Ilustração: João Brizzi e Rodrigo Bento/The Intercept Brasil; Marcos Bizzotto/AGIF via AP
As mensagens secretas da Lava Jato
Parte 12
Coordenador da operação também fez aproximação entre representantes da firma e procuradores para emplacar produto da companhia em trabalhos da força-tarefa.
Oprocurador Deltan Dallagnol foi pago para dar uma palestra para uma empresa investigada por corrupção pela Lava Jato, operação que ele comanda em Curitiba. Dallagnol recebeu R$ 33 mil da Neoway, uma companhia de tecnologia, quando ela já estava citada numa delação que tem como personagem central Cândido Vaccarezza, ex-líder de governos petistas na Câmara que foi preso em 2017, e em negociatas na BR Distribuidora, subsidiária da Petrobras privatizada na terça-feira.
Não ficou só na palestra, realizada em março de 2018. Deltan também aproximou a Neoway de outros procuradores com a intenção de comprar produtos para uso da Lava Jato. Ele chegou a gravar um vídeo para a empresa, enaltecendo o uso de produtos de tecnologia em investigações – a Neoway vende softwares de análise de dados.
Quando finalmente percebeu que havia recebido dinheiro e feito propaganda grátis para uma empresa investigada pela operação que comanda no Paraná, o procurador confessou a colegas: “Isso é um pepino para mim”. Mas só escreveu à corregedoria do Ministério Público Federal para prestar “informações sobre declaração de suspeição por motivo de foro íntimo” quase um ano depois, quando o processo foi desmembrado no STF e uma parte foi remetida à Lava Jato de Curitiba.
Os diálogos fazem parte de um pacote de mensagens que o Interceptcomeçou a revelar em 9 de junho na série #VazaJato. Os arquivos reúnem chats, fotos, áudios e documentos de procuradores da Lava Jato compartilhados em vários grupos e chats privados do aplicativo Telegram. A declaração conjunta dos editores do The Intercept e do Intercept Brasil (clique para ler o texto completo) explica os critérios editoriais usados para publicar esses materiais.
‘PODEMOS IR PRA CIMA EM CWB?’
A PRIMEIRA CITAÇÃO à Neoway nos chats secretos da Lava Jato aconteceu dois anos antes da palestra de Deltan, em 22 de março de 2016, em um grupo no Telegram chamado Acordo Jorge Luz. O grupo fora criado para que os procuradores da Lava Jato discutissem os termos de delação de Jorge Antonio da Silva Luz, um operador do MDB que tentava negociar uma delação com a força-tarefa. Dallagnol participava ativamente do grupo.
Naquele dia, o procurador Paulo Galvão mandou um documento que trazia a primeira versão do que viria a ser o depoimento de Luz sobre diversas empresas, entre elas a Neoway. No documento, o candidato a delator narrava: “Lembro-me ainda de um projeto de tecnologia para Petrobras com a empresa Neoway que recorri ao Vandere Vaccarezzapara me ajudarem agendando uma reunião na BR Distribuidora. Houve esta reunião e recebi valores por esta apresentação e destas repassei parte para eles. Posteriormente a tecnologia foi contratada sem minha interferência ou dos deputados”.
Deltan já estava no grupo quando os documentos foram enviados. Foi ele quem enviou os primeiros depoimentos prestados por Luz, que haviam sido rejeitados anteriormente e ajudariam a embasar uma nova rodada de negociações.
O coordenador da Lava Jato voltou a se manifestar no chat em 6 de julho de 2016. “Caros, confirmam que negociações com Luz foram encerradas? Se é isso mesmo, alguém disse para o Luz que as negociações foram encerradas? Isso precisa ficar bem claro com os advs antes de retomarmos ações. Podemos ir pra cima em CWB?”, disse.
Meses depois, em 24 de abril de 2017, no mesmo grupo do Telegram, Galvão enviou um novo documento, que continha novas delações da proposta de colaboração do lobista. O arquivo, intitulado “Novos anexos e complementações.docx”, segundo os metadadosfoi escrito pelos advogados de Luz. O documento trazia detalhes inéditos sobre negócios envolvendo a Neoway em um esquema de corrupção.
Neles, Jorge Luz afirmava: “Paguei ao Vaccarezza para arrumar o negócio. Não me recordo o ano, mas será fácil verificar pela conferência de dados financeiros acessíveis a época que checarmos nossa contabilidade, uma vez que tudo relativo a Neoway foi feito com contratos executados no Brasil por empresas brasileiras, mas creio que seja por volta do ano de 2011/2012”.
Em abril de 2019, o ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin determinou que os trechos da delação de Luz relativos à Neoway dessem origem a um processo específico na corte superior. Ele está sob sigilo, mas estava anexado às conversas obtidas pelo Intercept e pode ser lido aqui.
‘ISSO É UM PEPINO PRA MIM’
Aparentemente, Deltan e seus colegas de Curitiba se esqueceram da investigação sobre a Neoway quando, em 5 de março de 2018, o chefe da força-tarefa foi contratado para fazer a palestra para a empresa e comemorou enviando uma mensagem no grupo Incendiários ROJ, que reunia procuradores da Lava Jato. O procurador demonstrou entusiasmo e mencionou o dono da firma, Jaime de Paula – que também é citado pelo delator Jorge Luz.
“Olhem que legal. Sexta vou dar palestra para a Neoway, do Jaime de Paula. Vejam a história dele: https://endeavor.org.br/empreendedores-endeavor/jaime-de-paula/. A neoway é empresa de soluções de big data que atende 500 grandes empresas, incluindo grandes bancos etc.”
