Fazer política
Uma das vantagens de ser cientista social é de não ser necessário ser alguma coisa para poder dissertar sobre essa coisa. Não preciso de ser político – no sentido profissional do termo – para falar sobre como fazer política. Falar sobre isso também não significa dizer como deve ser, mas sim descrever a forma ideal que essa área profissional assume. Tenho vindo a observar a forma como se faz política no nosso País. Há uma coisa que tem chamado muito a minha atenção. É a tendência de definir os fins pelo seu lado material em detrimento dos princípios que a sua prossecução iria ajudar a promover e salvaguardar. Eu explico.
Num País onde a situação económica não permite a satisfação das necessidades básicas das pessoas a única maneira que a política encontra de se legitimar consiste em prometer acabar com a fome, nudez, falta de habitação, etc. Mas a falta dessas coisas não é o verdadeiro problema desse País. O que faz com que numa situação económica precária certas pessoas sejam vulneráveis a esses males, o que impede que certas pessoas garantam a sua sobrevivência, o que condena certas pessoas à pobreza, etc. é que é o verdadeiro problema. É isso que a política deve definir como problema e desenhar políticas para o resolver. Dito doutro modo, há um nível mais ético que permite definir a política. A desigualidade social, por exemplo, a falta de espírito empreendedor, por exemplo, a falta de oportunidades, etc., etc. Política faz-se a esse nível e quando é assim é mais coerente e permite um melhor debate público.
No nosso País é gritante a ausência deste tipo de entendimento. E este não é um problema apenas dos políticos. É também duma boa parte da nossa classe intelectual. Só houve um momento na nossa história em que se fazia “bem” política, mas como ainda vou tentar mostrar, com consequências desastrosas. Foi no período “revolucionário”. Naquela altura entendia-se a fome, a nudez, a doença e outros males sociais como sendo o resultado da natureza desumana do sistema económico. Era necessário alterar esse sistema económico, o que implicava uma transformação radical do sistema político depositando toda a confiança na presciência de dirigentes iluminados pelo socialismo científico. Isso tornou a actuação dos governos de então extremamente coerente. O problema é que as práticas necessariamente autoritárias (e totalitárias) do Marxismo são em última análise hostis à dignidade humana. A pessoa passa a ser um meio, não um fim em si. Em nome da “revolução” pode se sacrificar vidas humanas para “salvar” vidas humanas. Só as vidas humanas que interessam à revolução é que contam.
Por esta razão, fico sempre arrepiado quando leio intelectuais moçambicanos a glorificar o compromisso da primeira República com a justiça social. Onde não se respeita a dignidade humana, isto é, onde a pessoa é definida como um meio para um certo fim (político) não podemos realmente falar de compromisso com justiça social. Isto não implica que precisemos de ser cínicos em relação às motivações dos fazedores da primeira República. As suas intenções eram boas e genuínas, só que escolheram a pior maneira de as pôr em prática. A opção que eles escolheram comprometeu o projecto nacionalista. Mesma coisa com a Renamo, por exemplo. Podemos partir do princípio de que ela “lutou” pela democracia (que não é verdade, claro, mas é só para exemplificar), mas a maneira que ela escolheu para fazer isso, portanto, não só enveredar pela violência como também optar pelo tipo de violência que praticou minou o tal compromisso com a democracia. E isso continuou até pelo menos a morte do seu líder que no seu modo de fazer política as pessoas eram apenas meios, nunca fins em si mesmo.
