Pensar, certezas e deliberação
Pensar sem dor é praticamente impossível. Não me refiro à dor física. Refiro-me à agonia de não ter a certeza se você enveredou pelo melhor caminho para perceber um determinado fenómeno. Isto é tanto mais difícil quando nas ciências sociais o perigo do viés de confirmação é muito grande. A tentação de apenas confirmar os nossos palpites ou, simplesmente, reforçar as nossas convicções é enorme. Tanto é assim que em momentos de polarização política leva sempre a melhor aquele que tem convicções fortes, pois tudo quanto ele precisa de fazer para se assegurar da sua razão é apenas identificar as coisas que confirmam essas convicções. Pensar dói porque se você quiser escapar à circularidade do pensamento, você fica suspenso por aí sem onde se segurar.
Lembrei-me de algumas das minhas leituras neoplatónicas na sequência de algumas interpelações que me foram feitas recentemente. Veio-me à memória uma grande distinção entre o problema lógico do mal e o problema empírico do mal. É o famoso dilema de Epícuro. Se Deus é omnisciente, omnipotente e omnibenevolente como se explica a existência do mal? Esse é o problema lógico. A existência real do mal, o problema empírico, seria para alguns a prova de que Deus não existe, ponto final. Há, porém, outras saídas como a da Teodiceia que defende a existência de Deus apesar do mal. Uma parte desse procedimento faz aquilo que torna o pensamento numa coisa dolorosa, pois procura encontrar fora do conforto das convicções a fundamentação para a existência dessa tensão. Nisso, ela mostra preocupação com o “como” das coisas, não com o “porquê”. A ciência, portanto, a dor de pensar, está no “como”, enquanto o “porquê” é a prerrogativa das convicções.
Sem entrar nos detalhes da metafísica neoplatónica, a distinção entre o “porquê” e o “como” está no centro da dificuldade que temos em não só discutir com utilidade como também em ir para além do óbvio. O “porquê” é o caminho das certezas e um pouco também aquilo que uma boa parte das ciências sociais faz quando diz que “estudou” alguma coisa. Constata uma coisa, observa coisas no mundo que correspondem a isso, escolhe passagens de entrevistas que documentam isso e conclui o que já sabia. Já o “como” faz parte duma sensibilidade epistemológica que, infelizmente, faz falta nas ciências sociais. Preocupamo-nos menos com o “como” porque ele deixa-nos sem terra firme. É possível dizer, por exemplo, que o mal é um atributo do que existe no mundo. Ser maldoso é um atributo do ser humano, mas esse atributo não explica tudo o que ele faz, nem esgota a nossa capacidade de o descrever. Antes de ser maldoso, ele é várias outras coisas – na concepção neoplatónica do mundo “bom”, portanto, “perfeito” na medida em que ser bom ou mau seriam apenas actualizações de potencialidade.
Dito doutro modo, quando analisamos fenómenos sociais o desafio não é estabelecer a existência dum atributo, mas sim descrever a forma como ele se potencia como condição para explicar o que queremos entender. Deixem-me ilustrar com um exemplo potencialmente polémico. Há duas maneiras de olhar para o problema das dívidas ocultas. Para uns elas são a manifestação da maldade de quem as contraíu, maldade essa que se manifesta através da inclinação para a corrupção. Para quem vê as coisas neste prisma, a corrupção é a prova de si própria. Porque alguém fez tal coisa? Porque é corrupto, ponto final! Este é o reino do “porquê”, potencialmente vulnerável ao viés de confirmação, sobretudo quando misturado com uma forte dose de moralismo que não reconhece o mal senão como defeito irremediável de alguns seres humanos. Nunca é demais recordar que uma boa parte da teologia cristã assenta nesta “corruptibilidade” humana inata que tem sido instrumentalizada por regimes ou sistemas de pensamento totalitários.
Para outros, as dívidas ocultas são a manifestação da vulnerabilidade ao mal pelo que o desafio científico se constitui de forma completamente diferente. A questão não é saber porque as pessoas são vulneráveis ao mal (porque a resposta seria circular: porque são maldosas), mas sim, que circunstâncias se juntam para potenciar o mal. Ora, nesta pergunta cabe a própria corrupção, mas cabem também várias outras coisas como, por exemplo, a economia política do auxílio ao desenvolvimento, o próprio processo de desenvolvimento, a emergência duma situação pós-conflito, etc. Evocar essas circunstâncias todas não é justificar uma decisão má e grave nas suas consequências negativas, mas sim tentar perceber o país real em que vivemos como forma de sabermos o que devemos fazer melhor no futuro.