O procurador da República Júlio Noronha, também integrante da Lava Jato, então sugeriu que Deltan buscasse marcar uma reunião com o dono da Neoway para tratar de produtos para um projeto da Procuradoria chamado de Laboratório de Investigação Anticorrupção, o LInA. “Top Delta!!! De repente, se conseguir um espaço para conversarmos com ele e tentarmos algo para trazer uma solução para agregar ao LInA, seria massa tb!”, disse Noronha.
Deltan concordou e afirmou que iria procurar agradar o empresário. “Exatamente. Isso em que estava no meu plano. Vou até citar ele na palestra pra ver se sensibilizo kkkk”.
Deltan descobriu que a Neoway era investigada em julho de 2018. Mas só avisou a corregedoria em junho de 2019.
Quatro dias depois, Deltan fez a palestra para a Neoway num evento chamado Data Driven Business, realizado no Costão do Santinho, um badalado – e caro – resort em Florianópolis. A estratégia traçada por ele funcionou: no fim daquela mesma noite, ele procurou os colegas noutro grupo, chamado LInA – Coordenação, para marcar a reunião com os representantes da empresa. “Caros podem receber a Neoway de bigdata na segunda para apresentar os produtos???? Ou quarta?”
O procurador afirmou que a companhia cogitava fornecer produtos gratuitamente. “Como fiz um contato bom aqui valeria estar junto. Eles estão considerando fazer de graça. O MP-MG está contratando com inexigibilidade”.
Houve impasse quanto à data da reunião, e Deltan disse que eles deveriam ser rápidos para não perder a oportunidade. “Minha única preocupação é perdermos o timing da boa vontade deles rs. Mas entendo. Marcamos dia 20 então?” Noronha concordou e emendou: “Kkkk a gente ganha eles de novo qdo encontrarmos!”
Os diálogos e documentos analisados pelo Intercept e pela Folha de S.Paulo indicam que a reunião foi realizada, e a ideia de integrar a Neoway ao projeto de sistema de dados da Procuradoria ganhou força internamente.
Foi só quatro meses após ter vendido sua palestra para a Neoway – e já em meio às negociações para a aquisição de produtos da empresa – que Deltan abriu o Telegram e disse aos procuradores que havia descoberto a citação à empresa na colaboração premiada do lobista Jorge Luz apenas naquele momento. “Isso é um pepino pra mim”, afirmou, então. Era 21 de julho de 2018.
Apesar disso, foi só em 4 de junho de 2019 – quase 11 meses depois – que Dallagnol enviou um ofício ao corregedor do Ministério Público Federal, Oswaldo José Barbosa Silva. Nele, confessava que em 3 de março de 2018 (ou seja, havia um ano e três meses) “participei de congresso anual da empresa Neoway, que oferece solucções de bancos de dados e softwares, inclusive para fins de compliance e investigações internas, realizando palestra remunerada por valor de mercado, sobre combate à corrupção e ética nos negócios”.
“Na data da palestra, a empresa não era investigada no âmbito desta força-tarefa da Lava Jato e eu desconhecia que a empresa seria mencionada no futuro em colaboração premiada a qual seria firmada pela procuradoria-geral da República, em Brasília. No sistema que contém informações sobre delações da Lava Jato e em sua base de dados, não constava qualquer menção à existência de delação ou investigação sobre a empresa que pudesse indicar a existência de potencial conflito de interesses”, prosseguiu Deltan.
Mas a Neoway já havia aparecido em documentos oficiais em duas ocasiões. A primeira vez foi no rascunho da proposta de delação de Luz, cujo documento foi criado em março de 2016, de acordo com os metadados. A segunda noutro documento, criado em abril de 2017, que continha novos depoimentos do lobista. Ambos foram enviados ao grupo de Telegram do qual Dallagnol fazia parte. Além disso, convenientemente o procurador deixou de mencionar ao corregedor que nos grupos de Telegram, que não eram uma ferramenta oficial do MPF, ela apareceu pela primeira vez em 22 de março de 2016 – ou seja, quase dois anos antes da palestra. Há ainda outro intervalo de tempo que vale a pena notarmos: Deltan enviou sua confissão voluntária à corregedoria apenas cinco dias antes do Intercept começar a publicar as reportagens sobre os chats da Lava Jato no Telegram, em 9 de junho passado. Na declaração editorialpublicada naquele mesmo dia, dissemos que trabalhávamos com o material havia diversas semanas.
21 de julho de 2018 – Chat privado
Deltan Dallagnol – 11:04:20 – Qto isso é ruim? Legalmente não vejo qualquer problema, mas já estou sofrendo por antecipação com as críticas.
Dallagnol – 11:04:20 – Dando uma passada de olhos nos anexos do Luz, vejam o que achei
Dallagnol – 11:04:20 – (pdf ou link perdido)
Dallagnol – 11:04:20 – Empresa de TI que veio apresentar produtos de TI para LJ
Dallagnol – 11:04:20 – Isso é um pepino pra mim. É uma brecha que pode ser usada para me atacar (e a LJ), porque dei palestra remunerada para a Neoway, que vende tecnologia para compliance e due diligence, jamais imaginando que poderia aparecer ou estaria em alguma delação sendo negociada. Quero conversar com Vcs na segunda para ver o que fazer, acho que é o caso de me declarar suspeito e não sei até que ponto isso afeta o trabalho de todos (prov tem que ser redistribuído para colega da PRPR e dai designar todos menos eu para assinar). Pensando rapidamente o que provavelmente poderia fazer
ou informar: -Não tinha conhecimento, não participei da negociação -assim que tomei, me declarei suspeito e me afastei -a palestra remunerada é autorizada pelo CNMP e se deu em contexto de mercado (lançamento de produto de compliance) e por valor de mercado -já recusei palestra por conflito de interesses, mas nesse caso não foi identificado -como voltará à baila a questão das palestras, a maior parte das palestras é gratuita e grande parte do valor é doado
‘DELTA NAO QUER. . . PROBLEMA DA NEOWAY’
Em agosto de 2018, os procuradores iniciaram a conversa sobre quem iria trabalhar nos casos relativos a Jorge Luz e a Neoway voltou à tona quando o procurador Paulo Galvão indagou aos colegas: “vcs nao preferem ficar de fora do luz [processos de Jorge Luz]?”