Guebuza – o lesa-pátria mor – pareceu-me ter entendido isto, embora ao que tudo indica lhe tenham faltado recursos intelectuais (sobretudo ao seu redor) para operacionalizar melhor as suas ideias. Quando ele falava da pobreza que está nas mentes e na necessidade de empreendedorismo, os seus críticos riam-se, mas aquilo revelava a sua astúcia política. Não é que a pobreza, a fome, a nudez, etc. não o incomodassem. Só que ele achava, creio, que era a partir da promoção do que ele chamava de “auto-estima” e “empreendedorismo” que se podia combater esses males. A gente não precisa de concordar com esse diagnóstico (eu nunca concordei, apesar de ser fã) para apreciar a sua utilidade. Essa utilidade situa-se a vários níveis. O primeiro é o de saber que tipo de instituições devem ser criadas para promover essa auto-estima e o espírito do empreendedorismo. Criou-as? Funcionaram? Por exemplo, os “7 milhões” podem ser vistos nesse prisma. Para devolver a “auto-estima” e criar o “espírito do empreendedorismo” é preciso dar autonomia financeira aos distritos para definirem eles próprios as suas prioridades. O segundo nível, portanto, é o de que essa maneira de fazer política permite que o debate na esfera pública seja “constructivo”. Não se debate no escuro. O terceiro nível é que a gente pode interpelar quando vê que certas coisas não se coadunam com o diagnóstico, por exemplo, a excessiva concentração de poderes no Presidente. Não faria sentido diminuir estes poderes (escrevi um texto sobre isto a desafiar Guebuza a imaginar o seu pior inimigo com o tipo de poderes que ele próprio tinha) e pensar na descentralização? E há de certeza outros níveis.
Mas o essencial é que dum modo geral não se faz bem política no nosso País. Os últimos anos foram sintomáticos a esse respeito. Definiu-se a luta contra a corrupção – não a promoção da integridade – como o fim a perseguir; definiu-se a acomodação da Renamo – não a descentralização ou promoção de eleições justas – como o fim a perseguir; definiu-se a luta contra os insurgentes em Cabo Delgado – não a redefinição do conceito de segurança pública – como o fim a perseguir. Mesmo agora, na ressaca do Idai, define-se a “reconstrucção” e até se criou um gabinete para esse efeito – não o reforço da capacidade local de lidar com desafios desta natureza – como o fim a perseguir. O assistencialismo que domina a abordagem dos efeitos do Idai é arrepiante.
Agora, o que complica tudo é que do lado de fora da classe política, isto é na esfera pública, reina a perplexidade. À excepção de alguns gatos marxistas pingandos que continuam a pensar o País de forma coerente nessa perspectiva, muita gente que participa no debate público – e até faz da análise política seu ganha-pão – faz uma mistura intragável de registos ideológicos que as torna incoerentes. Usa vocabulário de esquerda para promover posturas de direita, ou vice-versa, numa incongruência que revela a verdadeira tragédia do modo de fazer política no País. Você procura naqueles que dizem lutar contra a corrupção, contra casamentos prematuros, contra a expropriação das comunidades, etc. alguma postura política coerente e você não a encontra porque as mesmas pessoas, quando falam de outras coisas, assumem posições contraditórias. Por exemplo, você pensa que quem luta contra a corrupção é pela integridade pública e, por isso, pela promoção da dignidade humana, mas depois você vai encontrar essa pessoa numa esquina qualquer de debate a glorificar políticos autoritários que pouco ou nada têm a ver com a promoção da dignidade humana. Muito pseudo-democrata entre nós não viu nenhum problema em que um indivíduo que dizia lutar pela democracia violasse a constituição para fazer isso dentro dum regime que para todos os efeitos é democrático...
A esfera pública pode contribuir para uma maior sanidade no modo de fazer política. Cada um de nós precisa de fazer um exercício de introspecção e perguntar-se que princípios enformam a sua indignação e de que maneira os problemas que a política deve resolver comprometem esses princípios. Zangar por zangar é imbecil. Ser “democrata” não é postura política; ser contra a “Frelimo” também não; ser a favor dos mais pobres, querer o bem-estar de todos, etc. também é completamente imbecil como postura política. Na verdade, assim que aparece alguém a dizer que quer acabar com a fome, corrupção, etc. desligo...
N.b. Dedico o texto ao Ricardo Santos pelo seu aniversário natalício. Temos posturas políticas diferentes (eu não gosto de barbudos), mas reencontramo-nos no nosso patriotismo.
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