É sob este pano de fundo que olho para as dívidas ocultas. Não as vejo como manifestação duma criminalidade inata das pessoas nelas envolvidas, mas não quero impedir a ninguém de as ver como tal. Vejo-as como a manifestação da nossa vulnerabilidade. É essa vulnerabilidade que precisamos de entender – como forma de entender as dívidas ocultas – e não as próprias dívidas ocultas. Para tal, parto do princípio de que as pessoas nelas envolvidas agiram de boa fé – podem se rir como quiserem – isto é, acreditaram que estivessem a fazer o melhor pelo país mesmo se no processo esperavam tirar proveito pessoal da coisa. Essa crença assim como a ideia de que o melhor para Moçambique poderia ser alcançado dessa maneira constitui o fenómeno para o qual o “como” pode nos ajudar a encontrar uma resposta. Precisamos do “como” para descrever o fenómeno. Assim funciona a ciência. Tudo o resto é fé, ideologia ou politiquice da mais baixa qualidade.
É sintomático que a resposta que temos agora – criminalidade inata – não nos permite pensar o País de forma melhor do que o actual estágio.
É sintomático que a resposta que temos agora – criminalidade inata – não nos permite pensar o País de forma melhor do que o actual estágio.
As únicas conclusões que tiramos resumem-se à diabolização dos que contraíram as dívidas e aos apelos à sua responsabilização criminal. Isto é, transformamos o desafio complexo da governação numa questão simples de agir de boa fé ou agir de má fé. É muito pouco. O partido no poder, por exemplo, não fez absolutamente nenhum trabalho de introspecção sobre os seus próprios procedimentos, as suas estruturas e a maneira como toma decisões em reacção às dívidas. Tenta a todo o custo transforma-las num incidente de percurso com motivações criminosas. Era tão bom que fosse assim, só que não é. O governo não reviu os termos da sua cooperação com os parceiros internacionais para ver de que maneira as estruturas dessa cooperação podem conduzir a este tipo de conduta. Está-se na boa à espera de demonstrar que os corruptos foram corridos.
O que agrava o problema é a magnitude das consequências. Por causa disso, é fácil esquecer que quase todos os dias se tomam decisões com a mesma morfologia, mas não se fala assim tanto delas porque as suas consequências não parecem, à partida, assim tão graves. Mas, mais uma vez, o tamanho das consequências diz menos sobre o tamanho do erro e mais sobre o tamanho da nossa vulnerabilidade. É verdade que isso inclui também a mensagem de que devemos ter cuidado com os erros que cometemos, pois uns podem ser mais devastadores do que outros. Mas na essência, a principal mensagem é de que governar no nosso País – ou em países como o nosso – acarreta o risco de cometer erros que podem inviabilizar tudo (nos outros países cometem-se erros monumentais, mas eles estão em melhor posição de controlar os seus efeitos negativos). Agora, ao invés de andar aí a gritar aos quatro ventos como um imbecil que é preciso acabar com a corrupção, devíamos pensar como reduzir o impacto de erros governamentais dada a nossa vulnerabilidade.
Isto faz-se, dentre outras coisas, com o reforço da democracia. Mas ninguém fala sobre isso senão numa perspectiva incantatória própria de quem se relaciona com o conceito de forma oportunista. Precisamos de mais deliberação no nosso País, isto é de processos decisórios que envolvam uma discussão demorada das coisas. Os recursos batem-nos à porta e o governo decidiu criar um fundo soberano, mas não houve um processo consultivo que envolvesse pessoas de várias sensibilidades e com conhecimento de causa. Nisto até a Frelimo gloriosa era melhor, mesmo com o vício do partido e ideologia únicos. As dívidas ocultas foram possíveis também porque os nossos processos decisórios são intransparentes e não apostam no conhecimento e diversidade de sensibilidades que fazem a nossa paisagem política. Ao invés de olhar para este problema, reitera-se a luta contra a corrupção que vai acabar se formos mais unidos...
Eu não tenho outra maneira de abordar assuntos senão através do meu entendimento de ciência. Não me imuniza contra conclusões erradas, mas essa não é a principal preocupação dum académico. A sua preocupação apostar mais no procedimento metodológico como forma de diminuir a probabilidade de tirar conclusões erradas. Você que vive no conforto da força da sua convicção não pode entender isto. As coisas para si são claras como a água. Eu tenho inveja de gente assim, mas não troco o rigor analítico pela satisfação imediata da minha opinião. E se o tempo e os factos provarem que estou errado, tanto melhor, pois assim vou poder trabalhar ainda mais no procedimento analítico.
N.B. A imagem que reproduzo é apenas para perguntar como o presidente francês pensou que o presidente moçambicano ia pagar pelos barcos. Com criação de patos? E não falou disso nem com a sua compatriota no FMI, nem com os seus homólogos de outros países? Que tipo de serviços de inteligência é que este pessoal tem para nos vir dizer, depois do burro morto, que não sabia de nada?
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