Laura Tessler, então, sugeriu que todos os procuradores da equipe entrassem no caso, mas Galvão lembrou do episódio da palestra de Deltan. “Delta nao quer… problema da neoway, laurinha”, disse Galvão à colega.
Em seguida, Deltan mostrou estar incomodado com a situação. “Quero distância rs Acho que Robito e Júlio tb não queriam”, postou o procurador. Por fim, a procuradora Jerusa Viecili indicou os nomes de apenas sete procuradores para trabalhar nos processos de Luz e arrematou: “Melhor deixar fora quem teve contato com a neoway”.
O vídeo gravado por Deltan à pedido da Neoway no evento da empresa em março de 2018 – no qual o procurador discorreu sobre a importância do uso de sistemas de dados em investigações – também gerou debate nos chats.
“A tecnologia é essencial para nós podermos avançar contra a corrupção em investigações como a Lava Jato, por exemplo. Hoje, nós lidamos com uma imensa massa de dados, uma imensa massa de dados em investigações, uma imensa massa de dados que podem ser usados para avaliar potenciais fornecedores ou clientes, e fazer due diligence. Isso nos faz precisar, se nós queremos investigar melhor, tanto no âmbito público como no privado, a usar sistemas de big data”, disse Deltan no vídeo.
Na semana seguinte ao evento, ele recebeu a gravação feita pela empresa e pediu que um assessor de imprensa da Procuradoria avaliasse sua fala. A ele, o procurador se disse preocupado em parecer um garoto-propaganda da Neoway, apesar de não ter citado a empresa expressamente no vídeo.
“Fiquei um pouco preocupado porque ficou parecendo que estou vendendo os produtos deles rsrsrs, mas não foi proposital. Dei respostas sinceras às perguntas, mas encaixa perfeitamente com o que eles vendem, que é sistemas de big data rs”, disse Deltan. O assessor da Procuradoria não fez críticas ao conteúdo do vídeo, publicado na página da Neoway no Youtube.
OUTRO LADO
Segundo os artigos 104 e 258 do Código de Processo Penal e o artigo 145 do Código de Processo Civil, procuradores, assim como os juízes, devem se declarar suspeitos e se afastar de processos em que sua atuação pode ser questionada – como ter tido contrato de trabalho ou relação de parentesco com alguma das partes. A declaração de suspeição deve ser registrada no processo.
Como o inquérito 5028472-59.2019.4.04.7000, que envolve o caso da Neoway em Curitiba, é sigiloso, não foi possível apurar se Deltan e outros procuradores de fato registraram suas suspeições no caso.
Deltan Dallagnol pediu um prazo adicional de 24 horas para responder aos fatos apresentados nesta reportagem – ela estava programada para ser publicada ontem, quinta-feira –, se comprometendo a falar com os repórteres. Nós aceitamos o pedido dele. Em seguida, ele mudou de ideia e se recusou a conversar com os profissionais do Intercept, aceitando apenas responder às perguntas da Folha. A declaração a seguir, assim, foi feita ao repórter Flávio Ferreira.
“Não reconheço a autenticidade e a integridade dessas mensagens, mas o que posso afirmar, e é fato, é que eu participava de centenas de grupos de mensagens, assim como estou incluído em mais [de] mil processos da Lava Jato. Esse fato não me faz conhecer o teor de cada um desses processos. Se, por acaso, por hipótese, eu tivesse feito parte [do grupo no qual a Neoway apareceu em documentos], certamente não tomei conhecimento. Se soubesse não teria feito, e, sabendo, me afastei”, disse.
Nós também procuramos a Neoway. Em nota, a empresa confirmou que presta serviços para a BR Distribuidora. Os contratos foram firmados em janeiro de 2012, novembro de 2014, março de 2017 e março de 2019 – este último ainda está vigente, com duração até março de 2020, no valor de R$ 3.385.140, e foi fechado com inexigibilidade de licitação.
Ainda em nota, a Neoway diz que a contratação de Dallagnol para a palestra realizada em março de 2018 “foi remunerada em valores compatíveis com o mercado para atividades dessa natureza, com total observância às leis”. A empresa também informa que não prestou serviços para o projeto LInA, do MPF, e para o MP-MG, e “desconhece a menção a seu nome em depoimentos de terceiros”.
A defesa do ex-deputado Cândido Vaccarezza informou que Jorge Luz mente a seu respeito, e que ele “nunca sugeriu, pediu, aceitou, recebeu ou autorizou quem quer que seja a receber em seu nome vantagem, pagamento, benefício ou dinheiro de forma ilícita”. Vander Loubet disse que “desconhece os termos” em que foi citado e que “suas relações sempre foram institucionais”.
A defesa de Jorge e Bruno Luz “assevera que seus clientes estão à disposição das autoridades públicas para prestar todos os esclarecimentos, no momento oportuno e nos autos dos eventuais processos”.
