, segundo a qual as lideranças das elites é que decidem e só elas estão habilitadas a decidir (cultura que, saliente-se, é partilhada pelos principais partidos, não sendo exclusiva daquele que sempre tem ocupado o poder).
    • Paulo Granjo Já quanto ao modelo das Comissões de Verdade e Reconciliação para superar traumas e culpas, temo que ele seja pouco compatível com o fortíssimo evitamento cultural de falar esmiuçadamente sobre coisas más. Mesmo nos rituais de limpeza (que foram importantíssimos para a reintegração social e reconciliação no sul do país - e muita falta fizeram nas outras regiões) se faz uma mímica sobre o que se passou na guerra, não se fala nem pode falar disso. Mas se, por imperativo cultural, não se deve falar dessas coisas, pode-se ouvir, pode-se assistir, pode-se comentar - sobretudo se as pessoas que falam estão fisicamente ausentes, como por exemplo num filme. Talvez essa "lacuna" no ethos e regras sociais pudesse ser explorada, para encontrar de forma participada uma solução. E talvez a academia possa lançar esse debate, envolvendo (sem arrogâncias e reconhecendo os conhecimentos dos concidadãos) os outros sectores da sociedade, a começar pelos especialistas rituais. Estarei sempre disponível para participar numa busca de soluções como essa - desde, claro está, que ela tenha no seu centro moçambicanos e não eu, estrangeiro.
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    • Elisio Macamo Paulo Granjo, quando falava do pouco que se aprendeu dessas tentativas referia-me justamente a isso, que é preciso ir ver o que foi feito e como tornar isso útil à reconciliação. na verdade, não é só a guerra dos 16 anos que precisa de ser trabalhada. tenho falado aqui das atrocidades cometidas pela frelimo revolucionária e da necessidade de a gente resolver esse período, mas são poucos os que alinham nisso. não é apenas uma questão cultural. é, em muitos casos, falta de decência.
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  • Lacerda Lipangue As vezes penso que vale ser mudo, do que abrir boca falar cada coisa pha! Ate segredo Ele tira fora, "Se Zambezia não resolve, Gaza vai resolver", tenho máxima certeza que era segredo la na Comissão Politica e o tipo, phaammm em público.
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  • Pascoal Nicurrabeda A amnistia significa perdao, deixa passar, esquece tudo que passou e tornem-se todos irmaos do mesmo país. Significa, vamo-nos para formarmos um só povo, uma só nação que tanto inspira o sabor do desenvolvimento e crescimento económico. Isso passa necessariamente num compromisso dos dirigentes na gestão dé todos impaces que tendem a perigar essa paz.
    Prof. Elisio Macamo, O líder da Renamo com o seu "silêncio" singular, acredito nao estar ainda em preparado para travar os seus homens que estao menos satisfeitos com a sua politica interna, mas essa crise interna poderá provocar uma outra desestabilidade politico-militar que ja nao serà interna. será para todo Moçambique.
    As provocações que TV Mira Mar, tem feito, acredito tambem nao ajudarem para a reconciliaçao nacional.
    O que a sociedade académica devera fazer na sua boa fé, seria um apelo ao PR no sentido de pegar o Volante nao como FRELIMO, mas como verdadeiro pai da naçao, como outrora fé-lo junto o malogrado Lider da Renamo.
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    • Elisio Macamo não, amnistia, nem mesmo no contexto cristão, significa isso. o perdão é um compromisso que o perdoado assume de se redimir, de se corrigir e de respeitar certos valores. não é o caso destas amnistias. a amnistia no nosso caso é a recompensa por violar valores, portanto, é a negação do próprio valor do perdão. e, não, o desafio não é colocar isto nas mãos do chefe do estado. não estamos numa monarquia. o desafio é o chefe de estado criar condições para que todos os moçambicanos sejam envolvidos neste processo, que as suas vozes sejam ouvidas, que as suas ideias sejam articuladas. ele pode depois tomar a decisão que quiser tomar, mas o sucesso de qualquer paz depende de levar o povo consigo. foi um desastre negociar às escondidas porque deixou-se enganar pelo malogrado líder que transformou a questão da paz num problema de acomodação da renamo. toda a dificuldade vem daí e tenho a certeza de que se o processo negocial tivesse sido mais inclusivo haveria maior força moral para disciplinar a renamo e a própria frelimo.
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  • Moises Celestino Matavele Matavele Se não estou em erro, depois do Acordo Geral de Roma, houve também uma aministia, perfazendo, portanto 3.
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  • Reginaldo Mutemba "Renamo elegeu mudo. E quer ser presidente da república" caso raro. Como um chefe de Estado pode trabalhar sendo mudo?
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  • Sebastiao Conceiçao O QUE VAO PENSAR OS INSURENTES DE CABO DELADO?
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