Liderança e deliberação
Há verdadeiros imbecis que assumiram o poder no mundo. Esse é o caso actual do Brasil, dos EUA e da Grã-Bretanha. Quem pensava que isso fosse prerrogativa de países onde os líderes se impõem pelo tamanho dos seus músculos já pode começar a mudar de ideias. Menos no Brasil, mas mais nos EUA e na Grã-Bretanha, existe um factor que torna a eleição de imbecis menos problemática: a força e estabilidade das instituições. Não é uma questão cultural. A passagem do tempo garantiu que essas instituições se consolidassem e pelo espírito deontológico interno tenham evoluído como obstáculos naturais à instrumentalização do poder por líderes que não reúnem condições para estarem onde estão.
A democracia encontra-se numa grande encruzilhada. O crescimento do populismo e da ciência popular está a transforma-la. Ela está a deixar, paulatinamente, de ser o governo pela maioria para ser o governo pela maioria imbecil. O perigo de subirem ao poder pessoas que falam para essa maioria, mas não necessariamente para a estabilidade normativa do país, é cada vez maior. Quem fica mais exposto a este perigo são os países onde a democracia se reduz, na prática, à escolha pela maioria e não se traduz num compromisso com a promoção de certos princípios basilares. Sem isso, mas com apenas a prerrogativa de coroar quem quer que seja que ganhe os votos dos muitos, é bem possível que a democracia se transforme num exercício de eleição de quem reúne as melhores condições para inviabilizar um país.
Este perigo é real no nosso País. Podemos, por decência, não dizer em voz alta que neste momento as opções que nos são apresentadas não representam de modo nenhum o que de melhor (ou menos mau) existe em Moz., mas essa é a verdade. O actual Presidente da República faz o seu melhor, mas já deu várias provas de não estar à altura do cargo. Se tivesse consciência das suas limitações (e alguma decência) não aceitava renovar o mandato. A Renamo, o MDM assim como as novas forças políticas também não nos oferecerem candidatos que sejam representativos da capacidade que existe no País. Estamos reféns de processos partidários que não estão suficientemente blindados contra a escolha da mediocridade num contexto em que não existem mecanismos institucionais suficientemente fortes para limitar os possíveis estragos que esses indivíduos possam causar. Temos que repensar certas coisas. É sério.
Uma maneira de repensar as coisas é a redefinição do conceito de liderança e de democracia. Liderança não seria o conjunto de propriedades que atribuímos a um indivíduo, mas sim a qualidade dos processos decisores que controlam o exercício de poder por parte do indivíduo que ocupa a posição de liderança. Ele ou ela podem ser medíocres, mas actuando dentro dum contexto institucional funcional, pode se garantir que a sua mediocridade não seja em detrimento do País.
Não é fácil em Moz onde há enormes dificuldades em falar política sem que se procure a todo o custo exagerar as qualidades do líder. Nyusi não é o primeiro. Todos os outros foram objecto deste tipo de adulação que corrompe. O problema é que desta vez temos alguém que tem dificuldades óbvias e cuja adulação serve apenas para o impedir de se concentrar naquilo que ele, apesar de tudo, sabe fazer bem. Vi um discurso dele na Zambézia e achei fascinante a maneira como ele interagia com a multidão. Já ouvi de várias pessoas que ele é uma pessoa afável. Dum modo geral, ele tem acertado na composição do governo, portanto, não é mau de todo. Só que não é suficiente. Falta-lhe visão de Estado, falta-lhe sentido estratégico, falta-lhe sensibilidade para o que é fundamental e o que é supérfluo. É difícil imaginar o País, na fase em que se encontra, a andar bem com uma pessoa assim livre de qualquer constrangimento institucional.
A democracia, também, tem que ser muito mais do que a eleição livre. Para o bem de Moz precisamos dum conceito de democracia que vai para além da forma e integra também o processo. O problema é que neste momento existe a forte percepção de que a eleição confere a quem ganha a prerrogativa de fazer aquilo que quiser desde que esteja em conformidade com a lei. Não me parece boa ideia. Nós precisamos duma reforma dos partidos que faça com que eles sejam as primeiras instâncias democráticas. Isto significa que eles têm que ter processos internos claros de deliberação de modo a garantir que se tomem decisões com sentido. A Frelimo é mestre na intransparência, algo que se nota na forma como depois se espera que os militantes aplaudam tudo a todo o custo. Ela produziu um slogan eleitoral medíocre, mas vejo pessoas que noutras circunstâncias são lúcidas a aplaudir aquilo. A questão de momento não é a “unidade” (do país ou do partido), mas sim a criação de bases institucionais para um melhor aproveitamento das oportunidades que se nos abrem. O discurso da unidade esteve sempre na base da nossa incultura política e quanto mais cedo o abandonarmos, melhor será para o País.
Precisamos também da institucionalização da deliberação enquanto processo de reflexão sobre o que é melhor para todos nós. Existe capacidade técnica no governo e no Estado, mas existe ainda mais fora. Não faz sentido que decisões de grande peso sejam tomadas apenas pelo Governo. Devia ser possível criar mecanismos que envolvam a composição de equipas alargadas (com a inclusão de outros partidos) para discutirem planos específicos do governo (como, por exemplo, a exploração de recursos ou a criação dum fundo soberano). Isto devia acontecer a todos os níveis. Devíamos também instituir a prática de inquéritos liderados por pessoas de reconhecido mérito político ou técnico. Há, sobretudo, muito juiz reformado que poderia fazer esse trabalho tão importante. Não se explica, por exemplo, que não tenha havido um inquérito depois do Idai e antes da criação do Fundo. É irresponsável!
O modelo tradicional de confiar no Parlamento para isto, infelizmente, não serve. Nem toda a gente que vai ao Parlamento é técnica e politicamente qualificada. Uma boa parte consiste de oportunistas que o nosso sistema político encoraja e promove. O exemplo claro da falta que tais mecanismos fazem é o chamado processo de paz que, na sua morfologia, teve muitos dos condimentos que as dívidas ocultas tiveram: fez-se tudo de forma intransparente com benefícios individuais e hoje quem paga a factura é o povo...
O assunto é sério. O discurso político encorajado por uma concepção tradicional de democracia não nos faz bem. Vamos continuar a insistir na eliminação da pobreza, na construção de unidades sanitárias, etc., mas o desafio não é esse. O desafio é outro e consiste num trabalho sério de criação de bases para que a luta contra a pobreza e pelo bem-estar seja empreendida com sucesso. Esse é o verdadeiro desafio político que o País hoje enfrenta. Na verdade, este é para mim o principal critério para determinar se alguém, ou um partido, vale à pena: que projecto institucional tem? Se todo o seu discurso se reduz à eliminação da pobreza, etc., então é para esquecer porque isso é coisa de ONG.
Isto exige também mudanças na atitude de muitos de nós. Aplaudir as coisas pelos resultados, intenções ou militância faz mal ao País. Pensar também que quem não pensa como nós é contra o País, etc. também faz mal. É muita coisa que está em jogo. Pode ser que muita gente seja mais crítica no interior dos seus partidos, algo que duvido, mas chega a ser criminoso ouvir pessoas com algum senso aplaudirem coisas ou pessoas medíocres. Isso é abdicar da sua responsabilidade para com o País. Moz precisa de nós, mais do que nunca!
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