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As mensagens secretas da Lava Jato
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Foto: Pedro Borges/The Intercept Brasil
EU QUEBREI O CICLO: ‘DESCOBRI NUM TESTE DE DNA QUE O SANGUE DERRAMADO NO PASSADO CORRE PELAS MINHAS VEIAS’
A MAIORIA DAS PESSOAS NEGRAS no Brasil não conhece suas origens. É comum um neto não conhecer quem são seus antepassados para além dos avós. Desconhecem de onde vieram, como chegaram ao Brasil e as dificuldades enfrentadas, invariavelmente as mais terríveis possíveis.
A falta de recordações do passado está ligada ao modo como essas famílias chegaram ao Brasil. “Negros não vieram como família, mas como coisa. Eram objeto, mercadoria”, explica o advogado Silvio de Almeida, autor do livro “O que é racismo estrutural”, em entrevista ao Intercept.
Conhecer suas origens é ainda um direito para poucos. Para a aluna de Saúde Pública da USP Franciele Nascimento, não conhecer sua história era normal. “Quando eu estudava sobre escravidão na escola, tudo me parecia muito distante. Eu mal conseguia perceber que fazia parte daquilo. Era assim e pronto. Eu não me questionava sobre isso. Nem meus pais”, disse.
A convite do Intercept, Franciele fez um teste de DNA para, finalmente, conhecer sua história. Aos 21 anos, ela sabia muito pouco sobre o passado da família e escrever sua própria história tinha um peso diferente, que até então ela não entendia por quê. Parte das respostas que Francielle sequer sabia que procurava chegaram ao abrir um envelope com o resultado do exame no final do ano passado. A seguir, ela conta como o impacto da revelação na sua vida.
Fotos: Pedro Borges/The Intercept Brasil
Em dezembro de 2018, recebi num enorme envelope o resultado do teste de DNA que mapeou a minha ancestralidade. Eu estava ansiosa e curiosa. Abri com cuidado e, dentro, encontrei uma série de textos e mapas sobre a minha origem materna. A análise genética informou algo que eu desconhecia: eu era descendente de um povo – o povo Mende, que hoje vive em Serra Leoa.
“Prezada Srta. Nascimento,É com grande prazer que informamos que nossa análise Matriclan identificou sua ancestralidade genética materna. Analisando a sequência Mitocondrial (mtDNA) de seu DNA, nós conseguimos determinar que você compartilha ancestralidade maternal genética com o povo Mende, hoje em Serra Leoa.”
Fiquei surpresa com a existência de uma tecnologia para a gente saber de onde veio. Fazer o exame de DNA ancestral mudou a perspectiva que eu tinha de mim como uma pessoa no mundo e como eu pensava a história do meu núcleo familiar. O teste materializou a minha origem africana, especificou o povo que faço parte e concretizou a informação de que sou descendente de pessoas que foram escravizadas. Fico pensando no processo doloroso, brutal, da trazida dos negros para o Brasil e o desenrolar até chegar a mim. Em como a escravidão impactou negativamente a vida das gerações seguintes.
É curioso, mas quando eu estudava sobre escravidão na escola, tudo me parecia muito distante. Eu mal conseguia perceber que fazia parte daquilo. Eu já tinha pensado sobre os meus antepassados, mas sabia muito pouco sobre o passado da minha família e aceitava não saber sobre nossa história. Era assim e pronto. Eu não me questionava sobre isso. Nem meus pais.
Escrever para o Intercept sobre essa experiência do teste e sobre a minha vida era o gancho que faltava para reunir a minha família e perguntar sobre a vida deles, suas origens, remexer o passado. Mas não foi fácil.
Eu estava animada em ouvir tudo, mas, no início, acabei me sentindo mal, impotente. Tocar no assunto deixava os meus familiares tristes e desconfortáveis. E me fez mal perceber que eu nunca soube a história da minha família.
Acredito que meus pais não falem do passado por questões sentimentais e pelas dificuldades vividas. E também pelo simples fato de conhecerem muito pouco sobre suas origens. Eles, como eu, descobriram que nossa história começou em Serra Leoa.
Minha avó Hilda, mãe do meu pai, foi a única ligação que eu tive com meus antepassados. Quando nasci, meu avô por parte de pai já havia falecido, assim como os pais da minha mãe.
Vó Hilda sempre foi muito calada e tinha dificuldade em demonstrar sentimentos. Em 2018, ela veio morar com a gente. Isso foi muito bom porque parecia a chance de saber um pouco mais sobre as minhas raízes. Mas ela, assim como meus pais, quase não falou sobre o passado.
Não tive tempo de saber muito porque minha avó, que já andava debilitada, faleceu em janeiro de 2019. A impressão que eu tive é de que ela queria deixar o passado no passado. Foi um período doloroso que ela preferiu não detalhar.
Nas conversas com a minha avó, ela não deixava claro se era descendente de escravizados, mas, acredito, era por falta de informação mesmo. O que eu sei é que ela não teve acesso à educação formal, à saúde, à qualquer plataforma cultural. Minha avó não conseguiu ter acesso nem aos bens do marido falecido, tudo lhe foi tirado. Meu avô se mudou para Rondônia e contou ter terras por lá. Mas não conseguimos sequer ir quando ele morreu porque não tínhamos dinheiro. Suas terras ficaram para o estado.
Meu pai nasceu em São João Evangelista, Minas Gerais, numa família que tinha casos de bebida e abandono. A minha avó Hilda criou os cinco filhos sozinha. Meu pai trabalhou na roça até completar 22 anos e veio para São Paulo, em 1988, tentar algo melhor em Campinas. Chegando aqui conseguiu um emprego na construção civil.
Ninguém nunca me falou sobre universidades públicas, nem quais os caminhos e alternativas eu teria para chegar lá.
Minha mãe nasceu no interior de São Paulo, numa cidade chamada Castilho. Depois foi para Cosmópolis, ainda no interior e, já adulta, para Campinas. O pai da minha mãe, meu avô, tinha problemas mentais e, para lidar com isso, a minha avó bebia. Não passou muito tempo, meu avô morreu e uma história semelhante a do meu pai surgiu: a minha avó criou minha mãe e mais dois filhos sozinha. Minha mãe era empregada doméstica. Meus pais trabalharam (e ainda trabalham) muito.
Meus pais se conheceram em 1989, em uma pracinha perto da rodoviária de Campinas. Eles foram apresentados, gostaram um do outro e nunca mais se separaram. Em 1993, eles se casaram e foram morar num terreno invadido na Vila Independência (hoje, Vila Sete de Setembro). Meu pai tinha 25 anos e minha mãe tinha 30.
Depois de alguns anos, conseguiram comprar um terreno no Parque Via Norte, onde nasci, e há 20 anos, constroem e reformam a casa. Sempre aos pouquinhos e com muita dificuldade.
Estudei a vida toda em escolas públicas e me formei assim: sem saber como funciona o ingresso no ensino superior, com um aprendizado defasado e sem nenhuma perspectiva do que eu faria no futuro. Em toda a vida escolar, tenho a lembrança de me sentir muito sozinha. E a cada etapa da vida, essa solidão teve diferentes conotações.
Eu me percebia negra e diferente das outras crianças já na pré-escola, não sei se essa diferenciação vinha do olhar dos professores, mas certamente vinha do olhar dos colegas. Eu sempre estava sozinha no recreio, não tinha com quem brincar e isso não acontecia com os meus colegas de escola que eram brancos. Com o tempo, fui me retraindo cada vez mais.
Fiquei um ano a mais na escola porque eu não sabia escrever o meu nome. A professora disse para a minha mãe que eu não queria escrever. Repetir de ano foi uma experiência traumática, que me deixou insegura por muito tempo, pensando se eu iria conseguir escrever um dia. Aos sete anos tive que fazer meu RG e na hora de assinar esqueci de colocar a letra “s” do meu sobrenome Nascimento. Carreguei o RG com a minha assinatura errada até completar 18 anos e trocar. Isso me marcou.
Nunca faltei às aulas, a minha mãe nunca me deixou faltar. Meus pais não acompanhavam minhas lições de casa, eles estudaram pouco, mas sempre me incentivaram a estudar e seguir estudando. Apesar da falta de motivação em sala de aula, sempre tive o total apoio dos meus pais, o que foi essencial.
Eu tenho um irmão mais velho que estuda numa universidade privada com bolsa de 100% porque trabalha nela. Eu nunca cogitei estudar numa faculdade particular por questões pessoais mesmo. Uma das coisas que mais me magoa é ser campineira, ter estudado a vida toda nas escolas públicas de Campinas e ter passado todo o processo escolar sem ouvir falar da Unicamp. Ninguém nunca me falou sobre universidades públicas, nem quais os caminhos e alternativas eu teria para chegar lá.
Fui conhecer a Unicamp só quando entrei num cursinho comunitário para vestibular chamado Proceu Conhecimento, que fica lá dentro da universidade. Foi no cursinho comunitário que eu comecei a saber das coisas. O desapontamento em relação ao ensino que eu tive ficou ainda maior quando entrei no ensino médio.
Comecei a trabalhar com 14 anos, fiz estágios, fui menor aprendiz, trabalhei com o meu pai nos finais de semana, e então passei a estudar à noite no segundo semestre do primeiro ano. Eu estudava à noite na mesma escola de sempre. Mas, imagine, se o ensino na parte da manhã já era fraco, à noite era ainda pior. A diferença era enorme.
Eu sentava na sala de aula e me angustiava pelo tempo perdido, não aguentava mais aquela escola. Era muita aula perdida porque não havia professor, mas tínhamos de ficar lá para pegar presença. Muitas aulas vagas, e eu perdendo o tempo da minha vida. O Enem chegou e eu ainda nem sabia da existência dos outros vestibulares.
Quando comecei a fazer o Enem, em 2014, vi questões na prova que eu nunca tinha estudado, fiquei muito revoltada. Lembro de olhar em volta na sala de aula e perceber que só eu estava preocupada, todo mundo conversando, bagunçando. Que desespero!
A pressão na minha cabeça era constante: como vai ser a prova, como estudar se eu não tenho material didático, onde ir atrás de tudo?
Comecei a pesquisar cursinhos e vi que nunca conseguiria pagar. O valor do cursinho era quase o valor de uma graduação. Depois de um tempo de procura, no final do terceiro ano do ensino médio, descobri o cursinho comunitário da moradia da Unicamp, me matriculei e foi a melhor coisa que eu fiz.
Foi maravilhoso saber que existia cursinho comunitário! Aprendi muito no Proceu Conhecimento, não só conteúdo para o vestibular, aprendi muita coisa para levar para a vida também. Estudar lá foi super importante pra mim.
“Sinto que perdi 18 anos da minha vida”
Foi no cursinho que percebi o quanto fui prejudicada em anos e mais anos de estudo defasado. Vi o quanto eu seria obrigada a correr atrás, a deixar de ter um tempo de descanso, lazer etc. Eu precisava sacrificar várias horas do meu dia para estudar para um dos vestibulares mais importantes do país. Sem o cursinho a minha bagagem era quase zero. Ninguém nunca me deu a estrutura para prestar vestibular na rede pública de ensino.
Esta é uma dor que carrego, sinto que perdi 18 anos da minha vida. Tive que correr muito para aprender coisas que eu deveria ter aprendido no decorrer da vida, na escola.
Desde o 8ª ano, sempre tive o sonho de fazer psicologia, curso bem concorrido nas universidades públicas. Fiz dois anos de cursinho com este foco. Foi um período muito difícil, tive até que parar de trabalhar só para estudar.
Fizeram tanta questão de esconder de mim a existência da universidade pública, então significa que deve ser o melhor lugar para se estudar – e é exatamente neste lugar que estou agora.
No primeiro ano de cursinho, passei na Federal de Mato Grosso do Sul para fazer Psicologia em Corumbá, na divisa com a Bolívia. Fui lá conhecer, mas acabei não me adaptando.
O desafio que impus para mim era passar no vestibular e, então, escolhi o curso de Saúde Pública aqui em São Paulo. Entrar na universidade pública, vinda de onde eu vim, é um grande passo e o que eu estudo hoje me enriquece como pessoa, é um outro caminho.
Atualmente, estou num ritmo de estudos muito intenso, frenético. Faço graduação e cursinho para vestibular ao mesmo tempo. Estou focada e estudando muito para ter um bom desempenho nas provas de vestibular no final do ano, porque meu objetivo ainda é a psicologia. Tenho paixão por psicoterapia. Já consigo me ver formada em psicologia e trabalhando na área.
Fizeram tanta questão de esconder de mim a existência da universidade pública, então significa que deve ser o melhor lugar para se estudar – e é exatamente neste lugar que estou agora. A mesma coisa aconteceu comigo quanto a minha origem. Meus antepassados e eu nunca soubemos direito de onde viemos. Eu sei agora. Absorver tudo o que aprendi ao descobrir o meu DNA ancestral é um processo que ainda vai levar um tempo para saber o impacto dele na minha vida. Mas hoje sinto que pertenço a uma cultura, e que a minha história está aqui registrada. Eu quebrei o ciclo.
Colaborou: Pedro Borges, do Alma Preta.
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CRÉDITOS ADICIONAIS:
Colaboração: Cecília Olliveira, Juliana Gonçalves and Sílvia Lisboa. Pesquisa: Juliana Gonçalves.
Foto: Fernando Souza/AFP/Getty Images
CARTA ABERTA À NAÇÃO RUBRO-NEGRA: ‘NÃO ESQUEÇAM DOS MENINOS MORTOS NO NINHO DO URUBU!’
ANTES QUE O TRIBUNAL das redes sociais me condene, já apresento minha confissão: sou botafoguense apaixonado, sócio, ex-conselheiro e frequentador assíduo das arquibancadas do estádio Nilton Santos. Este texto, porém, não tratará da rivalidade histórica, nem da disparidade financeira entre os clubes. É, na verdade, uma carta e um pedido de um defensor público do estado do Rio de Janeiro.
Imagino a euforia da Nação com a série de craques contratados, estádio lotado e o time lutando por vários títulos. Mas, neste momento mágico no campo, esta carta pede licença para lembrar dos dez jovens que viviam euforia semelhante e sonhavam ter seu nome gritado por quase 70 mil pessoas no Maracanã, mas foram mortos há quatro meses no Ninho do Urubu.
Vitinho, Arrascaeta e Gerson, três jogadores que fazem a Nação sonhar e que custaram, juntos, R$ 173 milhões para o Flamengo. O mesmo clube que se negou – quando da negociação de um acordo extrajudicial conduzido pela Defensoria Pública do Rio logo após a tragédia – a destinar 10% desse valor para a indenização das famílias dos garotos do Ninho. Para a maioria delas, seus filhos, netos, irmãos e sobrinhos representavam a única chance concreta de ascensão econômica num Brasil tão desigual.
Para além do número de dez jovens mortos de forma terrível, há histórias comoventes, como a do jovem que veio do interior do Sergipe para tentar a sorte no futebol; da família que vive abaixo da linha de pobreza e sequer possuía conta bancária e documentação básica; do garoto que sonhava defender as traves rubro-negras e morava distante dos pais há anos.
Histórias de meninos pobres, alguns miseráveis, que sequer conseguem dimensionar as cifras divulgadas na imprensa por apenas três atletas recém-contratados.
A Nação Rubro-Negra não se confunde com a atual diretoria do clube mais popular do Brasil, que desavergonhadamente vibra com os gastos de duas centenas de milhões de reais em reforços, mas é insensível a ponto de não permitir que essas famílias devastadas tenham a possibilidade de recomeçar a vida. Afinal, das dez famílias, oito terão que ir à justiça em busca de uma reparação minimamente digna.
Portanto, Nação, confiando na paixão ao clube que é muito maior do que a dos seus dirigentes, façamos aqui um combinado: não deixem os dez garotos do Ninho do Urubu morrerem no esquecimento. Pressionem seus dirigentes, exibam faixas no Maracanã lotado “indenizem as famílias”, invadam as redes sociais do clube exigindo a reparação.
Exijam a preservação da memória dos garotos que morreram de forma tão chocante. Há que se construir um memorial para que todos lembrem desses meninos ao entrar no Ninho do Urubu; que dez camisas oficiais sejam aposentadas perpetuando seus nomes no Flamengo; enfim, que outras medidas, além da indispensável reparação financeira, sejam adotadas para que essa tragédia não seja esquecida por contratações milionárias.
Façam isso por todos que amamos o futebol.
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Foto: Tuca Vieira/Folhapress
DA ESPERANÇA AO ÓDIO: COMO A INCLUSÃO PELO CONSUMO DA ERA LULA ATIÇOU O RECALQUE NAS ELITES
MORADOR DE UM BECO na periferia de Porto Alegre, Zeca, 52 anos, vivia pedindo dinheiro para comprar leite Ninho para sua filha com deficiência motora e cognitiva. Em 2015, quando ele ganhou uma boa grana de um processo na justiça, a questão do leite parecia finalmente estar resolvida. Mas não. Ele foi direto a um shopping e gastou todo valor em um tênis marca, deixando muita gente perplexa. Assim ele explicou:
Todo mundo se comove com minha filha, e leite não vai faltar. Mas ninguém se importou comigo quando quase morri de frio na fila do posto tentando interná-la, quando sou perseguido pelos guardas de shopping como se fosse ladrão só porque sou pobre. Eu tenho direito a ter coisa boa também. Agora que eu comprei as roupas à vista, me respeitam. Volto no shopping sempre que posso só para passar na frente da loja e ver os vendedores dizer: “OI, SENHOR ZECA!”. Eles dizem meu nome.
A história de Zeca é comum a grande parte da população brasileira que teve o sentido de suas vidas alterado com a inclusão pelo consumo da era Lula. Esta coluna traz alguns resultados e histórias de uma pesquisa de campo sobre consumo popular e política feita durante uma década (2009-2019), em parceria com a antropóloga Lucia Scalco. Nosso interlocutor de pesquisa queria sentir o efêmero prazer e poder proporcionado pela compra de um objeto de status. Mais do que isso, ao dizer que era chamado pelo nome pelo vendedor da loja, ele estava reivindicando sua própria existência numa sociedade capitalista, marcada pela exclusão.
O consumo passou a ser um meio fundamental de reconhecimento, visibilidade e cidadania entre as camadas populares nos últimos anos, com consequências na democracia brasileira.
Nasceu a esperança
A periferia de Porto Alegre é um laboratório para observar as transformações políticas recentes do país. A cidade, governada pelo PT por 16 anos (1990-2006), foi um dos berços do Orçamento Participativo (OP) e um dos símbolos do Fórum Social Mundial. Porto Alegre era internacionalmente conhecida como um modelo de democracia radical. Hoje, a realidade é outra: Bolsonaro venceu em todos os bairros.
Durante os governos do PT, as reuniões do OP eram um canal fundamental de mobilização social. Seu maior legado foi fomentar o espaço coletivo, dando a oportunidade da mulher pobre pegar o microfone e falar sobre suas prioridades.
Após anos de mobilização popular, com a vitória de Lula em 2002, inicia-se uma nova era do PT – o lulismo –, caracterizada por políticas de redução da pobreza, inclusão social e financeira em conciliação com as elites. Mas a relação entre o estado e a população se tornava a cada dia mais individualizada e despolitizada, demandando menos esforço na construção do coletivo. “Toma aqui o seu cartão Bolsa Família, cumpra o check-list e tchau”. Aos poucos, houve uma gradual desmobilização das bases petistas e o esvaziamento da lógica coletiva. Mas isso não era um problema enquanto a economia ia de vento em popa.
No plano social mais do que na transformação das instituições, o lulismo focou-se no acesso: a direitos, universidades, crédito e bens materiais. As novas classes médias e os pobres andando de avião pela primeira vez se tornaram emblemas nacionais. Vale notar que o verbo “brilhar” foi amplamente utilizado por acadêmicos e formuladores de políticas públicas para descrever essa fase marcada pela esperança e emergência de uma nação.
Mas como esse grande momento nacional impactou na formação política dos sujeitos de baixa renda? Diferentes pesquisadores, como Wolfgang Streeck e Lena Lavinas, concordam que políticas públicas neoliberais, como a inclusão financeira e inclusão pelo consumo, levam à erosão da democracia, à retração de bens públicos e ao esvaziamento da política no tecido social. Nesses anos acompanhando os “novos consumidores”, vimos os espaços coletivos minguarem, os bens públicos se degradarem e o tio do pavê que comprava um carro se achar superior a seus vizinhos.
Quanto mais as pessoas compravam “coisa boa”, mais conscientes eles se tornavam do quanto as elites não engoliam a figura do pobre orgulhoso.
É inquestionável que o foco na inclusão pelo consumo causou enfraquecimento democrático em muitos níveis. Mas essa não é a história completa. Em paralelo, trouxe também um despertar político e uma transformação na autoestima e no orgulho das pessoas de baixa renda, o que chamo de autovalor.
Quanto mais as pessoas compravam “coisa boa”, mais conscientes eles se tornavam do quanto as elites não engoliam a figura do pobre orgulhoso. Pobre tem que ser eternamente humilde, servil e grato pelas migalhas que ganha.
Em uma sociedade que joga na cara o tempo todo que os pobres não são merecedores das coisas boas, a aquisição de bens de prestígio pelas camadas populares é um ato poderoso de enfrentamento de preconceitos. Como Katia, 37 anos, sobre seu recém-adquirido óculos Ray-ban:
“Eu sei que quando uma negona como eu usa um Ray-ban no ônibus, fedendo a água sanitária, as pessoas pensam que é pirataria. E eu me importo? [gargalhadas] Dane-se racista! Eu estou me achando uma negona muito gostosa e chique.”
Betinho, 17 anos, me disse uma vez que seu boné da Nike era como uma capa de super herói: “Eu deixo de ser o pobre favelado que ninguém vê”.
Talvez o efeito político mais importante da inclusão pelo consumo foi um incipiente processo do que chamamos de insubordinação. No livro “Laughter Out of Place”, de Donna Goldstein, é descrita uma cena de uma patroa que leva sua empregada num restaurante em Copacabana dos anos 1990. A trabalhadora doméstica fica constrangida sem saber como agir naquele lugar, que sente que não lhe pertence. O Brasil do século 21 é justamente o contrário: um país em que os mais pobres começaram a achar que são merecedores de “coisas boas” e que cada vez mais se sentiam à vontade para transitar num shopping ou num aeroporto.
Kátia prosseguiu falando dos óculos: “Eu ponho meu Ray-ban e subo no elevador social de cabeça bem erguida”. Em um ato microscópico, ela contesta a segregação social e racial dos espaços que transitava.
Isso também ocorreu na época dos rolezinhos. Nossos interlocutores não eram mais os meninos de gangues que, anos atrás, assaltavam na calada da noite para ter um boné. Eles se orgulhavam de estar trabalhando e gostavam de ir ao shopping por onde entravam, como gostavam de enfatizar, pela porta da frente.
O ato de adquirir bens de status embaralha o monopólio de símbolos de prestígio das elites e ameaça romper com as relações servis que se perpetuam desde a escravidão. A autonomia de se comprar o que se deseja pode causar uma reação social devastadora.
Era a metáfora do novo Brasil: o autovalor do pobre e o recalque das elites.
Não é à toa que, na época dos rolezinhos em 2014, os shoppings centers fecharam as portas literalmente para os jovens de periferia. Era insuportável uma meninada brincando, cantando, namorando, comprando. Era insuportável ver a autoestima dos filhos dos novos consumidores. Era a metáfora do novo Brasil: o autovalor do pobre e o recalque das elites. Não demorou para a reação chegar, e o resto dessa história a gente conhece bem.
Então, o ódio emergiu
Quando falamos em “esperança” para se referir à era Lula, sempre ressaltamos que era uma esperança precária. Apesar da crescente insubordinação, nossos interlocutores falavam do ato de comprar como uma espécie de “último desejo”, demonstrando uma profunda consciência dos limites dessa inclusão.
Basta relembrar a história de Zeca, cujo prazer de ser chamado pelo nome após ter realizado uma compra cara, veio em meio a uma narrativa que enfatizava que ele havia quase morrido na fila do SUS. Dona Neli, 57 anos, trabalhadora doméstica e mãe de 16 filhos, sempre dizia que as meninas da favela engravidavam cedo e que os meninos morriam pelo tráfico. Ela não poderia dar uma casa ou pagar universidade, então comprava roupa boa porque “dignidade na aparência é só o que eu posso dar”. O pessimismo da narrativa não podia ser mais preciso: seu filho, Betinho, aquele mesmo que dizia que seu boné da Nike era uma capa de super-herói, foi assassinado com 12 tiros em uma chacina do tráfico.
O Brasil mudava rapidamente para melhor, mas também é verdade que as estruturas racistas, classistas e violentas se mantinham quase inalteradas.
Em 2014, o Brasil entrou em uma profunda crise econômica política e, em Porto Alegre, também de segurança pública. O resultado foi a degradação da vida cotidiana da periferia. Em pouco tempo, a grande narrativa de um país emergente e do “direito a brilhar” colapsou.
Grande parte da esquerda hegemônica desdenhou da crise econômica, mas foram os pobres que a sentiram na pele. Nossos interlocutores agora compravam e sonhavam menos. Com dificuldade de encontrar trabalho, não tinham mais cartões de crédito. Estavam com o nome sujo na praça, endividados em um dos sistemas bancários com os maiores juros do mundo.
Para muitos, o principal ganho da era Lula foi conforto material. Com a crise, eles não podiam mais comprar as coisas que tanto adoravam. Eles também perdiam as poucas coisas que restavam em assaltos que sofriam. Cássio, 18 anos, ex-rolezeiro, caixa de supermercado, foi assaltado duas vezes pelo mesmo sujeito na parada de ônibus na volta do trabalho às 23h. O celular roubado custara o salário de um mês inteiro de trabalho – em quem será que Cássio votou para presidente?
Ao perderem seus bens, as pessoas perdiam um pilar de sua identidade, reconhecimento e cidadania, gerando uma crise que também foi existencial. Nada mais restava, nem os bens públicos, que se encontravam ainda mais deteriorados.
A angústia, a violência e o desalento cotidiano foram vividos de maneira individualizada e deslocada do coletivo, já que os fóruns comunitários foram esvaziados. Não havia mais nenhuma política de base de esquerda no cotidiano da periferia.
O que restou então? Uma mídia hegemônica que apenas batia na corrupção do PT, igrejas evangélicas oferecendo conforto e um candidato autoritário prometendo, pelo WhatsApp, acabar com “tudo que está aí”. A verdade é que, entre 2014 e 2018, um vácuo político tomou forma e ficou pronto para ser preenchido.
O problema não foi a inclusão pelo consumo em si, mas a forma como ela foi feita: a soberba da confiança de que só ela bastaria sem mexer de forma profunda na estrutura da desigualdade social. O problema foi ter virado as costas para as periferias acreditando que somente a autoestima dos novos consumidores seria suficiente para produzir uma fidelidade partidária eterna.
*Nomes foram omitidos para preservar a identidade das fontes.
*Correção, 23/7, 11h01:
A última convenção da ONU substitui o uso do termo “pessoa com necessidades especiais” por “pessoa com deficiência”. Corrigimos a primeira frase do texto que usava o conceito em desuso.
A última convenção da ONU substitui o uso do termo “pessoa com necessidades especiais” por “pessoa com deficiência”. Corrigimos a primeira frase do texto que usava o conceito em desuso.
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Ilustração: João Brizzi e Rodrigo Bento/The Intercept Brasil; Sergio Lima/AFP/Getty Images
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